Cartas de alforria
encontradas revelam que Maria Quitéria e Joana Angélica eram donas de escravos
Entre os escritos
difíceis de ler no português arcaico das quase 20 mil cartas de alforria, dois
nomes saltaram aos olhos do historiador e pesquisador Urano Andrade, de 52
anos. Joana Angélica e Maria Quitéria. Nos documentos, as personagens
históricas da independência do Brasil na Bahia concedem liberdade a
escravizados dos quais eram donas.
A carta assinada
por Joana Angélica comprova que ela foi dona de Florinda de São José, que
aparece entre seus bens, e ainda a passou para duas irmãs do Convento de Nossa
Senhora da Conceição da Lapa. O documento é de 1816, mas a data de registro em
cartório é de 1824, o que indica que a alforria foi condicionada à morte da
dona, que aconteceu em 1822. A condicionante é comumente encontrada nas cartas.
"A liberto de
hoje para sempre e poderá gozar de sua liberdade como se nascesse livre do
ventre de sua Mãe", diz um trecho da carta. Confira a foto e a transcrição
completa a seguir:
Carta de Liberdade
de Florinda de São José:
Digo eu a Madre
Abadessa Soror Joanna Angelica de Jesus que entre os bens que possui esta
Religiosa comunidade é bem assim uma escrava de nome Florinda de São José, a
quem foi dada a Madre Joanna Maria de Jesus e Madre Anna Maria da Encarnação
para o seu serviço dentro desta clausura a que a dita escrava a liberto de hoje
para sempre e poderá gozar de sua liberdade como se nascesse livre do ventre de
sua Mãe. E para clareza passo esta por mim assinada. Bahia, e Convento de Nossa
Senhora da Conceição da Lapa 22 de junho de 1816. Soror Joanna Angelica de
Jesus, Abadessa. Soror Joanna Maria das Chagas Escrivã, Soror Thomazia Maria do
Coração de Jesus Disereta, Soror Maria Bernardina do Paraíso Disereta.
Reconheço as firmas supra. Bahia, 27 de fevereiro de 1824, estava o sinal
público, em testemunho de verdade. Francisco Teixeira da Mata Bacelar. Ao
Tabelião Mata. Bahia, 27 de fevereiro de 1824. Simões. E nada mais continha a
dita carta de liberdade que aqui lavrei da própria que entreguei a quem me
apresentou, e abaixo assinei, e com outro oficial concertei nesta Cidade da
Bahia aos 28 de fevereiro de 1824, eu Francisco Teixeira da Mata Bacelar
Tabelião a escrevi e assinei. Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia -
Seção Judiciária. Livro de Notas 210, página 23.
Já Maria Quitéria
era dona do escravizado Mauricio. A alforria dele teria sido avaliada em 400
mil réis, mas, na carta, a heroína da pátria e senhora de escravos a concede
por 300 mil réis “por caridade”. A carta é de 1852 e também é assinada por
Luiza Maria da Conceição, filha e única herdeira de Maria Quitéria.
"Cuja
liberdade lhe permito muito de minha livre vontade, sem levar a terceiro, para
que rogo as justiças de Sua Majestade Imperial e Constitucional a façam cumprir
e guardar como nela se contem, gozando-a o referido escravo, como se de ventre
livre nascesse", diz um trecho da carta.
Liberdade de
Mauricio, nagô:
Ao Tabelião Neves.
Bahia, três de novembro de mil oitocentos e cinquenta e dois. Seixas. Número
nove. Cento e sessenta. Pagou cento e sessenta réis. Bahia, três de novembro de
mil oitocentos e cinquenta e dois. Andrade Silva Rego. Pela presente carta
assinada por minha filha Luiza Maria da Conceição, única herdeira que tenho,
concedo a meu escravo Mauricio nagô sua liberdade pela quantia de trezentos mil
réis, o que enquanto o seu valor seja de quatrocentos mil réis, eu lhe perdoo
cem mil réis por caridade, recebida a dita quantia ao passar esta, presente as
testemunhas abaixo assinadas, cuja liberdade lhe permito muito de minha livre
vontade, sem levar a terceiro, para que rogo as justiças de Sua Majestade
Imperial e Constitucional a façam cumprir e guardar como nela se contem,
gozando-a o referido escravo, como se de ventre livre nascesse. Bahia, nove de
outubro de mil oitocentos e cinquenta e dois. Por Maria Quitéria de Jesus,
Luiza Maria da Conceição. Como testemunha que esta escreve a rogo da Senhora
Dona Maria Quitéria de Jesus, por em falta de vista Bernardo José Nobrega,
Nicácio Jorge Martins, Maria Luiza da Conceição. Reconheço os sinais. Bahia,
três de novembro de mil oitocentos e cinquenta e dois. Em fé de verdade sinal
público. Francisco Ribeiro Neves. Reportei, me reporto e conferi na Bahia, em
três de novembro de mil oitocentos e cinquenta e dois. Eu Francisco Ribeiro
Neves, Tabelião de Notas. Por mim escrivão. José Pereira França. Ribeiro Neves.
Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Livro de Notas nº
305, página: 111.
·
O
banco de dados
As duas cartas
fazem parte do acervo total de 19.590 que constam nos livros de notas
armazenados pelo Arquivo Público do Estado da Bahia. São 1.400 livros,
digitalizados em 365 mil imagens. Foi em 2012 que o historiador Urano começou a
se debruçar sobre elas, por conta de uma pesquisadora dos Estados Unidos que o
procurou.
A professora
Kristin Mann, da Universidade Emory, estudava escravos capturados na África e
os respectivos destinos deles. Foi então que Urano teve a ideia de buscar as
cartas de alforria registradas na Bahia e criar um banco de dados. Também
participam do projeto João José Reis, Luís Nicolau Parés e Lisa Earl Castillo.
Os livros
encontrados vão de 1664 a 1980. Agora, Urano está no ano 1855. Ele usa a
técnica de paleografia para ler o material já em condições precárias, faz a
digitalização, destaca os principais pontos e insere na planilha. Também
compartilha as descobertas no blog Pesquisando a
História.
Imerso por até 18
horas por dia nas pesquisas, ele diz sentir que vive o passado como se fosse o
presente e dar vida a pessoas que já morreram há séculos. Chega até a sonhar
com os personagens.
“São histórias de vida contadas através desses
documentos. Quero narrá-las e preservá-las para que não se percam”, diz. As
histórias são fortes e, apesar da empolgação a cada nova descoberta, diversos
trechos das cartas são de arrepiar.
·
As
cartas
Enquanto no campo
“observação” é possível encontrar a frase “já velha” como justificativa usada
para a concessão de algumas alforrias de mulheres, no campo “idade” é possível
notar que muitos dos escravizados que ganharam liberdade por essas cartas eram
crianças, incluindo casos de bebês de apenas um mês.
Urano explica que
podem ser filhos de escravizados da cidade, que, diferente dos do campo,
conseguiam, por vezes, trabalhar e ganhar dinheiro para comprar a liberdade dos
filhos. “Mas também são crianças fruto das relações entre as mulheres
escravizadas e os seus senhores, como podemos encontrar como justificativa
escrita em algumas cartas”, acrescenta.
Uma das histórias
narradas que mais marca Urano é a de Anacleta Maria do Rosário. Já liberta, ela
encontrou uma de suas filhas, que havia ficado no continente africano, sendo
vendida por um homem chamado José Antônio da Costa. Anacleta comprou a filha
por 190 mil réis, a mandou batizar com o nome Felicidade e foi a um cartório,
sem saber ler ou escrever, pedir que alguém redigisse para ela a carta que
concedia a liberdade à filha. Toda a história é narrada na carta que pode ser
conferida neste link.
Os documentos
costumavam ser assinados pelos donos dos escravizados e, então, levados aos
cartórios para registro. Era uma forma de buscar uma garantia de que não fossem
reescravizados. “Mas sabemos que a conquista da carta não significava,
necessariamente, a conquista da alforria”, pondera Urano.
·
Os
preços
Os valores pagos
pelas alforrias registrados no banco de dados vão de 20 mil a 600 mil réis.
Urano diz que, quanto mais novos e mais hábeis, mais caros. Tudo era negociado
entre escravizado e dono e seguia as regras do mercado, conforme oferta e
demanda.
Em 335 cartas, a
alforria foi concedida porque o escravizado comprou outro para entregar a seu
senhor em troca da própria liberdade. “Era comum que recepcionassem
recém-chegados da África para treiná-los e, então, vendê-los a seus senhores
porque estes eram os mais caros”, explica Urano.
“Uma das cartas
conta que um homem, já liberto, ingressou no ramo de tráfico de escravizados e,
ao ir ao continente africano e comprar um homem e uma mulher, deparou-se com um
de seus irmãos. O ex-escravizado, então, comprou seu irmão em troca do casal”,
acrescenta o pesquisador.
As imagens
digitalizadas dos livros de notas encontrados no Arquivo Público do Estado da
Bahia, com os registros desde 1664, podem ser consultadas no site do Endangered
Archives Programme,
mantido pela Biblioteca Britânica. Já o banco de dados organizado em uma
tabela, que contém as cartas de alforria de 1800 a 1850, pode ser acessado no
Journal of Slavery and Data Preservation Dataverse, com acesso
público disponível no repositório de pesquisas acadêmicas da Universidade
Harvard,
nos Estados Unidos.
¨ Carta de alforria de 1840 mostra que fundadora do
Gantois comprou a própria liberdade por 550 mil réis
Entre os escritos
difíceis de ler no português arcaico das quase 20 mil cartas de alforria, uma
delas saltou aos olhos do historiador e pesquisador Urano Andrade, de 52 anos.
A de "Julia de Nação Nagô". O nome, a princípio, não dizia muita
coisa, mas, ao analisar a carta como um todo, veio a descoberta.
Foi pelo nome do
dono, Antonio Soares de Sá, e pelo de uma das testemunhas, Manoel José d’Etre,
já conhecidos na história do Gantois, que foi possível identificar que
tratava-se de Maria Julia da Conceição Nazareth, fundadora do Terreiro Gantois.
A alforria,
comprada por 550 mil réis, foi registrada no dia 8 de outubro de 1840. Nove
anos depois, o terreiro foi fundado, nas terras arredadas a Júlia pelo
traficante de escravos belga Édouard Gantois.
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Veja a transcrição da carta:
Carta de Liberdade
da escrava de nome Julia de Nação Nagô conferida por seu Senhor Antonio Soares
de Sá:
Digo eu abaixo
assinado que entre os bens de que sou possuidor é bem assim uma escrava de nome
Julia de Nação Nagô que por receber dela a quantia de quinhentos e cinquenta
mil réis, em moeda legal, a forro e liberto de hoje para sempre, e para seu
título lhe passo a presente de minha letra e termo perante as testemunhas
abaixo assinadas. Bahia, vinte e cinco de setembro de mil oitocentos e quarenta
Antonio Soares de Sá. Como testemunha José Francisco Gonçalves Ramos e Antonio
Ferreira Guimarães, Manoel José d’Etre ao Tabelião Tavares. Bahia, vinte e
cinco de setembro de mil oitocentos e quarenta. Simões. Reconheço as três
firmas das testemunhas supra. Bahia, cinco de outubro de mil oitocentos e
quarenta. Em testemunha de verdade estava o sinal público Tiburcio Tavares de
Oliveira. A qual carta depois de aqui lançada, conferi, concertei, subscrevi e
assinei com outro Oficial companheiro na Bahia aos cinco dias do mês de outubro
de mil oitocentos e quarenta. Eu, Tiburcio Tavares de Oliveira, Tabelião a
escrevi e assinei. Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção de Arquivos
Judiciários, Livro de Notas número 269, página 48v.
Fonte: Correio
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