“Você não pode comprar o paraíso com
sangue”, diz Sofia Orr
esde o início da guerra em Gaza, a sociedade israelense foi imersa em um
frenesi nacionalista. O massacre de 7 de outubro fortaleceu as já poderosas
correntes de extrema direita e levou muitos dos antigos críticos do
primeiro-ministro Benjamin Netanyahu a se unirem em torno da bandeira. Uma
esmagadora maioria de israelenses apoia a guerra, mesmo depois que a Corte
Internacional de Justiça impôs formalmente a acusação de genocídio.
Mas há alguns que se recusam a acompanhar a maioria. Desde que a guerra
começou, onze jovens israelenses recusaram abertamente seu serviço militar
obrigatório nas Forças de Defesa de Israel (IDF). Eles não querem se tornar
parte da maquinaria bélica e estão convocando seus compatriotas a questionar a
propaganda de guerra de seu governo. Os jovens ativistas pela paz, que se
organizam na rede Mesarvot, são frequentemente ameaçados, insultados e mantidos
em prisão militar por meses a fio.
Uma dessas jovens corajosas é Sofia Orr, que esteve recentemente em
Berlim para um evento organizado pela Israelis for Peace. Lá, ela
falou com Patrick Lempges, da Jacobin, sobre o desejo pela
guerra em seu país natal, os caminhos para a paz no Oriente Médio e por que ela
nunca se arrependerá de sua decisão de recusar o recrutamento.
LEIA A ENTREVISTA:
·
Olá, Sofia, obrigada por falar
conosco. Você pode começar nos contando um pouco sobre você?
SOFIA ORR - Meu nome é Sofia Orr. Tenho dezenove anos e sou uma objetora
de consciência israelense. Em 25 de fevereiro, recusei o recrutamento para a
IDF e depois passei oitenta e cinco dias em uma prisão militar.
Tomei a decisão de recusar quando tinha cerca de quinze anos, porque
mesmo naquela época, eu via que a ocupação e o apartheid em curso eram — e
ainda são — razão suficiente para uma recusa. Tornou-se mais importante para
mim depois que a guerra e o massacre em Gaza começaram. É importante levantar
nossas vozes contra a guerra, aumentar a conscientização sobre ela e trazer a
perspectiva palestina para o debate em Israel também. Decidi tornar minha
recusa bem pública, dando entrevistas e falando nas redes sociais para divulgar
minha história sobre o porquê de eu ter recusado e por que estou trabalhando no
sentido de uma solução pacífica e justa para todas as pessoas entre o rio e o
mar.
É por isso que também faço parte da Mesarvot, uma rede feminista de
objetoras de consciência promovendo o fim da ocupação. Embora estejamos
tentando mudar Israel de dentro, não sei se isso é possível em uma sociedade
tão militarista e racista. Por isso, é importante para mim alcançar um público
internacional e dizer às pessoas para pressionarem seus governos a interromperem
o apoio diplomático, financeiro e militar incondicional a Israel e pressionar o
governo israelense a parar com esse desastre horrível.
·
Houve algum evento em particular
que influenciou sua decisão?
SO - Tenho sorte de ter crescido em uma família não sionista, de
esquerda, que me transmitiu fortes valores de pensamento crítico, empatia e
igualdade. Isso desempenhou um grande papel.
Mas, falando de modo geral, recusar-se a servir não é o resultado de um
único momento, mas de um processo de compreensão do quadro completo. Uma
experiência da qual me lembro vividamente é de comparecer às celebrações
memoriais para vítimas do Holocausto e soldados israelenses mortos, e suas
narrativas militaristas e unilaterais. Em um ponto, algo simplesmente não fazia
sentido para mim. Por que a maneira de homenagear soldados caídos ou pessoas
que morreram no Holocausto é matar mais pessoas? Por que deveríamos glorificar
soldados que morreram neste ciclo de derramamento de sangue?
Outro evento importante foi ir à Cisjordânia e conhecer palestinos.
Então, tudo fez muito sentido. Fazer conexões pessoais é um passo realmente
importante para combater a desumanização dos palestinos na sociedade
israelense, e acho que esse tem que ser o caminho a seguir.
Nunca pensei que realmente me alistaria, mas uma coisa é dizer “não vou
me alistar” e outra bem diferente é dizer “me recuso”, indo para a prisão
militar e tornando isso público. É isso que quero dizer quando afirmo que
recusar é um processo: de entender a situação indo de “não posso participar
disso” para “preciso me posicionar contra isso”.
·
Como sua família, amigos e
comunidade reagiram à sua decisão?
SO - Minha família e meus amigos me apoiaram, mas a sociedade israelense
vê isso como algo muito inaceitável e confuso. Toda vez que publico conteúdo em
hebraico, recebo muitos comentários me chamando de traidora, uma judia que
odeia a si mesma, dizendo que eu deveria ser morta, estuprada ou enviada para
Gaza e bombardeada. Essa é uma reação comum.
Da minha comunidade mais imediata, as duas reações negativas mais comuns
são que sou ingrata ou ingênua. Ingrata, porque meus amigos e meu país estão
lutando para me proteger, e eu deveria fazer a minha parte também. Acho isso
errado. Sinto que recusar é a melhor maneira de tentar fazer deste um lugar
melhor e mais seguro para as pessoas ao meu redor. Jogar meu corpo em um ciclo
de derramamento de sangue nunca nos tornará mais seguros. É extremamente imoral
e improdutivo.
Eles me chamam de ingênua por sequer pensar que podemos falar com os
palestinos — o inimigo. Eles dizem que o conflito nunca será resolvido
diplomaticamente. Eu acho que é exatamente o oposto: tentamos resolver o
conflito pela força por setenta e cinco anos. Não há solução militar para um
problema político.
A mentalidade violenta que domina a sociedade israelense também está
presente na sociedade palestina e é motivada pela violência que acontece no
local. O apoio ao Hamas ou à resistência violenta em geral só cresce por causa
da violência extrema e das condições de vida horríveis com as quais os
palestinos são confrontados. O exército israelense ensina a eles que a única
língua a ser falada é a violência. Precisamos mudar o tom e toda a narrativa
para oferecer aos palestinos uma alternativa. Isso só pode acontecer com diplomacia.
·
Como a decisão de recusar moldou
sua identidade e autopercepção? Você já teve momentos de dúvida sobre sua
decisão?
SO - Eu tive momentos de dúvida — não sobre se era a coisa certa a
fazer, mas se eu conseguiria fazer, e fazer bem. Quanto mais o tempo passava,
mais certeza eu tinha. Daqui a dez, vinte ou cinquenta anos, eu posso me
arrepender de tudo o mais que fiz na minha vida, mas nunca vou me arrepender
disso.
Não acho que isso tenha moldado minha identidade, no entanto, porque me
recusar a servir na IDF foi simplesmente a extensão das crenças que eu já
tinha. Sinto que minha ação está alinhada ao meu coração, e estou orgulhosa e
feliz por tê-la feito.
·
O que significa recusar o serviço
militar em Israel, tanto política quanto socialmente?
SO - Na data do meu alistamento, em 25 de fevereiro, fui ao centro de
alistamento e disse a eles que estava recusando o recrutamento. Eles ficaram
realmente confusos porque é muito raro, e não têm nenhum protocolo para lidar
com a recusa. Então, eles simplesmente te mandam de um oficial para outro até
que você chegue a alguém que seja de uma patente alta o suficiente para te
mandar para uma cela de detenção. Você espera lá por algumas horas, às vezes
até um dia, e então tem um julgamento, e é sentenciado a um número qualquer de
dias em uma prisão militar.
No meu primeiro julgamento, fui sentenciada a vinte dias. Quando fui
solta da prisão, recebi uma notificação de recrutamento dizendo: “Ok, você
cumpriu sua punição — daqui a vinte e quatro horas, precisa se alistar.”
Recusei novamente e o ciclo continuou.
Eles podem fazer isso para sempre, é parte da intimidação. Eles não
querem que saibamos quanto tempo ficaremos na prisão, porque é mais assustador
assim, e eles querem assustar as pessoas para que elas não se recusem. Querem
que fiquemos quietos. Isso também é aparente na prisão. Quando falamos sobre
política, somos advertidos com gritos e ameaçados de punição. Há uma regra no
exército de que você não tem permissão para falar sobre política, mas ela só é
aplicada contra recusadores que falam sobre suas políticas de “esquerda”. Isso
continua até que você quebre ou eles lhe concedam uma liberação, o que para mim
foi depois de oitenta e cinco dias. Eu fui a segunda objetora de consciência
desde que a guerra começou. O primeiro, Tal Mitnick, passou 185 dias na prisão.
Ainda assim, a maior parte do custo é social. A maioria das pessoas não
se opõe porque tem medo de perder seus amigos e familiares. É por isso que nós
da rede Mesarvot tentamos ser algo como uma espinha dorsal social para pessoas
que se opõem conscientemente. Você ainda pode ser aceito na universidade e
conseguir um emprego depois de recusar, mas conheço pessoas que têm medo de que
seu chefe descubra suas crenças políticas e as demita.
Dito isso, a maior parte do silenciamento é feito a palestinos com
cidadania israelense. Eles são mandados para a prisão por postar um story que
as autoridades não gostem no Instagram.
·
Como foram seus procedimentos
legais e detenção?
SO - O julgamento levou cinco minutos, é muito curto. Na segunda vez,
levou cerca de trinta segundos para me mandarem para a cadeia. O juiz apenas me
perguntou: “Alguma coisa mudou? Você ainda acredita nos mesmos ideais?” e me
mandou para a prisão quando eu disse sim. É uma corte marcial típica, não é
como em um tribunal civil.
Meu tempo na prisão obviamente não foi uma experiência divertida, mas me
deu uma visão mais clara de como os militares operam por dentro. Eu
experimentei a desumanização de perto. Eles usam força e violência para
resolver qualquer problema. Isso não é uma coincidência: é projetado para
funcionar assim.
A maioria dos prisioneiros são desertores ou desertores do recrutamento.
Eles vêm de origens pobres, porque o serviço militar não é remunerado o
suficiente e eles precisam trabalhar para sustentar suas famílias, ou têm
condições médicas ou problemas de saúde mental, ou foram assediados sexualmente
na base. Conheci muitas mulheres jovens que falaram sobre serem assediadas, mas
nada aconteceu até que eventualmente elas tiveram que fugir. Elas não recebem
nenhum apoio do exército. Em vez disso, são colocadas na prisão.
Na maior parte do meu tempo na prisão, tentei ajudar os prisioneiros a
refletir sobre como o exército os desumaniza e como isso está conectado à forma
como eles desumanizam os palestinos. Não foi divertido, mas foi significativo
de muitas maneiras, e nunca me arrependerei de fazer isso. É a única maneira de
viver com a consciência limpa.
·
Como você descreveria o papel dos
militares na sociedade israelense?
SO - Israel sempre foi uma sociedade muito militarizada. Gostamos de
dizer que Israel não é um país com um exército, mas um exército com um país.
Como israelense, você cresce com isso desde muito jovem, a propaganda se
infiltra em você. Aos quinze anos, você visita uma base militar por cinco dias
e aprende a atirar com uma arma e como tudo isso é ótimo. Soldados vêm à sua
escola e contam sobre seu papel no exército. Quanto mais combativa a função,
mais prestigiada ela é na sociedade. É também uma das primeiras perguntas que
lhe fazem em conversas informais: “Qual era seu papel no exército? O que você
fará no exército?”
Os israelenses são consumidos por uma narrativa muito unilateral de que
sempre seremos vítimas e nada além de vítimas, e é por isso que precisamos do
maior e mais forte exército do mundo para nos proteger. Ser um soldado e a
honra de lutar foram amplamente glorificados neste país. Acho que Israel sempre
foi assim, mas está mudando agora, está piorando e caminhando para uma
sociedade abertamente fascista e militarista. As ruas estão cheias de fotos de
soldados e slogans como “Juntos venceremos” ou “Eles nos trarão a vitória”.
·
A presença crescente de sionistas
religiosos nas FDI afetou o clima no exército de forma mais geral?
SO - A guinada à direita em Israel afeta todas as esferas da sociedade.
Uma das maiores mudanças é a maneira como eles agora falam abertamente sobre
seus planos. No passado, era meio disfarçado, tipo, “Estamos cometendo crimes
de guerra e fazendo coisas horríveis, mas não queremos transmitir isso para o
mundo inteiro, ou mesmo para o país inteiro.” Agora, está se tornando cada vez
mais popular e menos apologético. Eles dizem abertamente que temos que matar
mais palestinos, que temos que anexar Gaza, que precisamos de mais supremacia
judaica.
Obviamente, nem todos em Israel se sentem assim, mas quando você olha
como o exército muda as pessoas para serem mais de direita e como [o Ministro
da Segurança Nacional Itamar] Ben-Gvir está criando suas próprias unidades
armadas de colonos e nomeando policiais leais para posições de liderança, a
deriva em direção ao militarismo e até mesmo ao fascismo é evidente. A maneira
de lutar contra essa trajetória é implementar uma mudança real no terreno, na
vida cotidiana das pessoas normais, para mostrar a elas que uma realidade
diferente é possível. Para isso, precisamos de pressão internacional.
·
Você está atualmente conduzindo
uma turnê de palestras pela Alemanha para conscientizar sobre seu movimento e
construir apoio para se opor à guerra em Gaza. Como o apoio alemão a Israel faz
você se sentir?
SO - Em geral, acho que todo apoio a Israel e ao que ele faz é imoral e
contraproducente. Ele está nos levando na direção errada e só agrava ainda mais
a situação. O apoio alemão em particular é obviamente motivado pela culpa pelo
Holocausto, que também é usada politicamente na sociedade israelense. “Veja o
que nos custou chegar aqui! Temos que garantir que isso nunca mais aconteça.”
Na sociedade israelense, isso significa: “Certifique-se de que isso
nunca mais aconteça com o povo judeu”. Não acho que essa seja a
lição certa do Holocausto. A única maneira de olhar para o Holocausto de uma
forma verdadeiramente respeitosa e produtiva é garantir que algo assim nunca
mais aconteça com ninguém. Portanto, eu pediria à sociedade e aos políticos
alemães que parassem de apoiar o governo israelense e parassem de usar o
Holocausto como algum tipo de justificativa para o que está acontecendo hoje.
Um crime não pode justificar outro.
O apoio alemão está obviamente prejudicando os palestinos, mas também
prejudica Israel a longo prazo. Se você realmente quer que os judeus vivam em
paz e segurança, então precisa apoiar um caminho justo e diplomático, não esse
ciclo de derramamento de sangue. Todos nós perdemos na guerra. Todos nós ganhamos
na paz. E apoiar essa guerra significa se posicionar contra a
paz.
·
Que lições você tirou da sua
experiência como objetora de consciência e o que você gostaria de transmitir
aos outros?
SO - Tenho que dizer que não é legal encorajar a recusa em Israel, mas
eu encorajaria as pessoas a fazerem perguntas! Aprendi a ouvir e a me comunicar
melhor. É importante saber com quem você está falando, para entregar uma
mensagem que possa ser digerida. Isso também está conectado ao uso da palavra
“genocídio”. As palavras têm significado e, por definição, genocídio é o termo
certo para descrever o que está acontecendo em Gaza. Mas em algumas conversas,
se você usar as palavras genocídio ou apartheid, algumas pessoas simplesmente
pararão de ouvir. Então, eu nem sempre uso essas palavras, mas não porque eu
não acredite que elas sejam precisas, e sim porque eu quero alcançar todos os
tipos de pessoas e tentar mudar suas mentes.
O mesmo é verdade em relação à acusação de antissemitismo: é uma tática
muito útil para suprimir críticas. Em Israel, todo tipo de crítica é denunciado
como antissemitismo — especialmente críticas palestinas, é claro. Como eu já
disse, eu mesmo também fui chamada de judia que odeia a si mesma e até mesmo de
antissemita. Uma vez que você faz as pessoas acreditarem que estamos sendo
criticados pelo que somos, judeus, e não pelo que Israel está fazendo, você
pode bloquear a crítica e se unir em torno da bandeira, ao longo das linhas de
“Todo mundo nos odeia, só temos a nós mesmos”.
O antissemitismo e a islamofobia estão aumentando em todo o mundo, mas a
grande maioria das críticas que Israel está enfrentando não são antissemitas —
são críticas que um país enfrenta quando comete crimes de guerra. Estou feliz
que as pessoas ao redor do mundo estejam pedindo o fim do apartheid e um
cessar-fogo. Tenho certeza de que, para algumas pessoas, as críticas a Israel
vêm do antissemitismo, mas, por outro lado, acho que muitas pessoas que apoiam
Israel também são antissemitas! A correlação entre antissemitismo e críticas a
Israel é muito menor do que muitas vezes é feita.
·
E as pessoas do outro lado do
espectro, por assim dizer, que veem o Hamas como algum tipo de força
descolonizadora ou anti-imperialista?
SO - Acho que isso é errado e improdutivo; é como se eles tivessem
fechado o círculo e agora compartilhassem as visões da direita israelense, mas
com uma retórica diferente. Eu pessoalmente perdi alguém em 7 de outubro, nada
pode justificar o que aconteceu naquele dia. Mas não aconteceu do nada.
Entender por que aconteceu é o único caminho a seguir.
Pessoas que vivem sob violência constante e perdem toda a esperança
acabarão recorrendo à violência elas mesmas. Eu simplesmente não acredito que a
resistência violenta será produtiva. Matar civis israelenses ou pedir que os judeus
voltem para a Europa é imoral, improdutivo, e é insano pensar que isso vai
funcionar. É simplesmente impossível. Também é muito semelhante a como a
direita israelense fala sobre os palestinos: dizer que não há palestinos
inocentes é a contrapartida de dizer que não há israelenses inocentes.
Então, novamente, temos que entender o tipo de vida que os palestinos
vivem e o papel que Israel tem na criação dessas condições. É um ciclo de
derramamento de sangue e violência, no qual a violência israelense é a força
motriz. A única maneira de enfraquecer o apoio à resistência violenta, então, é
Israel quebrar o ciclo. Israel tem tanto a responsabilidade quanto o poder de
fazer isso.
Eu convidaria todos a darem uma longa e dura olhada na situação e
tentarem visualizar um caminho a seguir. Pergunte a si mesmo, os assassinatos
em massa realmente resolverão isso? Não seja movido pela vingança. Você não
pode comprar o paraíso com sangue.
Fonte: Jacobin
Brasil
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