O efeito colateral
'escondido' do câncer sobre o qual não se fala e que afeta centenas de milhões
de pessoas
Durante
uma visita ao oncologista para discutir
seu tratamento de câncer, meu falecido tio
apontava para suas pernas. Os dois membros estavam inchados, com cerca de três
vezes seu tamanho normal.
O
enorme inchaço o deixava exausto e com dores. Ele era incapaz de se movimentar
normalmente.
"Oh,
isso é linfedema e não podemos fazer nada a respeito, só posso dizer
isso", respondeu o médico. Ele ignorou as dores e as preocupações do meu
tio.
Eu
me lembro de ter ficado chocada com o comportamento indiferente do médico em relação a
uma condição que causava tanto desconforto e sérios problemas de mobilidade ao
meu tio.
Muitos pacientes com
câncer ou que passam por tratamento de câncer podem sofrer linfedema. Aquela não era
uma condição exclusiva do meu tio e eu não conseguia acreditar que não houvesse
nada que o médico pudesse fazer para aliviar as suas dores.
O
linfedema é incrivelmente comum. Ele atinge 250 milhões de pessoas em todo o
mundo.
No
Reino Unido, 450 mil indivíduos sofrem de linfedema. Já nos Estados Unidos,
existem até 10 milhões de pessoas com esta condição.
Ainda
assim, ele permanece sendo uma "doença oculta" – que recebe pouca
atenção, é pouco pesquisada e subdiagnosticada.
O
linfedema é uma condição crônica e incurável. Ele causa inchaço excessivo,
devido a uma lesão no sistema linfático, a rede responsável por manter o
equilíbrio dos fluidos nos tecidos do corpo.
A
doença surge quando uma lesão ou distúrbio do sistema linfático impede que o
fluido linfático seja drenado adequadamente do corpo.
O
sistema linfático é uma rede de glândulas e vasos que faz parte do sistema
circulatório do corpo. Ele desempenha papel fundamental na retirada do excesso
de fluido e proteínas que vazam dos tecidos, filtrando e devolvendo o fluxo
para a corrente sanguínea.
Ele
é fundamental para a função imunológica, remoção de resíduos e manutenção do
equilíbrio correto de fluidos do nosso corpo.
O
sistema linfático também serve de linha de defesa contra doenças. Ele promove a
circulação contínua dos glóbulos brancos conhecidos como linfócitos,
responsáveis pelo combate aos vírus, bactérias, fungos e parasitas.
Se,
algum dia, você ficou doente e sentiu uma protuberância misteriosa no seu
pescoço, muito provavelmente era o seu sistema linfático ajudando a combater
uma infecção.
"O
sistema linfático é muito complexo", explica Kimberley Steele, ex-cirurgiã
bariátrica da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, nos Estados Unidos. Ela
é gerente dos programas de pesquisa linfática da ARPA-H, uma agência de saúde
do governo federal americano.
"Ele
permeia todos os órgãos e tecidos", explica ela. "E, como cirurgiões,
não conseguimos vê-lo porque os vasos linfáticos são translúcidos. Só podemos
apreciar o quanto ele faz por nós quando somos realmente afetados."
Demonstrou-se
que a desregulagem do sistema linfático é uma característica fundamental de
muitos distúrbios crônicos, como insuficiência cardíaca, mal de Alzheimer,
doença intestinal inflamatória e câncer.
·
Pandemia silenciosa
"O
linfedema pode afetar qualquer pessoa, sem discriminação de gênero, idade,
etnia ou posição socioeconômica", segundo Karen Friett, executiva-chefe da
organização britânica sem fins lucrativos Rede de Apoio ao Linfedema.
Esta
condição é uma consequência comum de certos tipos de câncer e seus tratamentos,
como cirurgia ou radioterapia, que podem danificar ou remover os nódulos
linfáticos.
Uma
em cada cinco mulheres que recebem tratamento para câncer de mama, por exemplo,
sofre de linfedema, enquanto 2-29% dos tratamentos de câncer da próstata
resultam no surgimento da condição. E ela pode ocorrer em 90% dos casos de
câncer da cabeça e do pescoço.
Mas
o câncer não é a única causa. O linfedema pode também ser uma condição
genética, que faz as pessoas nascerem com linfedema primário, ou pode ser
resultado de lesões, obesidade ou infecções – o linfedema secundário.
O
escritor Matt Hazledine é o fundador da Lymphoedema United Ltd. Ele desenvolveu
linfedema secundário em 2011, após um caso grave de celulite infecciosa, uma
infecção bacteriana potencialmente mortal que pode escalar rapidamente para
sepse.
"A
infecção surgiu do nada, em uma experiência muito dolorosa", relembra
Hazledine. "Seu subproduto foi um inchaço muito grave na minha perna
esquerda, que foi diagnosticado como linfedema."
Sua
perna inchou tanto que ficou cerca de 60% maior. Ele ganhou 8 kg de peso.
"Com 40 anos de idade, aquilo mudou a minha vida", ele conta.
Os
pacientes com linfedema enfrentam enormes consequências físicas, psicológicas e
socioeconômicas.
A
condição pode não se restringir às dores. Ela pode desfigurar o paciente,
causando perda de mobilidade e independência, redução da produtividade e
depressão.
Como
não existe cura, o tratamento da condição, em grande parte, é paliativo e exige
meticulosa gestão diária. Mas estas medidas raramente são adotadas, devido à
grave falta de serviços, conhecimento e, em muitos países, disponibilidade para
todos os casos.
Nos
Estados Unidos, o acesso ao tratamento é irregular e as companhias de
seguro-saúde oferecem cobertura, quando muito, somente para alguns dos
tratamentos disponíveis.
"Para
muitas pessoas, é impossível tentar ter acesso ao nível básico de
assistência", segundo Friett.
"Os
serviços de apoio para o linfedema [no Reino Unido] estão sendo encerrados, os
pacientes são ignorados e sua condição piora a cada dia, pois não existe
assistência suficiente para eles."
Hazledine
compara seus primeiros anos ao tentar cuidar do seu linfedema como
"vaguear na neblina espessa".
Ele
conta que ouviu de sobreviventes de tratamento de câncer que "eles queriam
que o câncer os tivesse levado, porque eles acordam toda manhã com um lembrete
da sua jornada através da doença, com o linfedema à sua frente".
"Eles
realmente consideram o linfedema um desafio maior do que o câncer", conta
Hazledine.
Alguns
médicos tratam o linfedema como uma pandemia ignorada, devido aos problemas
crônicos e significativos de saúde pública causados em todo o mundo.
Comparativamente
com outras doenças, existem poucos profissionais especializados no seu
tratamento, o que traz encargos substanciais aos recursos de saúde. A gestão da
condição é quase impossível para a maioria dos pacientes.
A
condição permanece subdiagnosticada, subpesquisada e subfinanciada na maioria
dos sistemas de saúde. Isso se deve principalmente à falta de conscientização e
de conhecimento sobre a doença.
O
resultado é que os pacientes podem esperar décadas por um diagnóstico, enquanto
seus sintomas pioram progressivamente, até o ponto de incapacitá-los.
"Eu
não conseguia tratar porque não sabia o que era", conta Amy Rivera. Ela
nasceu com linfedema primário.
Depois
de 32 anos de diagnósticos errados, estigmatização e isolamento, Rivera
finalmente encontrou um especialista que conseguiu diagnosticá-la com a doença
de Milroy, um raro distúrbio linfático.
Naquela
altura, os sintomas do linfedema já eram tão graves que Rivera enfrentava
dificuldades diárias para poder completar sua graduação em enfermagem.
"Minha
perna esquerda era 200% maior do que a direita", ela conta. "Era
muito pesado e doloroso. Eu não conseguia usar saias, não conseguia usar roupas
hospitalares [e] não conseguia ficar em pé."
A
condição fez com que Rivera precisasse desistir da enfermagem, mudar de
profissão e, por fim, criar uma organização para promover a consciência sobre a
condição – a fundação Ninjas Lutando contra o Linfedema.
Agora,
ela também dirige a empresa Rivera Hybrid Solutions, que oferece treinamento e
equipamentos para a gestão dos sintomas do linfedema.
Rivera
conta que passou anos com os médicos frequentemente ignorando ou menosprezando
suas dores e seus sintomas – e que esta falta de conscientização piorou sua
situação.
Ela
disse que seus médicos trataram mal da condição, prescrevendo medicação
diurética, que causou insuficiência renal quando ela era criança.
"Sofri gaslighting de um médico
grosseiro que disse 'você estará em uma cadeira de rodas com 35 anos, então é
melhor fazer o que puder agora e aproveitar a vida como ela é. Só está inchando
e não há nada que possamos fazer a respeito'", relembra ela.
Rivera
passa seis a sete horas por dia cuidando da sua condição.
"O
linfedema não é só questão de inchaço. É doloroso, é debilitante", explica
Friett. "Ele prejudica todos os aspectos da sua vida."
·
Complicação mortal
Os
pacientes com linfedema também enfrentam alto risco de desenvolver celulite
infecciosa recorrente, uma infecção das camadas da pele abaixo da superfície e
do tecido subjacente.
É
uma causa importante de consultas ao pronto-atendimento e pode resultar em
longas internações hospitalares. Os pacientes costumam ter dificuldades para
obter um diagnóstico, o que gera frustração e atrasos, que podem piorar a
condição.
"Eu
gritava de agonia, tentando não desmaiar. Porque eu sabia que não estava bem
com temperatura de 41 ºC", conta a britânica Didi Okoh, medalhista de
bronze nas Paralimpíadas de Paris 2024, que sofre de linfedema primário.
Okoh
conta que os médicos do pronto-atendimento a ignoraram repetidamente quando ela
desenvolveu celulite infecciosa por duas vezes. "Era literalmente questão
de vida ou morte", relembra ela.
"Eu
fui deixada duas vezes sem tratamento, uma por sete horas e outra por três
horas, mesmo tendo todos os sintomas de celulite infecciosa e dizendo [aos
médicos] que eles precisavam me administrar antibióticos rápido, antes que eu
entrasse em sepse."
Cada
surto de celulite infecciosa a deixou com lesões irreversíveis aos tecidos da
perna. "Sempre que tenho infecção naquela perna, ela é lesionada",
explica Okoh. "Ela volta a crescer e não consigo reduzi-la para o tamanho
anterior."
"Se
tratarmos do linfedema adequadamente, reduziremos a incidência da celulite
infecciosa", explica Friett. "Ela é uma das causas mais comuns de
internação de emergência nos hospitais."
Na
Inglaterra, por exemplo, o serviço público de saúde britânico NHS gasta cerca
de 178 milhões de libras (US$ 225 milhões, cerca de R$ 1,38 bilhões) com
internações hospitalares por complicações de linfedema. Grande parte delas é
causada pela celulite infecciosa.
Nos
Estados Unidos, os pacientes com linfedema representam cerca de US$ 270 milhões
(cerca de R$ 1,67 bilhão) em gastos hospitalares, todos os anos.
Estes
custos poderiam ser evitados se os pacientes tivessem tratamento adequado,
segundo as organizações que defendem melhor reconhecimento da condição.
Um
estudo encomendado pela Parceria Nacional pelo Linfedema no Reino Unido
demonstrou que, com tratamento adequado, é possível reduzir as complicações em
94% e as internações hospitalares em 87%.
·
Linfedema: o custo invisível
Mesmo
desempenhando um papel tão vital no nosso corpo, o sistema linfático é quase
totalmente ignorado na maior parte dos sistemas de formação médica. Uma
pesquisa realizada nos Estados Unidos concluiu que, ao longo de toda a
graduação na faculdade medicina, menos de 25 minutos são dedicados ao sistema
linfático.
Este
fator, aliado à grave falta de pesquisas e financiamento para encontrar soluções
de tratamento, fez com que o linfedema fosse praticamente esquecido, apesar do
seu enorme impacto causado a milhões de pacientes.
"Estamos
pelo menos 100 anos atrasados nas pesquisas [sobre o sistema linfático]",
afirma a professora e médica clínica Kristiana Gordon, do Hospital
Universitário St. George's, em Londres – o único hospital de ensino no Reino
Unido a ter um módulo dedicado ao sistema linfático no seu curso de graduação
em medicina.
"Mesmo
se os estudantes não se interessarem pelo linfedema, eles pelo menos terão
observado e ouvido falar nele", explica ela. "E saberão para onde
encaminhar os pacientes."
·
Disparada dos custos
No
Reino Unido, existem apenas cinco médicos dedicados e especializados em
linfedema, em dois centros de atendimento, segundo Gordon.
Os
pacientes, muitas vezes, precisam viajar por longas distâncias para consultar
um médico especialista. São relativamente poucos médicos com o nível de
conhecimento necessário.
Os
pacientes de Gordon, por exemplo, viajaram da Escócia, ilhas Falkland/Malvinas
e da América do Norte, pois "não tinham para onde ir".
A
falta de apoio e tratamento disponível para pacientes com linfedema faz os
custos dispararem, tanto para o paciente quanto para os serviços de saúde.
Estudos
indicam que cerca de 70% dos pacientes com linfedema não recebem o tratamento
necessário. Isso gera complicações que exigem ainda mais cuidados.
Um
estudo concluiu que, para cada libra esterlina (cerca de R$ 7,78) gasta em
serviços para o tratamento de linfedema, o NHS britânico economiza 100 libras
(cerca de R$ 778).
Uma
análise global concluiu que pacientes de câncer de mama que desenvolvem
linfedema podem gastar até US$ 8.116 (cerca de R$ 50,3 mil) por ano em diversos
tipos de tratamento.
Nos
Estados Unidos, sobreviventes de câncer com linfedema não conseguem pagar pelo
tratamento da sua condição. Os custos são até 112% mais altos, em comparação
com pacientes que não sofreram linfedema.
E
a condição não prejudica apenas suas economias, mas também sua produtividade.
Pacientes
com câncer de mama que sofrem de linfedema enfrentam custos diretos adicionais
de até US$ 2.574 (cerca de R$ 15,9 mil) por ano, além de custos indiretos de
até US$ 5.545 (cerca de R$ 34,3 mil) por ano. E as pessoas com condições
socioeconômicas desfavoráveis são as mais prejudicadas.
Ainda
assim, os serviços de assistência aos pacientes com linfedema são geralmente
subfinanciados, menosprezados e ignorados. Mas os estudos demonstram que muitos
dos pacientes que recebem assistência adequada apresentam resultados muito
bons.
"Muitas
pessoas podem viver bem com linfedema", explica Hazledine. "Se elas
puderem se informar, conseguir o plano de tratamento correto e o apoio ideal de
um profissional de assistência médica logo no começo, tudo isso pode ajudar a
montar sua rotina de autogestão."
Hazledine
conta que, quando foi diagnosticado, em 2011, não havia informação sobre onde
pedir ajuda ou cuidados por tempo prolongado.
"Quando
fui ao [médico], o linfedema era desconhecido. Na época, ele não sabia para
onde me encaminhar para conseguir ajuda", relembra ele.
"Infelizmente,
é a mesma história em 2024 – [os médicos] ainda não sabem o suficiente sobre o
linfedema."
Atualmente,
Okoh, Hazledine e Rivera conseguem administrar sua condição com eficiência e
viver bem com linfedema. Mas eles levaram anos até chegar a este ponto.
Para
evitar que outras pessoas enfrentem as mesmas dificuldades que eles tiveram uma
década atrás, Hazledine e Rivera fundaram suas próprias organizações, para
ajudar os pacientes com linfedema.
"Eu
quis reduzir sua jornada para descobrir a estratégia correta de gestão e
apoio", conta Hazledine. Hoje, 13 anos depois de receber seu diagnóstico,
ele exclama:
"Você
não está sozinho. Você pode viver bem com linfedema."
Fonte: Por Katherine Wang, para
BBC Innovation
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