O que são
disruptores endócrinos, as perigosas substâncias presentes em plásticos,
alimentos e até no ar
Bisfenol A,
ftalatos, éteres de difenila polibromados, fluorosurfactantes… Essas
substâncias de nome complicado estão em muitos produtos, objetos, alimentos
e móveis com os quais
temos contato direto, todos os dias.
Conhecidos
genericamente como disruptores ou desreguladores endócrinos, eles geram uma
preocupação crescente entre profissionais da saúde e cientistas.
Há diversas
evidências de que centenas desses químicos fazem mal à
saúde ao bagunçar o funcionamento de glândulas e hormônios — e estão ligados a
diversas doenças, como infertilidade, ganho de
peso, diabetes e até alguns
tipos de câncer.
Mas que evidências
temos sobre o papel desses disruptores endócrinos? E existem meios de evitá-los
completamente — ou ao menos reduzir o contato com essas substâncias?
A BBC News Brasil
ouviu especialistas no tema para encontrar respostas para essas e outras
perguntas, como você confere a seguir.
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O
que são os disruptores endócrinos?
"Os
desreguladores são toda e qualquer substância que existe no meio ambiente, no
ar, na água ou na terra, que interfere de alguma maneira com o nosso sistema
endocrinológico", resume a médica Elaine Frade Costa, coordenadora da
Comissão de Endocrinologia Ambiental da Sociedade Brasileira de Endocrinologia
e Metabologia (Sbem).
Vale lembrar aqui
que o sistema endocrinológico é formado por glândulas — como o pâncreas, a
tireoide e as suprarrenais, entre outras — que fabricam hormônios — como
insulina, T3 e cortisol.
Essas substâncias
são essenciais para o funcionamento do corpo. A insulina, por exemplo, permite
que a glicose dos alimentos entre nas células para ser usada como fonte de
energia. Já o T3 dita o ritmo de funcionamento do organismo.
O grande problema é
que os disruptores endócrinos possuem uma estrutura química muito parecida com
a dos hormônios.
Com isso, eles
conseguem se encaixar nos mesmos receptores das células onde os hormônios agem
— e geram uma resposta alterada do organismo.
"É como se
fosse um mecanismo de chave e fechadura. Quando o desregulador se encaixa nos
receptores, ele pode atrapalhar o desenvolvimento endocrinológico, ou seja, a
ação ou a produção dos hormônios", explica Costa.
Até o momento, mais
de 800 substâncias diferentes foram classificadas como disruptores endócrinos.
Os mais famosos são
o bisfenol A (BPA) e os ftalatos, presentes em utensílios plásticos, além de
compostos que aparecem na poluição atmosférica de grandes cidades e alguns
pesticidas e herbicidas aplicados nas lavouras.
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Quais
os malefícios dos disruptores endócrinos à saúde?
Uma revisão sobre o
tema realizada por uma comissão de especialistas e publicada em agosto
de 2020 no periódico The Lancet resume os principais impactos dos
desreguladores na saúde humana.
Segundo os autores,
as evidências mais sólidas apontam que a exposição pré-natal (durante a
gestação) a éteres de difenila polibromados (composto usado como retardante de
chamas em móveis) e pesticidas organofosforados estão ligados ao baixo QI
(quociente de inteligência) e à deficiência intelectual.
O nível de
evidência para essa relação foi considerado de moderado a alto.
Ainda durante o
desenvolvimento embrional, há trabalhos que ligam alguns desreguladores a
transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), autismo, obesidade na
infância e na fase adulta, diabetes, câncer no testículo, infertilidade
masculina e endometriose.
A BBC News Brasil
entrou em contato com o líder da comissão para saber se novas evidências
surgiram nos quatro anos desde que o trabalho foi publicado.
O professor
Leonardo Trasande, chefe do Departamento de Pediatria Ambiental da Escola de
Medicina da Universidade de Nova York, nos EUA, compartilhou alguns
estudos publicados recentemente que ligam a exposição aos ftalatos
(presentes em alguns plásticos) a partos prematuros.
Costa destaca
algumas pesquisas sobre o assunto que foram realizadas no Brasil.
Em uma delas, foi
observada uma maior frequência de inflamações na tireoide entre pessoas que
moravam nas proximidades de um polo petroquímico no Grande ABC, em São Paulo.
Os autores
averiguaram que alguns poluentes presentes na água e no ar poderiam estar
relacionados a esse fenômeno.
Já um trabalho
experimental orientado por Costa avaliou o impacto de algumas substâncias
presentes no ar poluído do centro de São Paulo em roedores.
"Vimos que os
animais expostos, especialmente depois da fase pré-natal, tinham uma
desorganização importante na produção de espermatozoides", conta ela.
"Isso serve de
alerta e pode ajudar a explicar em parte a crescente incidência de
infertilidade entre casais humanos", complementa ela.
·
Qual
o nível de evidência científica disponível sobre o efeito dos disruptores
endócrinos?
A pesquisadora
Angélica Amato, da Universidade de Brasília (UnB), destaca que existem três
tipos de estudos que são feitos para avaliar os desreguladores.
"Um deles são
os trabalhos epidemiológicos que envolvem seres humanos. Eles investigam a
associação entre a exposição a um disruptor endócrino e a ocorrência de
doenças", diz ela.
Ou seja: os
pesquisadores avaliam uma população que, por um motivo ou outro, teve um
contato com alguma dessas substâncias para ver se eles apresentam uma
frequência maior de certas enfermidades em comparação com a média da região, do
país, do continente ou do mundo inteiro.
"Mas os
estudos epidemiológicos não são capazes de definir que essa associação
representa uma relação de causa e efeito", pondera ela.
As outras duas
possibilidades são as pesquisas experimentais. Aqui, a ideia é expor cobaias
(como roedores) ou células cultivadas em laboratório aos compostos químicos,
para ver como elas se comportam.
"Esses
trabalhos fornecem evidências de causa e efeito entre a exposição aos
disruptores endócrinos e os desfechos, como as doenças", observa Amato.
Mas, é claro, essa
estratégia também tem as suas limitações — afinal, um conjunto de células e uma
cobaia são modelos experimentais, mas não representam fielmente todas as
complexidades e particularidades do corpo humano.
As dificuldades não
param por aí: os métodos de pesquisa também não conseguem captar com exatidão o
impacto da exposição a múltiplos disruptores endócrinos.
Não sabemos qual o
efeito combinado ou acumulado de todas essas substâncias com as quais temos
contato diário por meio da comida, da água, do ar…
"Outra
dificuldade é que a maioria dos estudos avalia a exposição aos disruptores por
meio da concentração deles no sangue e na urina. O problema é que muitos estão
presentes por um curto período nesses fluidos, mas são armazenados em outros
tecidos do organismo", acrescenta a pesquisadora da UnB.
Mesmo com todas
essas barreiras, as pesquisas nessa área têm avançado — e por meio da
combinação de trabalhos epidemiológicos e experimentos em laboratório, permitem
entender melhor os efeitos de muitos dos desreguladores mais comuns.
Existem pessoas
mais vulneráveis aos disruptores endócrinos?
A resposta é sim.
Há uma preocupação maior com três momentos da vida: a fase intrauterina
(durante a gestação), a infância e a adolescência, que são consideradas janelas
de maior suscetibilidade.
"O principal
motivo é que, nessas fases, as células do corpo estão em maior movimento e em
constante renovação", justifica Costa.
"Portanto, se
você tiver contato com uma substância que interfere nesse processo, isso pode
causar alguma doença", complementa a endocrinologista.
Não à toa, os
principais estudos avaliam questões de saúde relacionadas à gravidez (parto
prematuro) e à infância e à adolescência (TDAH, autismo, deficiência
intelectual…).
Mas é claro que os
efeitos do contato com os disruptores no começo da vida pode cobrar um preço
mais tarde por meio de condições como infertilidade, obesidade, diabetes e
alguns tipos de câncer, como sugerem as evidências recentes.
"E também há o
conceito de desregulação endócrina transgeracional", diz a médica.
"Em outras
palavras, a exposição de pais e mães aos desreguladores altera os
espermatozoides ou os óvulos deles. Essa herança passa para o filho — e a
segunda ou a terceira geração desenvolve uma doença", detalha ela.
·
Quando
os disruptores endócrinos viraram uma preocupação?
Em linhas gerais,
dois fenômenos soaram o alerta dos especialistas.
"Primeiro,
observou-se o aumento de casos de um tipo de câncer vaginal em mulheres cujas
mães usavam uma pílula anticoncepcional chamada dietilestilbestrol",
lembra Costa.
Esse medicamento
era usado entre meados dos anos 1940 até a década de 1970, mas foi retirado das
farmácias há décadas.
Essa substância
agia como um desregulador endócrino e gerou um desfecho grave (e desconhecido
até então).
O segundo fenômeno
aconteceu entre jacarés e crocodilos que habitavam um lago da Flórida, nos
Estados Unidos, que estava contaminado com químicos, como o pesticida DDT.
Durante os anos
1990, alguns pesquisadores notaram que esses animais apresentavam anomalias
importantes no sistema reprodutivo.
Alguns machos
tinham uma baixa concentração de hormônios sexuais, como a testosterona, e uma
redução no tamanho do pênis.
Havia, inclusive,
um declínio na população desses animais, com um desequilíbrio relevante na
quantidade de machos — e uma abundância anormal no número de fêmeas.
Os trabalhos
mostraram que esse quadro poderia ser explicado pela presença elevada de
substâncias estrogênicas (ligadas aos hormônios femininos) no local.
·
O
que os governos podem fazer para proteger a população dos disruptores
endócrinos?
Os pesquisadores ouvidos
pela BBC News Brasil avaliam que as políticas públicas estão muito atrasadas na
regulamentação e no controle desses compostos químicos.
"Ainda falta
muito conhecimento das pessoas sobre os perigos dos desreguladores
endócrinos", observa Costa.
"A Europa e os
Estados Unidos estão um pouco mais avançados em relação às pesquisas, mas esses
lugares também não têm muitas políticas públicas nessa área", complementa
ela.
A médica diz que a
principal confusão envolve termos como toxicidade. Quando o assunto são os
disruptores, muitas vezes não existe um valor mínimo que o organismo consegue
suportar ou tolerar.
Alguns desses
elementos químicos fazem mal mesmo em baixíssimos níveis, pois essa quantia
reduzida já é suficiente para se encaixar nos receptores das células e causar o
estrago.
Para Amato, os
países precisam se valer do princípio da precaução — por mais que não tenhamos
evidências 100% sólidas sobre os malefícios dos disruptores, os indícios
disponíveis já são suficientes para exigir ações e cuidados dos governos.
"As políticas
de regulação à exposição aos disruptores endócrinos estão mais desenvolvidas e
são mais abrangentes na União Europeia", cita ela.
"Nessa região,
há limitações no uso de certos produtos quando existem indícios de efeitos
potencialmente adversos ao ambiente, aos humanos e às espécies animais, mesmo
na ausência de certeza científica", complementa a especialista.
Trasande cita um artigo que ele ajudou a escrever em
2023,
que sugere algumas políticas públicas para lidar com esse problema.
"Pesquisas
demonstram que políticas e intervenções implementadas tanto do ponto de vista
individual como governamental têm o potencial de reduzir a exposição aos
disruptores endócrinos", defendem os autores.
O artigo também
cita a necessidade de padronizar critérios, definir limites ou entender os
efeitos da exposição múltipla às centenas de disruptores conhecidos.
·
O
que cada pessoa pode fazer para diminuir o contato com os disruptores
endócrinos?
Em alguns casos, é
praticamente impossível fugir dos desreguladores — uma pessoa que vive numa
cidade cuja qualidade do ar não é das melhores vai necessariamente ter contato
com poluentes ao respirar, por exemplo.
Mas há certos
disruptores em que dá para reduzir ou até cortar completamente o contato.
O primeiro exemplo
disso envolve o uso de plásticos, especialmente para armazenar a comida.
"Prefira
sempre recipientes de vidro", orienta Costa.
A médica explica
que muitos potes de plástico liberam substâncias que mexem no sistema
endocrinológico quando são aquecidos no micro-ondas (ou recebem comida quente).
O mesmo vale para o
processo de resfriamento, quando esses utensílios vão para a geladeira ou para
o freezer.
Segundo a
endocrinologista, o ideal é evitar até mesmo os plásticos que são livres de BPA
(bisfenol A), um dos disruptores mais conhecidos e estudados.
Isso porque esses
objetos trazem outras substâncias que também têm o potencial de mexer com
receptores e hormônios.
Ainda na cozinha,
Trasande sugere evitar comidas enlatadas — muitas das latas têm um verniz ou
uma película no revestimento interno que possui alguns disruptores conhecidos —
e usar panelas e frigideiras de aço inoxidável ou de ferro no lugar de
utensílios antiaderentes (cuja composição também traz alguns desreguladores).
"Outra
orientação é passar regularmente aspirador de pó com filtro Hepa e usar um pano
úmido para remover poluentes dos ambientes da sua casa", acrescenta o
pesquisador.
Por fim, Amato
chama a atenção para as escolhas alimentares.
"É importante
evitar o consumo de alimentos e bebidas processados e adquirir frutas, legumes
e verduras livres de pesticidas", conclui a pesquisadora.
Fonte: BBC News
Brasil
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