4 momentos que
contam a história da destruição das ferrovias no Brasil
"Ponta de
areia ponto final / Da Bahia-Minas estrada natural / Que ligava Minas ao porto,
ao mar / Caminho de ferro mandaram arrancar."
Lançada em 1975, a
canção Ponta de Areia, composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, é
um lamento do fim da Estrada de Ferro Bahia Minas, que ligava os 582 km entre
Araçuaí (MG) e o distrito de Ponta de Areia (BA).
Em 15 anos, o
Brasil tinha perdido 8 mil km de ferrovias, que se estendiam naquele momento
por cerca de 30 mil km do território nacional.
Desde então, o
tamanho da malha ferroviária patina no mesmo patamar. Atualmente, de acordo com
o os dados do Anuário
Estatístico de Transportes, tem 29,8 mil km.
A BBC News Brasil
perguntou a especialistas em história e engenharia ferroviária o porquê -
sintetizado, a seguir, em quatro momentos.
·
A
crise do café
O café é elemento
central nos primeiros capítulos da história das ferrovias no Brasil - tanto na
ascensão quanto na decadência, como explica Eduardo Romero de Oliveira,
professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
É a razão para a
construção das primeiras estradas de ferro no século 19: a primeira delas, a
Estrada de Ferro Mauá, que começou a operar em 1854, levava em suas locomotivas
a vapor a commodity do Vale do Paraíba ao porto de Magé, na baixada
fluminense, que, de lá, seguia de barco até a cidade do Rio. Nessa época, o
café representava quase 50% das exportações brasileiras.
A malha ferroviária
foi aumentando com a expansão da atividade cafeeira e passou a deslocar também
passageiros, que até então só conseguiam viajar longas distâncias com transportes
movidos por tração animal, como as charretes puxadas por cavalos.
"Durante muito
tempo, as ferrovias foram praticamente a única via de transporte de cargas e
pessoas no país", destaca Oliveira, um dos pesquisadores do projeto Memória Ferroviária.
E foi nesse
contexto que a malha chegou a quase 30 mil km de extensão na década de 1920,
quando veio o baque da crise de 29. O crash da bolsa nos Estados
Unidos, na época o maior comprador de café brasileiro, e a grande depressão que
se seguiu tiveram impacto direto sobre o Brasil.
Em um curto espaço
de tempo, as exportações da mercadoria despencaram, assim como os preços. As
ferrovias, que eram administradas pelo setor privado sob regime de concessão,
passaram a transportar cada vez menos carga e viram sua rentabilidade
despencar.
Tem início, nesse
momento, um período lento de decadência que culminaria na estatização das
estradas de ferro mais de duas décadas depois.
·
JK
e o nascimento da indústria automobilística
Antes, contudo,
outros dois fatores importantes entram em cena: o crescimento das cidades e a
popularização do automóvel.
O país vive uma
grande transformação depois de 1940. Até então baseada quase exclusivamente na
agricultura, a economia brasileira se volta cada vez mais para a indústria. A
Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Vale do Rio Doce, então empresas
estatais, são fundadas nessa época, em 1940 e 1942, respectivamente, no último
período do governo de Getúlio Vargas, a ditadura do Estado Novo.
Essa mudança na
matriz de crescimento, por sua vez, catalisa um processo de migração das
populações de áreas rurais para as cidades. As capitais ganham uma nova escala,
vão inchando, um processo que tem como efeito colateral a diminuição da demanda
por trens de passageiros em alguns trechos menores, entre cidades próximas.
·
"As
fábricas estão nas cidades", pontua Oliveira.
A política de
industrialização continua com o presidente Juscelino Kubitschek, que assume em
1956 e elege a indústria automobilística como catalisador de seu plano de
desenvolvimento.
O Plano de Metas de
JK, que ganhou o slogan "50 anos em 5", é frequentemente apontado
como o início do chamado "rodoviarismo" no Brasil. Um movimento cheio
de nuanças e explicado por uma combinação de fatores, diz o professor de
Engenharia de Transportes da Coppe/UFRJ Hostílio Xavier Ratton Neto.
Um deles é a
própria natureza da indústria automotiva, que tem uma cadeia de produção longa,
com efeito multiplicador na economia, e emprega uma mão de obra qualificada que
até então não existia no país.
"É nessa época
que se cria a classe do operário especializado, com maior poder
aquisitivo", afirma.
Em paralelo, a
construção das rodovias era menos custosa que as estradas de ferro e o petróleo
usado para produzir combustível ainda era muito barato.
No pano de fundo, a
Guerra Fria estreitava as relações entre Brasil e Estados Unidos. Na tentativa
de barrar a expansão da influência da União Soviética no continente, os
americanos firmaram acordos de cooperação técnica e de financiamento para
investimentos com diversos países da América Latina.
Assim, ainda em
1956 foi criado o Grupo Executivo da Indústria Automobilística (GEIA), sob o
comando do Capitão de Mar e Guerra Lúcio Meira.
O Brasil, que até
então só montava veículos, passaria a fabricar carros, caminhões e jipes, tendo
como principal polo a região do ABC paulista. São desse período dois modelos
que fizeram história no país: o Fusca e a Kombi, ambos da linha de montagem da
Volkswagen em São Bernardo do Campo.
Com a produção de
veículos nacionais, multiplicaram-se os quilômetros de rodovias. Só nos cinco
anos de gestão JK, a malha rodoviária federal pavimentada foi multiplicada por
três, de 2,9 mil km para 9,5 mil km.
As ferrovias, por
sua vez, entravam os anos 1950 sucateadas.
Além da redução da
demanda de carga e passageiros, um outro fator contribuiu para o "estado
bastante acentuado de degradação física das estradas de ferro":
"Muitas concessões já estavam no final, próximo da devolução, e não havia cláusula
nos contratos que obrigassem as concessionárias a fazer investimentos ou
devolver as ferrovias no estado em que as pegaram", diz Ratton Neto, que
tem larga experiência no planejamento, construção, operação e gestão de
sistemas de transporte metroviário e ferroviário.
É nesse contexto
que, em 1957, surge a Rede Ferroviária Federal (RFFSA), estatal que passou a
administrar as ferrovias que até então estavam nas mãos de diferentes empresas
privadas.
Inicialmente, diz o
historiador Welber Luiz dos Santos, do Núcleo de Estudos Oeste de Minas da
Associação Brasileira de Preservação Ferroviária, a intenção não era
"destruir" as ferrovias.
"Os primeiros
relatórios da empresa demonstram que o projeto era de modernização e unificação
administrativa para facilitar a integração entre os diferentes meios de
transporte", afirma o pesquisador.
"Os
investimentos rodoviários do Plano de Metas de JK não eram uma ameaça ao
sistema ferroviário", avalia.
·
A
extinção das linhas de passageiros
Os projetos de
recuperação e melhoria, contudo, incluíam a desativação de uma série de linhas
e "ramais" (jargão do setor para os trechos secundários) considerados
deficitários.
A lógica, diz o
historiador Eduardo Romero de Oliveira, é que o mundo de meados do século 20
era completamente diferente daquele que, muitas décadas antes, havia norteado a
construção de parte das ferrovias.
"Houve uma
mudança no negócio", diz o professor da Unesp. "As estradas de ferro
da música do Milton Nascimento eram de outra época, para pensar o transporte de
café, de açúcar, em um período em que nem a legislação trabalhista
existia."
O químico Ralph
Mennucci Giesbrecht, um "fanático por ferrovias" que há mais de duas
décadas pesquisa sobre elas, especialmente sobre as estações, coleciona
diversas histórias desse período turbulento.
"Nos anos 60 e
70 sumiram praticamente todas as ferrovias menores, aquelas consideradas
deficitárias", diz ele, autor do livro O Desmanche das Ferrovias
Paulistas.
Os conflitos
aparecem em histórias como a da desativação do trecho entre as cidades
paulistas de São Pedro e Piracicaba, concluída em 1966. O prefeito de São Pedro
na época chegou a enviar um telegrama incisivo ao governador, Laudo Natel,
questionando o critério da baixa rentabilidade usado para justificar a extinção
do ramal.
"Déficit, se
não levarmos em conta o bem coletivo, também dá a polícia, dão as escolas e
todas as repartições mantidas pelo Estado. O déficit do ramal é muito relativo,
pois, não levando em conta o movimento das estações de Barão de Rezende, Costa Pinto,
Recreio e Paraisolândia, a estação de São Pedro despachou este ano mais de
40.000 toneladas de cana. Finalizando, aqui deixo minha desilusão por tudo e
por todos", dizia a mensagem, conforme reportagem do jornal O Estado de
S.Paulo de 30 de outubro de 1966 encontrada por Giesbrecht.
Aos poucos, as
linhas de passageiros foram desaparecendo, permanecendo, em alguns casos,
aquelas que cruzavam as regiões metropolitanas das grandes cidades, usadas até
hoje.
Com o avanço da
indústria automobilística e a entrada do avião em cena, as ferrovias entraram
em crise, em maior ou menor medida, em todo o ocidente. Nos países em que foram
mantidas para transporte de passageiros, o serviço, na maioria dos casos,
passou às mãos do Estado.
É o caso, por
exemplo, dos Estados Unidos. A estatal Amtrak foi fundada em 1971 e faz até
hoje a gestão das linhas de passageiros no país. Também são estatais a alemã
Deutsche Bahn, a espanhola Renfe e a francesa Société Nationale des Chemins de
fer Français (SNCF).
·
A
estagnação e o corredor de commodities
Do lado do
transporte ferroviário de carga, parte dos investimentos vislumbrados no
período JK não saíram do papel, diz o historiador Welber Santos.
Em sua visão, a
ditadura militar mudou o foco da política de transportes, que passou a ser mais
voltada para as rodovias, com a aposta em grandes obras de engenharia, como a
ponte Rio-Niterói, e alguns investimentos questionáveis, como a Transamazônica,
que nunca foi concluída.
A Ferrovia do Aço,
ele diz, um dos projetos ferroviários que chegou a sair do papel nesse período,
começou a ser construída em 1973 com a promessa de ser entregue em mil dias,
mas só foi inaugurada em 1992, e com um porte muito mais modesto do que o
projeto inicial.
Para Ratton Neto,
da Coppe/UFRJ, um dos principais obstáculos à realização dos investimentos
necessários à malha ferroviária do país naquela época foi a crise do petróleo
de 1973 e o período turbulento que se seguiu.
"Depois
daquele choque na economia mundial, o Brasil, que até então tinha acesso fácil
a crédito, passou a ser visto como país de alto risco. A partir daí, teve
início uma crise que impediu que os planos nacionais de desenvolvimento
pudessem ter sequência. Deixamos de planejar para apagar incêndio praticamente
até os anos 90", diz ele.
Nos anos 1990, em
um contexto de baixo crescimento econômico, inflação elevada e alto nível de
endividamento público, a RFFSA é liquidada e as ferrovias são novamente
concedidas à iniciativa privada, por meio do Plano Nacional de Desestatização
(PND).
A partir daí, elas
passam a funcionar majoritariamente como corredores de transporte de
commodities para exportação, diz o professor da Coppe/UFRJ.
Hoje, quase metade
da malha, 14 mil km, está nas mãos da Rumo Logística, empresa do grupo Cosan.
Outros 2 mil km são administrados pela Vale. Cerca de 75% da produção de
transporte ferroviário é minério de ferro. "Outros 10% ou 12% são
soja", estima Ratton Neto.
Como os contratos
de concessão não preveem a realização de investimentos e melhorias, boa parte
da malha segue como foi construída no segundo império, com a chamada bitola
métrica, ultrapassada, bem mais estreita que a bitola internacional, hoje usada
como padrão.
O modelo atual de
exploração das ferrovias, na avaliação do especialista, subaproveita o
potencial do país e deixa o Brasil refém das rodovias - consequentemente, mais
suscetível a greves de caminhoneiros como a de 2018, que gerou caos e
desabastecimento.
As estradas de
ferro poderiam ser mais utilizadas para transporte de bens industriais, ele
exemplifica, de bobinas de ferro e cimento a automóveis, inclusive em trechos
curtos, nos moldes das "short lines" dos Estados Unidos.
"Também
poderiam ser usadas para transportar contêineres, uma tendência nova e muito
rentável", acrescenta.
Um entrave para o
planejamento de novas linhas, contudo, é o apagão de dados sobre a movimentação
interna de cargas. O Brasil não sabe, no detalhe, o que é transportado e de
onde para onde. Iniciativas como o Plano Nacional de Contagem de Tráfego ainda
não geram dados robustos nesse sentido, diz o professor.
A outra é o próprio
modelo de concessão, em que as concessionárias têm controle tanto sobre as vias
quanto sobre os trens. Assim, essas empresas acabam tendo o monopólio do
transporte ferroviário e, em última instância, decidem o que trafega ou não
pelos trilhos.
"As ligações
hoje atendem aos interesses dos próprios concessionários."
Os novos projetos
anunciados recentemente pelo governo, na avaliação do professor, não chegam a
quebrar a lógica das ferrovias como corredor de commodities. Em setembro, o
ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, anunciou a autorização para
construção, pela iniciativa privada, de 10 novas ferrovias, com investimentos
da ordem de R$ 50 bilhões.
Em paralelo, ele
chama atenção também para o projeto da Ferrogrão, que deve ligar o Mato Grosso
ao Pará em cerca de 933 km com a proposta de facilitar o escoamento de grãos
pela região Norte do país.
Na tentativa de
tirar a ferrovia do papel, o governo sinalizou que disponibilizará para a
futura concessionária até R$ 2,2 bilhões em recursos da União. O dinheiro,
contudo, viria da outorga que será paga pela Vale para renovar a concessão de
duas das ferrovias que administra hoje, a Estrada de Ferro Carajás e a Estrada
de Ferro Vitória-Minas.
"Os recursos
da outorga que poderiam ser usados para geração de benefícios econômicos e
sociais nesse caso acabariam captados pelo próprio setor privado."
Fonte: BBC News
Brasil
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