Como Venezuela foi
do 'socialismo do século 21' ao 'capitalismo autoritário' com Maduro
"Exproprie-se!"
O ex-presidente venezuelano Hugo Chávez
(1954-2013) transformou esta ordem em seu grito de guerra. Em 2007, passou a
usá-lo para anunciar a estatização de fábricas, bancos, hotéis, empresas de
telecomunicações e energia, além de cinco milhões de hectares de terras.
As desapropriações foram um dos pilares de
sustentação do novo modelo político, econômico e social promovido pelo mandatário
no início dos anos 2000: o chamado socialismo do século 21.
Mas Nicolás Maduro – seu sucessor
desde 2013, que se autoproclama "filho de Chávez" e defensor do seu
legado – começou, sem muito alarde, a se afastar do projeto econômico do seu
mentor nos últimos cinco anos.
Apesar dos questionamentos sobre sua
legitimitdade, Maduro tomou posse neste 10 de janeiro. Deixou de lado os enfrentamentos com empresários que marcaram o
governo Chávez e o início da sua própria gestão, optando por criar pontes com
esse grupo.
"Para que serviu o conflito estéril, a
guerra entre nós e não termos nos ouvido? Para o retrocesso e para causar prejuízos
[...] Vamos retirar a economia do antagonismo e da guerra política e nos
concentrar em trabalhar para produzir", falou o presidente venezuelano aos
industriais e pecuaristas do país em julho passado.
A intenção era impedir que os conflitos
políticos internos prejudicassem a economia da Venezuela.
Para isso, além das palavras, Maduro tomou
medidas concretas. Nos últimos anos, devolveu centros comerciais e fazendas a
seus proprietários originais e chegou a abrir a possibilidade de privatizar
empresas estatais.
Em novembro, o presidente da Confederação
Venezuelana das Indústrias (Conindustria), Luigi Pisella, declarou que o
governo planejava transferir para o capital privado 350 empresas desapropriadas
pelo Estado nas últimas duas décadas.
Todos estes gestos fazem crer que o país está
consolidando um novo modelo, que alguns especialistas definiram como
"capitalismo autoritário".
·
Permanência da 'elite governante'
Mas o que é o capitalismo autoritário e quais
são suas características?
"É um sistema que permite ao capital
privado enriquecer, mas, simultaneamente, os direitos sociais, econômicos e
políticos dos cidadãos são enfraquecidos para favorecer a permanência das
elites governantes no poder", explica à BBC News Mundo, serviço de
notícias em espanhol da BBC, o professor de ciência política Antulio Rosales,
da Universidade York, no Canadá.
Em termos similares define o cientista político
Guillermo Tell Aveledo, decano da Faculdade de Estudos Jurídicos e Políticos da
Universidade Metropolitana de Caracas, na Venezuela.
Ele avalia, contudo, que o capitalismo
autoritário venezuelano não é convencional.
"A 'abertura' carece de uma racionalidade
econômica profunda, enquanto o sistema político permanece fechado e fortemente
centralizado", explica ele.
"Este sistema não representa uma ruptura
com o socialismo do século 21, mas sim uma adaptação pragmática, que pretende
perpetuar o poder sob novas condições."
Nos últimos cinco anos, os venezuelanos
observaram como, quase da noite para o dia, desapareceram os controles de
preços e divisas vigentes desde 2003. O uso do dólar internamente foi
descriminalizado, a economia foi dolarizada de fato, o que reduziu a inflação,
e os trâmites de importação de bens foram simplificados.
Estas medidas colocaram fim à angustiante escassez
de alimentos e remédios, causada tanto pelas regulamentações de preços, quanto
pela má gestão das empresas estatizadas.
Proliferam hoje na Venezuela negócios criados
para o consumidor de classe alta, principalmente na capital, Caracas. Estes
empreendimentos não existiam no país há apenas cinco ou sete anos.
Mas, ao lado de um boom de consumo e luxo, os preços dos produtos também
dispararam e milhões de pessoas mergulharam na pobreza.
·
O pragmatismo
Os ajustes serviram para que o país saísse da
sua histórica hiperinflação, iniciada em 2017, e para que sua economia
atingisse 13 trimestres de crescimento consecutivos, segundo dados do Banco
Central da Venezuela (BCV).
Para os especialistas consultados, esta mudança
não foi produto de uma revisão ideológica, nem de retificações por parte das
autoridades. Foi algo forçado pelas circunstâncias.
"A abertura se dá porque a receita do
petróleo entra em colapso, devido à combinação da queda dos preços do produto
nos mercados internacionais a partir de 2014 e da redução da produção
nacional", afirma o economista Francisco Monaldi, professor da
Universidade Rice, nos Estados Unidos.
O petróleo é a principal fonte de divisas da
Venezuela. O país extraía três milhões de barris diários no início do século,
mas a produção caiu para meio milhão em 2020, queda que deixou o Estado sem
mais de 90% de sua receita, segundo declarou Maduro no último mês de julho.
"A falta de receita obrigou as autoridades
a recorrerem àqueles que poderiam ter dinheiro e eram tradicionalmente considerados
inimigos: os empresários", explica o economista.
Rosales concorda que as mudanças econômicas
foram impostas pela crise gerada pelo próprio modelo socialista, mas destaca um
fator externo: as sanções impostas por diversos países ao governo de Maduro nos
últimos anos por ataques à democracia e violações de direitos humanos.
"O governo teve seus caminhos bloqueados
para dar prosseguimento ao socialismo baseado na receita, ou seja, vender
petróleo no mercado internacional e redistribuir estes fundos internamente",
prossegue Rosales.
"Isso, somado às pressões internas [a
insatisfação social e os protestos] causadas pela escassez e pela inflação,
forçaram a geração de certas aberturas para manter o poder."
A maior parte das sanções impostas nos últimos
anos pelos Estados Unidos, União Europeia, Canadá e outros países foi dirigida
a funcionários e ex-funcionários venezuelanos e seus familiares próximos.
Mas algumas dessas medidas tiveram como alvo a
companhia estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA), o Banco Central do país e
outras instâncias governamentais, que tiveram fechadas suas portas para os
mercados internacionais tradicionais.
Já Monaldi acredita que as sanções
internacionais foram apenas um ingrediente a mais.
"Em 2017, quando foram impostas as sanções
financeiras [à PDVSA e ao BCV], a Venezuela estava a ponto de uma moratória
financeira generalizada", recorda o economista.
Monaldi defende que a razão fundamental da
virada do governo foi a crise econômica "autoinfligida" que surgiu em
2017.
"A hiperinflação leva os governos a serem
pragmáticos, incluindo os que são mais de esquerda", segundo ele.
Como prova de suas argumentações, Monaldi
menciona duas decisões que, segundo ele, teriam sido impossíveis de se imaginar
dois anos atrás.
A primeira foi a aceitação de que a petroleira
norte-americana Chevron administrasse sua empresa de capital misto com a PDVSA,
o que é proibido pela legislação venezuelana. A segunda foi a concessão da
empresa Ferrominera del Orinoco, a maior produtora de ferro do país, à companhia
indiana Jindal.
As sanções pessoais também fizeram com que
muitos empreendedores milionários investissem em negócios na Venezuela, criando
a demanda doméstica por um consumo de alto valor que, até então, podia ser
satisfeito no exterior.
·
De inimigos a aliados
A mudança de atitude das autoridades em relação
aos empresários, particularmente os tradicionais, traz consigo suas condições.
"Os empresários, principalmente os
nacionais, sabem que existem regras que eles devem respeitar e uma delas é
jogar com o governo", destaca Rosales.
Isso significa que "os empresários não
devem se intrometer em política – ou melhor, se forem se intrometer em
política, que seja para apoiar as iniciativas do governo, não a oposição, nem
outro tipo de dissidência".
"Os empresários sabem que, se cumprirem
com este ponto, abrem-se as portas às oportunidades de grandes lucros em certos
mercados com enormes distorções", prossegue o professor.
E os fatos confirmam suas palavras. Nos últimos
cinco anos, também ocorreu uma mudança de atitude dos empresários em relação ao
governo.
No passado recente, as principais associações
empresariais haviam formado um bloco para enfrentar o chavismo nas ruas e nas
urnas, em conjunto com os sindicatos, partidos políticos de oposição e outras
organizações civis. Mas, agora, eles parecem ter se aproximado do governo.
"As relações institucionais entre o
Executivo nacional, regional e municipal e todos os setores econômicos estão
articuladas e trabalhando em conjunto para solucionar as dificuldades" econômicas
enfrentadas pelo país, declarou em um comunicado a Federação de Câmaras e
Empresas da Venezuela (Fedeindustria).
No documento, a organização rejeitou a
possibilidade de que os Estados Unidos imponham novamente medidas contrárias ao
setor petrolífero venezuelano, após as críticas ao governo de Maduro devido às
eleições presidenciais de 28 de julho, consideradas não competitivas, nem
transparentes.
"O que ocorreu nos últimos anos é muito
positivo e foi realizado por um governo sob sanções, com o qual temos profundas
diferenças", declarou à BBC News Mundo Ricardo Cussano, ex-presidente da
Fedecámaras (Federação Venezuelana de Câmaras de Comércio e Produção), a
principal organização empresarial do país. Ele defendeu a nova postura
empresarial nos seguintes termos:
"O país precisa estabelecer confiança para
atrair investimentos e isso passa por fazer com que os conflitos políticos
deixem de existir e se abra um processo de negociação e diálogo verdadeiro,
para fazer com que as instituições venezuelanas sejam mais robustas e
inclusivas."
Esta premissa de empresários como Cussano foi
fortemente criticada pela oposição política venezuelana. Eles receiam que esta
aliança prejudique os esforços rumo às mudanças políticas evidenciadas nas
eleições de 28 de julho, segundo as atas dos resultados publicadas pela
oposição, demonstrando a vitória do candidato de oposição, Edmundo González.
·
Mais próximo da Rússia que da China
A economia venezuelana "vive uma transição
que tem como referência o modelo chinês", declarou, no fim de 2023, Rafael
Lacava, governador do Estado venezuelano de Carabobo e membro da direção
nacional do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), governista, para
explicar as mudanças econômicas produzidas no país.
Mas os especialistas questionam se esta
comparação é adequada à realidade venezuelana.
"Esta 'abertura' é caracterizada por uma
aparente liberdade de mercado sem concorrência real, pelo predomínio de elites
econômicas vinculadas ao governo e pela ausência de planejamento econômico
sofisticado", explica o cientista político Guillermo Tell Aveledo,
"diferentemente dos modelos vietnamita e chinês, que possuem estruturas
abrangentes e elites relativamente sérias".
Monaldi concorda com esta análise. Ele acredita
que as autoridades venezuelanas parecem estar copiando o modelo russo, não o
chinês.
Para ele, "Maduro segue o modelo imposto
por [Vladimir] Putin na Rússia, no qual o Estado mantém intervenção muito
significativa, mas existe uma oligarquia de empresários próximos ao regime que
detêm enorme influência sobre a economia".
Reforçam esta tese a ascensão do controverso
empresário colombiano-venezuelano Alex Saab ao gabinete ministerial de Maduro e
as informações da organização Transparência Venezuela, que dão conta de que
cerca de 48 empresas estatais já foram entregues a particulares (muitos deles,
próximos de altos funcionários do governo).
·
Consolidação ou retrocesso?
Começa agora um novo mandato presidencial,
novamente marcado pelo conflito político.
Muitos países consideram o
candidato de oposição Edmundo González como presidente legítimo, já que ele
seria, segundo os resultados publicados, o vencedor
das eleições de julho passado. Mas Nicolás Maduro é quem detém o poder.
Neste contexto, surge a pergunta: esse
experimento é sustentável a longo prazo? Os especialistas têm opiniões
discordantes a este respeito.
"Estas aberturas surgiram por
pragmatismo", afirma Antulio Rosales. "Era preciso fazê-lo para
manter certa estabilidade e continuar no poder. Mas eu diria que, agora, depois
de quatro ou cinco anos, elas são irreversíveis."
Para o professor, os setores que se
beneficiaram do novo modelo são uma das razões que irão assegurar sua
sobrevivência.
"As bases de sustentação do poder estão,
entre outros setores, nos militares, que se beneficiaram economicamente desta
mudança, e no setor privado, que foi disciplinado e até se transformou em um
novo aliado do regime político", acrescenta.
Já Francisco Monaldi tem suas dúvidas e recorre
à história como argumento.
"Para mim, a grande pergunta é: se as
sanções forem suspensas e a produção petrolífera for recuperada, Maduro
continuará sendo pragmático e liberalizador ou voltará a querer controlar
tudo?"
O economista imediatamente recorda que "os
cubanos liberalizaram a economia cerca de três ou quatro vezes desde a queda da
União Soviética e depois retrocederam, porque eles têm muito receio dos
participantes independentes da economia, que não podem controlar. [O presidente
chinês] Xi Jinping faz o mesmo atualmente com os ricos".
Por outro lado, os empresários desejam que o
novo modelo se consolide. E, com eles como aliados, voluntária ou
involuntariamente, Maduro também procura se manter no poder para um terceiro
mandato, apesar dos conflitos políticos internos e da sua rejeição
internacional.
¨ Maduro faz
apelo a um grande diálogo nacional para reformar a Constituição
"Hoje
vou assinar o decreto que cria a comissão ampla e nacional para preparar o
projeto de Reforma Constitucional , para ir a um processo de democratização e
definição do perfil da sociedade e da nova economia da Venezuela ”, afirmou em
seu discurso de posse o presidente Nicolás Maduro.
Maduro
sublinhou que deve ser feito um apelo ao maior número possível de setores, para
que as suas opiniões e sonhos sejam incluídos no referido projeto.
“Apelo a todos os setores políticos,
econômicos, ideológicos, culturais e sociais do país para um grande dia de
diálogo inclusivo e unitário, para caminharmos juntos em direção a uma Reforma
Constitucional, que democratize ainda mais a Venezuela ”, afirmou diante das
125 representações internacionais que participaram do grande evento de posse.
Entre
os objetivos do diálogo nacional e da reforma subsequente estão a atualização
da Carta Magna nas bases da nova economia e da nova sociedade humanista e
democrática a construir.
O
presidente considerou que a Assembleia Nacional tem autoridade política, moral
e constitucional para ser o epicentro do referido debate geral de todo o povo
para a construção de consensos.
Nicolás
Maduro garantiu que uma vez acordado o projeto através do diálogo
multissetorial , procederá à entrega do projeto oficial de Reforma
Constitucional à Assembleia para avaliação.
¨ Maduro diz
que buscará fortalecer parceria com BRICS
A
Venezuela pretende trabalhar na construção de um mundo multipolar em parceria
com o BRICS, sendo este um dos objetivos do país, afirmou o presidente Nicolás
Maduro.
Uma
das "transformações" a ser impulsionada em seu novo mandato
presidencial ocorrerá na área da geopolítica, disse Maduro, que tomou posse
como presidente da Venezuela para o mandato de 2025 a 2031 na sexta-feira
(10).
"Outra
transformação [futura] é a geopolítica. [É necessário] impulsionar o surgimento
de um novo mundo multipolar e a inclusão da Venezuela na vanguarda de uma nova
política de paz, cooperação e desenvolvimento. Junto com os BRICS. A Venezuela já
está com o BRICS, com o mundo que avançará para uma nova história",
declarou Maduro durante discurso no parlamento, conforme citado pela Sputnik neste sábado (11).
O
BRICS é uma associação interestatal criada em 2006 por Rússia, China, Índia e
Brasil. A África do Sul aderiu em 2011. Desde o início de 2024, diversos outros
países passaram a integrar o bloco.
A
Venezuela anunciou seu desejo de se tornar membro pleno do BRICS em 2023.
Maduro esperava que Caracas ingressasse durante a cúpula do bloco na Rússia, em
outubro de 2024.
No
entanto, o governo da Venezuela afirmou após a cúpula que o Brasil vetou o
ingresso do país caribenho no bloco. Além disso, o presidente russo, Vladimir
Putin, disse à época que as posições da Rússia e do Brasil em relação à Venezuela
não coincidem, destacando que as adesões ao BRICS só ocorrerão por consenso dos
membros.
O
Itamaraty, no entanto, sustenta que o grupo apenas definiu os critérios e
princípios para novas adesões durante a cúpula na Rússia. Oficialmente, o
governo do presidente Lula ainda não reconheceu Maduro como vencedor, ao
contrário de países como Rússia e China.
Fonte: BBC News Mundo/Brasil 247
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