Por que caso da
ditadura retratado no filme ‘Ainda estou aqui’ segue sem resolução no STF
Mais de meio século
após o desaparecimento do deputado federal Rubens Paiva na ditadura militar, um
dos episódios mais emblemáticos de violação de direitos humanos da história
do Brasil, o país revisita o caso em duas frentes em buscas de respostas,
enquanto, em uma terceira, ele segue sem desfecho.
No
cinema, Ainda Estou Aqui, filme de Walter Salles inspirado no livro homônimo
de Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado, e que se tornou um sucesso de
bilheteria e crítica, retrata os impactos da perda de Paiva sobre sua esposa,
Eunice, e seus cinco filhos no Rio de Janeiro dos anos 1970, durante os anos de chumbo.
A atuação como
Eunice rendeu à atriz
Fernanda Torres o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Filmes Dramáticos. O filme
brasileiro também estava indicado como Melhor Filme de Lingua Estrangeira, mas
não levou.
Ainda Estou
Aqui também foi premiado como melhor roteiro no Festival de Veneza e foi
pré-indicado a Melhor Filme Estrangeiro do Oscar.
Enquanto isso, o
governo federal reabriu uma investigação do caso sobre o que de fato aconteceu
com Rubens Paiva.
O deputado foi
cassado e preso em 1971 e dado como desaparecido. Sua morte, confirmada só 40
anos mais tarde, segue até hoje sem que os culpados tenham sido
responsabilizados.
Isso porque a denúncia
do caso, feita há uma década, está no Supremo Tribunal Federal (STF). A demora
é tal que três dos cinco militares acusados pelo crime já morreram.
Depois de seis anos
sem qualquer movimentação, em 24 de outubro deste ano o ministro Alexandre de
Moraes, responsável pelo caso, determinou que a Procuradoria Geral da República
se manifeste sobre o mérito do tema, informou à BBC News Brasil a assessoria de
imprensa da corte.
Esse impasse está
intimamente ligado ao debate sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia, que
concedeu perdão tanto a perseguidos políticos quanto a agentes do Estado que
cometeram crimes durante o governo militar.
No centro da
questão, há uma discussão se os crimes daquele período podem ou não ser ainda
punidos e, em última instância, a disposição da sociedade brasileira de acertar
as contas com um dos períodos mais violentos de sua história recente.
Este é o cerne
de Ainda Estou Aqui, diz Marcelo Rubens Paiva à BBC News Brasil, em que
sua mãe, Eunice, interpretada por Fernanda Torres, é apresentada como uma
mulher forçada a se reinventar diante da violência do Estado e a criar um novo
futuro para sua família.
Seu livro e o longa
derivado dele propõem mais do que uma reconstituição histórica. São uma
reflexão sobre a impunidade e a resistência à revisão de crimes da ditadura
militar, tema que permanece atual e controverso no país.
“O nosso papel como
cineasta, escritor, roteirista, pessoa das artes é falar aquilo que os vencidos
não conseguem falar”, diz o filho do deputado.
“Mostrar,
denunciar, apontar, é muito complicado em um país que sofreu um processo de
ditadura tão longo e que na redemocratização fez um pacto sinistro entre a
sociedade civil e os torturadores.”
·
Por
que caso Rubens Paiva está sem resolução no STF
Rubens Beyrodt
Paiva nasceu em 1929, em Santos, São Paulo. Casado com Eunice Facciolla Paiva,
era pai de cinco filhos: Vera, Maria Eliana, Ana Lúcia, Marcelo e Maria
Beatriz.
Formado em
engenharia, Paiva foi eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB) em 1962.
Durante seu tempo
na Câmara dos Deputados, destacou-se como relator da Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que
investigava o financiamento de grupos que conspiravam contra o governo de João
Goulart.
Com a instalação do
regime militar, em 10 de abril de 1964, seu mandato foi cassado, levando-o ao
exílio na Iugoslávia.
Após retornar ao
Brasil em novembro do mesmo ano, Paiva estabeleceu-se com a família em São
Paulo e, posteriormente, no Rio de Janeiro, em uma residência na Avenida Delfim
Moreira, no bairro do Leblon.
Ele atuava como
diretor-gerente de uma empresa de engenharia e fundações, cultivando relações
com jornalistas e políticos de oposição.
No entanto, em
1971, Rubens Paiva foi sequestrado por agentes do regime militar e, conforme
denúncia do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, morreu no antigo
DOI-Codi, na Tijuca, na zona norte da capital.
Foi somente durante
a Comissão Nacional da Verdade (CNV) que foi confirmada a morte de Rubens
Paiva.
A comissão,
instituída em 2012, no governo de Dilma Rousseff, tinha como objetivo
investigar e documentar as violações dos direitos humanos durante a ditadura
militar.
Durante a comissão,
foi confirmado e esclarecido que Rubens Paiva foi torturado e morto em
instalações militares.
Em 2014, a CNV
apresentou informações sobre o caso do desaparecimento do ex-deputado Rubens
Paiva.
Em um relatório
parcial divulgado no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, a CNV apontou o então
tenente Antônio Fernando Hughes de Carvalho como um dos torturadores
responsáveis pela morte de Paiva.
Essa revelação veio
à tona com base no depoimento de uma testemunha, identificada apenas como
"agente Y", que afirmou ter visto um dos militares pressionar o
ex-deputado contra uma parede durante uma sessão de tortura no Destacamento de
Operações de Informações (DOI).
Segundo o
relatório, Rubens Paiva morreu em decorrência das torturas infligidas pelos
militares. Apesar das novas provas, como recibos de pagamento de diárias que
contradizem a versão de que José Antônio Nogueira Belham, comandante do
Doi-Codi à época, estaria de férias durante a prisão e morte de Paiva, o
destino final do corpo do ex-deputado ainda não foi esclarecido.
Cláudio Fonteles,
ex-procurador geral da República e um dos coordenadores da Comissão Nacional da
Verdade, explica que a recusa das Forças Armadas em abrir seus arquivos,
mantendo a documentação sob sigilo, dificultou a investigação dos crimes.
Neste sentido, os
depoimentos colhidos pela comissão tiveram um papel central.
“Nesses crimes
antigos, as provas testemunhais são muito importantes”, pontua Marlon Alberto
Weichert, procurador regional da República e coordenador do Grupo de Trabalho
Memória e Verdade da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.
“Especialmente nos
casos de graves violações a direitos humanos, onde as evidências da tortura se
perdem um pouco com o tempo e a documentação até hoje é mantida sob sigilo.”
Em 2014, após
investigações iniciadas em 2011, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou
cinco ex-integrantes do sistema de repressão da ditadura militar pelo
assassinato e ocultação do cadáver do deputado Rubens Paiva. As acusações
incluíam homicídio doloso, ocultação de cadáver, associação criminosa armada e
fraude processual.
Os denunciados
foram José Antonio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e
Souza, Jacy Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos.
A Justiça Federal
do Rio de Janeiro aceitou a denúncia, que foi mantida pelo Tribunal Regional da
2ª Região.
Esse desdobramento
foi considerado um marco pelos membros do MPF, pois representou a primeira ação
penal contra militares por homicídios ocorridos durante a ditadura. Os acusados
solicitaram um habeas corpus à 2ª turma do TRF2, mas o pedido foi negado.
A defesa dos réus,
então, recorreu ao STF alegando que a anistia já havia sido discutida na
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, que é um
instrumento jurídico utilizado no Brasil para questionar atos do Poder Público
que violem preceitos fundamentais da Constituição, como direitos humanos
básicos.
Em 29 de setembro
de 2014, apenas 19 dias após o julgamento do habeas corpus, o
ministro-relator Teori Zavascki concedeu uma liminar para suspender o andamento
do processo.
Zavascki faleceu em
2017 em um acidente de avião, e o processo foi paralisado. Em 2018, o caso foi
encaminhado ao ministro Alexandre de Moraes, que sucedeu Zavascki e herdou os
processos pendentes.
<><> Lei
da Anistia em xeque
Os rumos do caso
Rubens Paiva está ligado a uma discussão sobre a constitucionalidade da Lei da
Anistia.
Esta legislação,
decretada em 1979, durante a ditadura, ao conceder perdão geral aos crimes
cometidos durante o regime, permitiu por um lado o retorno de exilados e a
libertação de presos políticos.
Por outro,
ressaltam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, impediu que agentes da
ditadura que torturaram e mataram opositores do governo militar fossem
processados.
“A transição
controlada, dominada pelos militares, com as elites brasileiras, levou a esse
modelo de impunidade e de esquecimento”, diz Weichert.
“Esses assuntos
foram assuntos interditados, assuntos proibidos.”
Em 2010, o STF
decidiu que a Lei da Anistia é constitucional, o que é questionado ainda hoje.
Para Claudio
Fonteles, a Lei da Anistia é inconstitucional, porque contraria princípios
fundamentais da Constituição Federal.
Ele argumenta que
uma lei ordinária, como a Lei de Anistia, não pode, sob a ótica constitucional,
anistiar crimes cometidos por aqueles que violaram o Estado Democrático de
Direito, já que a Constituição é a base permanente da democracia e deve ser
preservada acima de qualquer legislação infraconstitucional
“Manter essa lei é
preservar a figura do torturador. Não colabora para a defesa da democracia e
coloca uma pedra sobre esse assunto”, afirma Fonteles à BBC News Brasil.
Weichert argumenta
que, apesar da decisão do STF ter declarado a Lei de Anistia constitucional, a
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a considerou incompatível com a
convenção americana sobre direitos humanos.
Exemplos de
processos envolvendo o Brasil na CIDH incluem os casos da guerrilha do Araguaia
(Gomes Lund), do jornalista Vladimir Herzog e Collen Leite, todos levados à
Corte após a comissão ter realizado esse procedimento.
Em decisões
importantes, a Corte Interamericana declarou que tanto crimes contra a
humanidade quanto graves violações de direitos humanos são imprescritíveis e
não podem ser anistiados.
O fato de os
próprios militares terem decretado a lei que perdoa os crimes cometidos por
agentes do regime seria uma forma de “autoanistia”, defende Sergio Suiama,
procurador da República do Ministério Público do Rio de Janeiro.
“Isso é
inadmissível em casos de crimes contra a humanidade”, pontua Suiama.
O procurador destaca
que isso tem travado o avanço de ações penais como a de Rubens Paiva.
"O caso de
Rubens Paiva está suspenso devido a essa indefinição”, diz Suiama.
Segundo Suiama, o
MPF já propôs mais de 40 ações penais, mas a maioria delas foi suspensa ou
derrubada justamente porque o STF não julga essas arguições de descumprimento
de preceito fundamental (ADPF).
“As provas reunidas
durante a investigação do MPF, incluindo confissões de farsa em tentativas de
fuga, permanecem sem análise de mérito, esperando por uma decisão que determine
se esses crimes são ou não imprescritíveis".
O advogado Rodrigo
Roca, que representa os acusados de torturar e matar Rubens Paiva, questiona a
argumentação de que os crimes da ditadura podem ser enquadrados como crimes
contra a humanidade.
Segundo Roca, para
ser um crime contra a humanidade, a conduta precisa ter sido voltada contra uma
população civil, o que, segundo ele, não seria o caso.
“Uma conduta para
ser considerada crime contra a humanidade, ela precisa se voltar contra a população
civil como um todo. E não contra determinados grupos insurgentes. Isso
legalmente, ou seja, tecnicamente, penso até que dogmaticamente, não poderia
jamais ser tipificado como crime contra a humanidade”, diz.
O advogado avalia
ainda que o processo movido pelo MPF que busca um desfecho para a morte de
Rubens Paiva, iniciado durante o governo Dilma e na esteira das conclusões da
Comissão da Verdade, teve um "viés político".
Segundo ele, sempre
que um governo de esquerda chega ao poder, há um "recrudescimento desse
movimento", que ele qualifica como "delírios”.
“É preciso se
perguntar antes a quem isso vai interessar, qual é a relação custo-benefício de
uma nova mobilização dessas, do governo, de alguns setores do judiciário, em
torno de pessoas com questões jurídicas plenamente resolvidas, quer dizer, é
uma perda para todos, é uma guerra sem vencedores”, acrescenta.
“Há um revolvimento
de uma matéria jurídica já bem desgastada e resolvida do ponto de vista social.
Caberia ao plano jurídico apenas aderir a essa consciência popular e por um fim
nessa história”, acrescenta.
·
Governo
reabriu investigação do caso
Em paralelo, o
Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão do Ministério dos Direitos
Humanos e da Cidadania, reabriu o caso em abril deste ano.
O objetivo é
investigar e produzir mais provas que comprovem o que aconteceu com Rubens
Paiva.
Em agosto de 1971,
o caso foi arquivado pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana
(CDDPH), órgão antecessor do atual Conselho Nacional de Direitos Humanos
(CNDH).
A votação
evidenciou divisões: enquanto membros ligados à ARENA (Aliança Renovadora
Nacional) apoiaram o arquivamento, representantes do MDB e da OAB se
posicionaram contra.
O então ministro da
Justiça, Alfredo Buzaid, exerceu o voto de desempate, decidindo pelo
arquivamento. A justificativa oficial baseou-se em informações falsas do
Exército, que alegava que Rubens Paiva havia desaparecido após uma intervenção
de desconhecidos durante sua detenção.
Essa versão foi
desmentida posteriormente pela Comissão Nacional da Verdade. Ademais, um dos
conselheiros que votou pelo arquivamento afirmou ter sido coagido a tomar essa
decisão.
Segundo André
Carneiro, vice-presidente do CNDH, a medida tem caráter administrativo, com
possibilidades de contribuir com essa ação penal do MPF.
Carneiro afirma
ainda que será produzido um relatório que conterá recomendações ao Poder
Público específicas para o caso Rubens Paiva e também gerais sobre o direito à
memória, à verdade e à Justiça. O documento deve ser entregue até o fim deste
ano.
“Como existe um
processo no STF, esse relatório será entregue ao MPF e compartilhado com o
Supremo”, ressalta Carneiro.
“Esse caso é
bastante simbólico.Tratava-se de um ex-deputado federal, alguém que não tinha
vínculo com a luta armada. A forma como foi tratado revela a estrutura de
funcionamento de espionagem e uma máquina de tortura no país.”
Marcelo Rubens
Paiva reforça a importância de manter viva a memória do pai, seja por filmes,
livros ou reportagens.
Para o escritor, a
forma de impedir que a ditadura volte é colocar em evidência o aconteceu
durante o regime — e isso inclui o assassinato de Rubens Paiva.
“Tem que mostrar o
que é a ditadura, o que foi o AI-5, o que foi a tortura, o que foi o Estado
autoritário”, diz Marcelo Rubens Paiva.
“É algo que não se
deve defender jamais.”
Fonte: Brasil 247
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