Moshe Zuckermann: Israel e a traição da memória de Auschwitz
"A vida
humana palestina não tem muito valor para a maioria dos judeus
israelenses, muito menos depois de 7 de outubro, e muito menos
quando se trata dos habitantes de Gaza, quase todos
definidos pelo atual governo israelense como terroristas do Hamas".
Moshe
Zuckermann é um sociólogo israelense-alemão e professor emérito de
história e filosofia na Universidade de Tel Aviv. Ele é autor de livros
sobre o conflito no Oriente Médio, entre os quais Israels Schicksal.
Wie der Zionismus seinen Untergang betreibt (O destino de Israel. Como o
sionismo carrega seu próprio declínio). Faz parte do grupo de estudiosos
da história
do Holocausto,
de estudos judaicos e de estudos do Oriente Médio que em 2021
elaborou a “Declaração de Jerusalém”.
<><> Eis
o artigo.
Netanyahu, no
jornal Haaretz, abordou um tópico ao qual eu também queria me referir em
meu editorial. Portanto, começarei citando Levy.
“O
primeiro-ministro Benjamin Netanyahu”, escreve, “não viajará para
a Polônia no próximo mês para a cerimônia principal do 80º aniversário
da libertação do campo
de extermínio de Auschwitz, por medo de ser preso com base no mandado emitido
contra ele pelo Tribunal Penal Internacional em Haia.
Essa amarga e não
muito sutil ironia da história proporciona um roteiro surreal que era quase
inimaginável antes: imaginem o primeiro-ministro aterrissando em Cracóvia,
chegando à entrada principal de Auschwitz e sendo preso pela polícia
polonesa no portão, sob a placa Arbeit macht frei”.
Ele continua: “O
fato de que, de todos os lugares do mundo, Auschwitz seja o primeiro
lugar que Netanyahu teme ir grita ao simbolismo, além da justiça
histórica”. Levy destaca plasticamente: “Uma cerimônia comemorativa
do 80º aniversário da libertação de Auschwitz, os líderes mundiais marcham
em silêncio, os últimos sobreviventes vivos marcham ao seu lado, e o lugar do
primeiro-ministro do Estado surgido das cinzas do Holocausto está
vazio. Está vazio porque seu Estado se tornou um pária e porque ele é procurado
pelo mais respeitado tribunal que julga criminosos de guerra”. Levy
conclui: “Netanyahu não estará em
Auschwitz porque é procurado por crimes de guerra”.
Esse “evento” é de
fato paradigmático. Mas, independentemente do fato de que cerca de metade da
população israelense espera o fim político de Netanyahu, de que muitos
também esperam que, ao final do processo, ele acabe na cadeia e de que, embora
ele tenha cometido tantos crimes (mesmo dentro de Israel), é possível entender
o ódio contra ele (e sua família), o próprio Netanyahu é apenas um personagem
secundário naquilo de que fala Gideon Levy.
As pessoas de baixo
escalão muitas vezes são cinicamente culpadas por erros e crimes que foram
causados ou iniciados “acima” na respectiva ordem hierárquica. Com uma
referência sarcástica à hierarquia militar, o slogan de culpar o “guarda na
entrada do acampamento militar” ganhou força em Israel.
Mas a situação é
diferente quando se condena uma prática social ou política pela qual, no
entanto, uma comunidade inteira não pode ser penalizada (como se tornou
possível e foi realizado por acordo internacional com o boicote ao estado
do apartheid sul-africano). Nesse caso, o respectivo chefe de estado ou
outras autoridades de alto escalão são chamados à responsabilidade como
representantes simbólicos de toda a coletividade. Ao
condenar Netanyahu, Israel é condenado.
Isso deve ser
enfatizado porque a responsabilidade ministerial por crimes de guerra recai
sobre as instituições governantes, mas geralmente é de natureza mais abstrata.
Em vez disso, a barbárie (física) do crime ocorre “no campo”. Como
governante, Netanyahu tem responsabilidade pela política que delineou e
organizou e, portanto, pelas orientações militares resultantes da guerra atual.
Embora ele sempre
se recuse a assumir qualquer responsabilidade, especialmente pelo desastre
de 7 de outubro, não são
necessariamente suas as instruções que geraram os crimes de guerra concretos.
Algo mais deve aqui ser considerado. Porque o que se viu nas operações
da Idf na Faixa
de Gaza no
ano passado é uma brutalização extrema das tropas de combate em ação,
cujos crimes de guerra se acumularam/estão se acumulando a tal ponto que logo
se começou a falar de um genocídio contra a
população civil da Faixa de Gaza.
O debate sobre
considerar de fato isso um genocídio, dever ser deixado para outra instância; a
disputa que eclodiu apenas desvia a atenção da substância -
da barbarização vistosa do exército israelense e de sua atividade
bélica. Basta se focar no acúmulo de crimes de guerra para perceber que algo se
desenrolou nessa guerra que vai muito além da pessoa de Netanyahu.
Tornou-se norma uma
prática de combate que transformou em “natural” um número inconcebível de civis
mortos e feridos, entre eles principalmente mulheres, crianças e pessoas
idosas, além de uma monstruosa devastação da infraestrutura e destruição das
instalações civis vitais.
Recentemente,
escrevi em um artigo sobre a pesquisa do Dr. Lee Mordechai,
da Universidade Hebraica de Jerusalém, que a acusação de
cometer crimes de guerra já está comprovada há tempo e que ninguém
mais poderá alegar que não sabia. O fato de a grande mídia esconder da
população do país os relatos da barbárie praticada em seu nome, que
praticamente a mascaram, não pode ser aceito como explicação para
o silêncio público sobre os crimes - quem quer saber pode desencavar
informações. É claro que é preciso querer saber. Até mesmo a “justificação” dos
crimes de guerra contra os judeus israelenses cometidos
pelo pogrom de 7 de outubro não tem uma base aceitável
quando se recusa a legitimidade de colocar o exército a serviço de impulsos
coletivos de vingança e represália. A morte de crianças por um
exército (como “dano colateral”) não pode ser uma “reparação” por um erro
sofrido. Muito menos se seus efeitos atingirem uma desproporção tão
impressionante.
O que se destaca
mais do que qualquer outra coisa é o gosto, o sadismo e o prazer
perverso dos soldados em causar danos a outros, em um massacre que não mostra
sinais de querer terminar. O 7 de outubro foi degradado a uma licença
para a destruição excessiva e o cancelamento de vidas humanas sem nenhum remorso.
Em nenhuma guerra os soldados em campo foram apóstolos da
humanidade. Brecht já cantava na Ópera dos Três vinténs que
“os soldados habitam nos canhões” e geralmente transformam seus inimigos em
“carne moída”.
Isso se torna
especialmente terrível para a população civil inimiga quando os bombardeiros
modernos são utilizados em massa. Mas o que no campo de batalha pode ser
explicado pela lógica interna do que sempre foi a guerra em sua essência - a
legitimidade concedida à completa desinibição de matar e devastar as condições
materiais de vida - faz estremecer quando se descobre que uma coletividade
inteira apoia os crimes de seu exército nacional.
Aquele pouco que a
população israelense ficou sabendo do horror da realidade de Gaza foi
(e ainda é hoje) rejeitado com terrível indiferença como não verdade, como
exagero, como propaganda pérfida do outro lado, ou racionalizado de forma
leviana, culpando os próprios habitantes de Gaza pelos crimes de
guerra (“foram eles que começaram”) ou declarando-se abertamente incapaz
de sentir compaixão por eles.
Tanto o
embrutecimento dos soldados quanto a indiferença
da população civil israelense decorrem de uma desumanização
dos palestinos que
vem ocorrendo incessantemente há tempo. 57 anos de ocupação
bárbara e o persistente apagamento do conflito
israelense-palestino da agenda política de Israel e do mundo
(deliberadamente realizada principalmente por Netanyahu) mostraram seu efeito
inevitável. A vida humana palestina não tem muito valor para a
maioria dos judeus israelenses, muito menos depois de 7 de outubro, e
muito menos quando se trata dos habitantes de Gaza, quase todos definidos
pelo atual governo israelense como terroristas do Hamas.
Uma equiparação da
catástrofe de Gaza com Auschwitz não é sustentável
- Gideon Levy também a rejeita em seu editorial. Mas essa não é a
questão. Por tempo demais a política israelense instrumentalizou a
singularidade de Auschwitz para fins políticos heterônomos. Nenhuma
lição pode ser tirada do Holocausto, nem mesmo do postulado ideológico de
como fosse necessário criar um “refúgio para o povo judeu”, como agora já
deveria ter se tornado evidente.
Na verdade,
do Holocausto, quando muito poder-se-ia extrair como mensagem abstrata
apenas o princípio orientador de uma sociedade empenhada em minimizar, se não
tornar impossível, que seres humanos continuem a produzir vítimas humanas. Isso
poderia ser o que Walter
Benjamin quis
dizer com o “fraco poder messiânico” atribuído a cada geração atual em relação
às gerações passadas.
E é exatamente
nisso que se manifesta a horrenda traição que Israel (não apenas
agora, mas ora com uma desmedida pessoalmente escolhida) cometida contra
a memória de Auschwitz. E é exatamente aí que reside o medo do símbolo de
que o primeiro-ministro israelense não comparecerá à cerimônia de comemoração
do 80º aniversário da libertação de Auschwitz porque deve temer ser
preso como aquele criminoso de guerra que é como representante de
Israel.
¨ Um massacre de crianças está em curso em Gaza, denúncia
médica estadunidense Tanya Haj-Hassan, à ONU
De acordo com
fontes militares israelenses citadas pelo Jerusalem Post, um número
significativo de milicianos palestinos em Gaza é menor de
idade sem nenhum treinamento real: o Hamas está se tornando
um exército de garotos. Graças aos novos ingressos, compensou parcialmente
as perdas sofridas e hoje, somado à organização gêmea, a Jihad, contaria
com 12 mil efetivos (20 a 23 mil, de acordo com as fontes entrevistadas
pelo Canal 12 da TV israelense). Pequenos grupos continuam a
operar também no norte
de Gaza,
embora esse território tenha sido despovoado pela Idf com operações
que israelenses respeitados - um ex-primeiro-ministro, um ex-chefe de estado
maior, o jornal Haretz - descrevem explicitamente como “limpeza
étnica”
(um termo, juntamente com “apartheid israelense”, ainda tabu para os temerosos
formadores de opinião italianos).
Se considerarmos o
propósito declarado do governo de Netanyahu - destruir
o Hamas -
a guerra fracassou.
A brutalidade da
intervenção produziu como reação multidões de novos guerreiros determinados a
vingar os lutos e os sofrimentos dos quais foram vítimas e testemunhas. Os
relatórios sobre os “atos de genocídio” cometidos pela Idf são até supérfluos
para perceber isso (o último, produzido pela Amnesty, foi noticiado com
destaque pelo New York Times e pelo Washington Post; pouco ou
nenhum eco na imprensa italiana).
<><> O
massacre das crianças
É suficiente o
testemunho prestado às Nações Unidas pela estadunidense Tanya
Haj-Hassan, médica de terapia intensiva pediátrica, voluntária durante vários
meses no hospital de Gaza. Seu relato vale por uma centena de editoriais
sobre o assunto.
“Como uma das
poucas observadoras internacionais autorizadas a entrar em Gaza, posso
dizer: passem apenas cinco minutos em um hospital e ficará
dolorosamente claro que os palestinos
estão sendo intencionalmente massacrados, deixados com fome e despojados de todo o
necessário para viver (...) Famílias inteiras foram dizimadas. Nossos colegas
do setor sanitário e humanitário estão sendo mortos em números recordes.
Tratamos de inúmeras crianças que perderam
famílias inteiras, um fenômeno tão frequente em Gaza que elas
receberam um nome específico: ‘Criança ferida sem família sobrevivente’.
Seguramos as mãos das crianças enquanto elas davam o último suspiro, e éramos a
única pessoa, desconhecida para elas, que poderia tentar confortá-las”.
<><>
Hospitais na mira
Também é
significativa a premissa que Tanya Haj-Hassan colocou antes de seu
depoimento:
“Antes de
compartilhar o que testemunhei, quero citar meu colega Dr. Mohammed
Ghanim, um jovem médico do pronto-socorro que foi morto há um mês por
um drone israelense (...): ‘Evitei divulgar histórias trágicas por
dois motivos. O primeiro: sei que é inútil. O segundo: não consigo encontrar as
palavras para descrever o que está acontecendo’. Tenho a mesma sensação. O que
resta dizer para convencer o mundo a reagir? (...) Não há palavras que
transmitam adequadamente o quão perversa é essa agressão. Lembro-me
de Mohammed, de 5 anos, com um ferimento na cabeça, provavelmente um tiro
de arma de fogo, que morreu no pronto-socorro porque não havia leitos na
terapia intensiva. (...) Ou Amer, de 13 anos, que sofreu um grave
ferimento no pescoço depois que sua casa foi bombardeada e ficou chamando por
sua irmã. Ele não a reconheceu na menina que estava na cama ao lado dele, pois
as queimaduras a deixaram irreconhecível. Após sua morte, Amer ficou sendo o
único membro sobrevivente de sua família. Lembro-me de sua voz doce sussurrando
em meu ouvido: ‘Eu gostaria de morrer com eles. Todos que amo estão no paraíso.
Não quero mais ficar aqui’. (...) Tudo o que é necessário para sustentar a vida
humana está sob ataque em Gaza, e há muito tempo: água, comida, abrigo,
educação, saúde, energia, esgoto e serviços higiênico-sanitários. Todas
as universidades de Gaza foram destruídas, inclusive as duas únicas
escolas de medicina onde eu costumava lecionar (...). Imagine essas crianças,
as mães e os pais buscando desesperadamente atendimento médico e esperança em
um dos poucos hospitais
que restaram em Gaza.
Aí falta luz. A entrada do hospital é atingida por um míssil. O hospital
recebeu ordem (dos israelenses) a ordem de evacuação. É apocalíptico. Esse
mesmo hospital - onde testemunhei cada uma dessas tragédias horríveis - foi
alvo de vários ataques nos últimos 14 meses, assim como praticamente todos os
outros hospitais de Gaza. Hospitais e profissionais de saúde têm sido
sistematicamente atacados pelo exército israelense desde o primeiro dia.
Mortos, presos, torturados. Conheci pessoalmente profissionais de saúde que
descreveram torturas físicas, psicológicas e sexuais infligidas pelo exército e
pelos guardas prisionais israelenses. Uma de minhas enfermeiras, Saeed,
foi sequestrada e detida por 53 dias. Ela descreveu as formas mais horríveis de
tortura. (...).
O Dr. Ghanim,
que citei anteriormente, escreveu em abril, seis meses antes de ser morto:
‘(...) Éramos 13 médicos no pronto socorro, todos nós fomos torturados em
diferentes graus e seis foram feridos ou presos. Estou falando apenas do
departamento pelo qual eu era responsável, e não estou falando dos médicos de
outros departamentos que foram assassinados após serem presos ou dos médicos
cujo destino ainda é desconhecido’. Mais de mil operadores sanitários
foram mortos em Gaza. Outras centenas foram detidos em Israel. Pelo menos
quatro foram mortos enquanto estavam presos (...)
Muitos foram mortos
enquanto tentavam resgatar os feridos naqueles que são infamemente conhecidos
como os ataques israelenses duplos e triplos - um lugar é atingido, depois é
atingido novamente uma segunda e terceira vez quando os socorristas chegam para
atender as vítimas. (...)”.
<><>
Gaza, um precedente para a humanidade
Para minimizar esse
testemunho, temos a disposição vários expedientes. Em primeiro lugar, vai ser
dito que a Dra. Tanya Haj-Hassan, por ter sobrenome árabe, deve ser
certamente antissemita, uma acusação, no entanto, esvaziada pelo uso grosseiro
e mecânico que vários expoentes da multiforme direita judaica fazem dela, até
mesmo na Itália: se todos são propensos ao antissemitismo (até mesmo o
papa, por ter expressado o desejo de que a justiça internacional investigue o
que Israel está fazendo em Gaza) ninguém o é, pode concluir a judeofobia
autêntica. Um método menos obtuso consiste em colocar a questão em perspectiva.
Pode-se dizer: se
o Eixo
do Mal ameaça
nossa civilização (judaico-cristã, é claro), o que mais poderiam ser os
tormentos infligidos à população de Gaza, senão um detalhe? Além disso,
esse conflito não é diferente de qualquer outro conflito, então por que se comover
com as crianças de Gaza? É uma guerra, minha senhora, o que esperava? Pense
bem, que exército não cometeu crimes de guerra?
Na realidade, aqui
se fala pincipalmente de crimes contra a humanidade, infâmias bastante
raras neste século, suficientes para autorizar a assustadora profecia
que Tanya Haj-Hassan nos entrega: “O precedente que foi estabelecido
em Gaza se espalhará por todo o mundo. Marca o fim do estado de
direito. Como disse um colega meu, um voluntário: 'Quando eu estava em Gaza,
senti como se estivesse assistindo ao prelúdio do fim da humanidade'. Se a
solidariedade com seus semelhantes não for motivo suficiente para agir, pense
em como isso repercutirá sobre você. A pergunta que deixo a vocês é: o que
todos nós estamos arriscando?”.
Fonte: Overton
Magazine/Domani.Tradução de Luisa Rabolini, em IHU
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