Como um
mal-entendido deu origem ao popular mito dos vampiros
Sejam eles
sedutores, como na série True Blood (2008-2014) e na
saga Crepúsculo (2008-2012), ou absurdos, como em Hotel
Transilvânia (2012-2022) e Renfield – Dando Sangue pelo
Chefe (2023), os vampiros têm há muito
tempo lugar garantido no cinema.
A longa lista de
representações, que reflete o fascínio que a humanidade nutre há séculos por
essas criaturas, foi recentemente reforçada com Nosferatu, que estreia nos
cinemas brasileiros nesta quinta-feira (02/01) levando os vampiros de volta a
suas antigas origens, no folclore europeu.
A obra é uma
refilmagem do clássico homônimo do cinema mudo lançado em 1922, um filme de
época meticulosamente pesquisado, ambientado na Alemanha do início do século
19.
Bill Skarsgård
interpreta o morto-vivo Conde Orlok, um vampiro que não é um devasso
encantador, nem um rabugento solitário, mas uma força demoníaca estranha e
monstruosa.
·
Mas
onde exatamente se originou o mito dos vampiros?
O historiador
alemão Thomas M. Bohn, autor do livro The Vampire: Origins of a European
Myth ("Vampiros: a origem do mito europeu", em tradução livre),
diz que a palavra "vampiro" apareceu pela primeira vez em 1725, em um
jornal austríaco chamado Wienerisches Diarium.
No início do século
18, dezenas de pessoas na Sérvia começaram
a morrer
misteriosamente,
supostamente perseguidas por seus vizinhos mortos, reclamando de uma forte
sensação de asfixia ou dificuldade para respirar pouco antes de falecer.
Dois pequenos
povoados em particular, Medveda, no sul, e Kisiljevo, no nordeste do país,
estavam no epicentro destes rumores.
Os vilarejos
ficavam a 200 quilômetros de distância um do outro, mas registraram um padrão
semelhante de incidentes curiosos ao longo de uma década.
Médicos austríacos
foram até lá para investigar a causa destas mortes e prepararam relatórios
detalhados sobre tudo que descobriram.
As conclusões
chegaram rapidamente à imprensa austríaca e, posteriormente, aos círculos
acadêmicos.
Um vampiro é uma
criatura mítica que, segundo a lenda, sobrevive se alimentando do sangue de
pessoas vivas.
Relatos de
aparições de vampiros foram registrados em diferentes culturas ao redor do
mundo, mas o termo "vampiro" ganhou popularidade na Europa Ocidental
após esses relatos no século 18.
·
Coisa
do 'diabo'
Em Kisiljevo, em
1725, nove pessoas morreram em dois dias. Todas elas mencionaram supostamente
um certo vizinho antes de morrer.
Disseram que um
homem chamado Petar Blagojevic, que já havia morrido, tinha vindo visitá-las em
sonhos e começou a estrangulá-las.
Em resposta, os
moradores locais abriram o túmulo de Blagojevic, e encontraram um corpo bem
preservado, que foi considerado como "evidência de coisas do diabo".
“O rosto, as mãos e
os pés, na verdade, todo o corpo, não poderia ter sido melhor conservado se ele
estivesse vivo", escreveu uma autoridade austríaca que esteve presente na
exumação.
"Em sua boca,
para minha grande surpresa, encontrei sangue fresco que, segundo a crença
geral, ele sugou daqueles que matou."
O professor Clemens
Ruthner, do Trinity College de Dublin, na Irlanda, acredita que a palavra
"vampiro" surgiu a partir do momento em que os médicos austríacos
abriram as tumbas e falaram com intérpretes locais para entender o que havia
acontecido.
"O intérprete
provavelmente murmurou algo como 'upir', que é uma palavra eslovena para
demônio, e desse mal-entendido nasceu a palavra 'vampiro'", sugere.
Segundo ele, por
meio do encontro entre autoridades austríacas que se consideravam
"cultas" e moradores locais que eram considerados
"primitivos" pelos austríacos, surgiu uma nova criatura.
Para deter Petar
Blagojevic, os moradores supostamente enfiaram uma estaca em seu coração, e
depois queimaram seu corpo, pondo fim aos relatos de vampiros no vilarejo.
Embora estes
incidentes tenham chamado a atenção, ainda não havia chegado o momento do
"vampirismo" — termo usado para se referir à crença em vampiros —
povoar o imaginário popular mais amplo, acrescenta Bohn.
O espírito
iluminista daquela época não aceitava nada que não pudesse ser explicado
racionalmente.
·
Vampiro
ou bode expiatório?
Sete anos depois,
em janeiro de 1732, o medo tomou conta do vilarejo de Medveda.
Em três meses, 17
pessoas, algumas delas jovens e saudáveis, morreram sem motivo aparente.
Assim como nos
incidentes de Kisiljevo, algumas das vítimas se queixaram de uma forte sensação
de asfixia e dor no peito antes de morrer.
Após cumprir a
ordem de exumar os túmulos, o médico Johannes Fluckinger escreveu um relatório
em que citava um mercenário como principal responsável pelos casos de
"vampirismo".
Seu corpo ainda não
estava em decomposição e havia sangue fresco escorrendo de seus olhos, nariz,
boca e ouvidos.
A população de
Medveda entendeu isso como uma prova de que ele era, na verdade, um vampiro — e
foi por isso que cravaram uma estaca em seu coração e depois também queimaram
seu corpo.
"Pouco se sabe
sobre a vida e o destino deste homem, que morreu após uma queda e foi
transformado em bode expiatório pelos moradores", escreve Thomas Bohn em
seu livro.
Ele acredita que se
tratava de Arnaut Pavle, um albanês que chegou de Kosovo.
"Petar
Blagojevic, em Kisiljevo, e Arnaut Pavle, em Medveda, foram os primeiros
representantes conhecidos da espécie vampírica", diz ele.
·
Explicação
científica
Embora os moradores
locais tivessem medo de corpos que não se decompõem, os patologistas
contemporâneos afirmam que o estado em que os cadáveres foram encontrados não é
incomum.
"Christian
Reiter, um renomado patologista vienense, acredita que por trás de todos estes
casos estava a epidemia de antraz, algo comum
durante e depois das guerras no passado", explica Ruthner.
O antraz é uma
doença bacteriana transmitida de animais infectados para pessoas, muitas vezes
resultando em morte.
Ruthner também
acredita que os relatos de asfixia antes da morte podem estar relacionados à
pneumonia.
"Se você ler
os relatórios com atenção, vai observar que ninguém viu os vampiros com seus
próprios olhos. A ideia de que sugavam sangue foi a interpretação dos médicos
austríacos", afirma.
Thomas Bohn também
acha que a sucção de sangue foi um mito criado pelo público ocidental.
A crença e o medo
dos vampiros ainda persistem na psique humana, de acordo com o historiador
local de Medveda, Ivan Nesic.
Mesmo muito tempo
depois das mortes de Petar Blagojevic e Arnaut Pavle, diz ele, os moradores
tentaram proteger suas casas dos vampiros.
"Acredita-se
que o vampiro sérvio se pareça com uma bolha de pele inflada e cheia de
sangue", afirma.
"E que
esvaziaria como um balão se fosse perfurado. É por isso que as pessoas
costumavam colocar espinhos nos portões, nas janelas ou nas portas para se
proteger."
·
Alternativa
à 'ameaça turca'
Tanto Kisiljevo
quanto Medveda estavam localizadas em áreas de fronteira que ficaram sob a
autoridade da Monarquia dos Habsburgos no século 18, após séculos de domínio
otomano.
Ruthner acredita
que o suposto aparecimento de vampiros chamou a atenção porque esses incidentes
foram registrados nesses territórios conflituosos.
"O grande
conflito entre o Império Otomano e o Ocidente é um pano de fundo importante
para estes acontecimentos", diz.
Bohn também observa
que após o segundo cerco otomano fracassado a Viena em 1683, os vampiros
representaram uma alternativa à "ameaça turca" ao cristianismo.
Em meados do século
18, houve uma nova onda de avistamentos de "vampiros" na Monarquia
dos Habsburgos, mas proibiu-se lutar contra as criaturas imaginárias, na
tentativa de conter as crenças supersticiosas.
Mas os vampiros
logo ressuscitaram de uma forma diferente.
"Os vampiros
do período romântico eram aristocratas bonitos e de pele clara, e não aldeões
sérvios inchados e com rosto vermelho", diz Ruthner.
O vampiro
carismático e sofisticado da ficção moderna nasceu em 1819 com a publicação do
conto O Vampiro, do escritor inglês John Polidori.
O
romance Drácula, de autoria de Bram Stoker, de 1897, é celebrado como o
romance de vampiros por excelência — e serve como base até hoje da lenda
moderna.
Fonte: Por Milica
Radenković Jeremić, da BBC Sérvia
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