terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Esporte, cinema e política: E o Brasil? O que tem a ver com isso?

O Brasil ainda está sob o efeito inebriante da conquista inédita protagonizada pela atriz Fernanda Torres, que se tornou a primeira atriz brasileira a ganhar o Globo de Ouro, um dos prêmios mais prestigiados do cinema mundial. Fernanda foi laureada como a melhor atriz de drama por sua atuação no filme Ainda Estou Aqui, do diretor Walter Salles.

A admirável façanha ocorreu dezenove dias depois de o atleta Vinícius Júnior ter conquistado o prêmio de melhor jogador do mundo no The Best FIFA de 2024. O atacante do Real Madrid se tornou o primeiro brasileiro a ganhar a premiação desde 2007, quando o meio-campista Kaká conquistou o troféu para o país.

Embora não exista nenhuma relação a priori entre esses dois acontecimentos memoráveis, tanto a premiação da atriz Fernanda Torres quanto a do futebolista Vinícius Júnior, cada um em sua respectiva área, reconhecidos publicamente como os melhores do mundo, revelam que estamos vivendo um momento auspicioso no que concerne à ascensão de brasileiros no contexto das artes cênicas e do esporte. Inclusive, no último, o Brasil vem se destacando há algum tempo, apresentando uma safra de atletas de excelência, vide o desempenho espetacular da ginasta Rebeca Andrade e da judoca Beatriz Souza, que brilharam nos Jogos Olímpicos do ano passado. Beatriz conquistou o primeiro ouro do Brasil em Paris 2024, e a ginasta Rebeca, bicampeã olímpica, é a maior medalhista da história do Brasil.

Mas, por ora, vamos nos concentrar nos feitos notáveis das estrelas do momento: Fernanda Torres e Vinícius Júnior, dois brasileiros com biografias extraordinárias que, ao se consagrarem recentemente, elevaram toda a nação a um patamar de destaque no contexto global. Evidentemente, uma conquista da importância simbólica alcançada por essa dupla – Globo de Ouro e The Best FIFA – deveria provocar um sentimento de orgulho, felicidade e satisfação em todos os nossos conterrâneos, seja no Brasil ou em qualquer parte do mundo. Ao menos, esse era o esperado. Entretanto, ao tratar da realidade brasileira, nada é tão simples, e sempre existe uma camada adicional de “complexidade sociológica”, especialmente para agradar grupos, classes e segmentos sociais com preferências, costumes, valores e ideologias tão diametralmente divergentes.

É constrangedor, mas o que temos testemunhado nesses últimos dias, na contramão de qualquer justificativa plausível, é uma quantidade expressiva de ofensas, de menções infames e recalcadas que têm se multiplicado nas redes, com o objetivo de obliterar a contundência e a relevância desse momento histórico para os homenageados, bem como para todo o país.

É bem verdade que, já há algum tempo, as mídias sociais foram capturadas por uma gente extremista e colérica, que não dispensa uma oportunidade de destilar o ódio, algo que deve aumentar potencialmente com as novas mudanças anunciadas pela Meta no que tange às questões de “confiança, segurança e moderação de conteúdo“. Mas esse também é um debate para uma outra oportunidade. Nessas poucas linhas que disponho, quero lançar luz sobre um aspecto que considero de absoluta pertinência e que não posso deixar de abordar neste texto.

Ao promover uma observação mais atenta das centenas e milhares de ofensas publicadas por usuários nas plataformas digitais, constatei uma curiosa coincidência. Os que produzem ataques direcionados à atriz Fernanda Torres são rigorosamente os mesmos que publicam injúrias contra o jogador Vinícius Júnior. São pessoas da mesma estirpe, em geral ultraconservadoras, com uma retórica violenta muito semelhante. Eles desqualificam a atriz e questionam seus méritos porque ela adquiriu notoriedade global ao interpretar uma personagem real, a advogada Eunice Paiva, mãe de cinco filhos e esposa do engenheiro e deputado Rubens Paiva, preso e assassinado pelos órgãos de segurança do regime militar. Eunice, interpretada (com exímio) por Fernanda, dedicou sua vida à luta pela responsabilização dos culpados pelo homicídio de seu marido.

Vale lembrar que, ainda em 2025, existe um grupo de brasileiros (minoritários, mas ruidosos) que contesta a veracidade da violência, corrupção e autoritarismo do regime que vigorou no Brasil entre os anos de 1964 e 1985. Para estes, a Ditadura Militar não foi real, mas uma falácia orquestrada por grupos de esquerda. Essa gente limítrofe, fruto desses tempos nefastos de ‘idade mídia’, tenta reescrever a história do Brasil segundo seus próprios ditames e interesses. Por essa razão, o sucesso da atriz Fernanda Torres e do filme Ainda Estou Aqui provoca tanto descontentamento, uma vez que, ao se consagrar como melhor atriz de drama, Fernanda projeta o filme e sua mensagem de denúncia contra a Ditadura Militar para todas as regiões do mundo.

Quanto ao jogador brasileiro, o que mais incomoda os descontentes é o fato de Vinícius ser um jovem negro, oriundo da periferia do Rio de Janeiro, capaz de protagonizar com coragem e intrepidez a luta antirracista no futebol europeu. O futebolista tem se posicionado com contundência diante dos ataques racistas que sofre frequentemente nos jogos da La Liga. Essa postura altiva e aguerrida, em vez de despertar empatia e solidariedade, tem provocado em alguns de nossos conterrâneos um sentimento de revolta e repulsa, pois não suportam a ideia de um negro que ouse ‘erguer sua voz’ contra a violência racial na Europa ou no Brasil. Não toleram a possibilidade de um negro que não conhece o “seu lugar” e que não “abaixa a cabeça”, não rindo dos insultos, como se a ofensa racial não lançasse no campo da indignidade toda a humanidade.

Arrisco afirmar que Fernanda e Vinícius representam a síntese mais bem acabada do Brasil contemporâneo. Eles representam nossa gente corajosa, resiliente e talentosa, capaz de brilhar nos palcos mais prestigiados do mundo. Em um país estruturalmente racista, com disparidades abissais entre negros e brancos, onde o genocídio negro é um projeto de Estado em franco processo de desenvolvimento, e um jovem negro tem quatro vezes mais chances de morrer do que um branco, é o jogador brasileiro quem nos recorda que a juventude negra brasileira precisa viver e ser feliz para atingir todas as suas possibilidades de realização.

Em uma sociedade despudoradamente machista e misógina, que atualmente ocupa o quinto lugar no ranking mundial de feminicídios, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), é a atriz Fernanda Torres que nos traz à memória que as mulheres são o passado, o presente e o futuro do Brasil, pois elas são portadoras da esperança, mesmo ‘nos momentos mais difíceis, como os quais Eunice Paiva passou’, tal como verbalizou Fernanda em seu discurso de premiação.

Por fim, quero asseverar que Fernanda Torres e Vinícius Júnior merecem ser reconhecidos, celebrados e homenageados por seus feitos, por sua existência que embeleza e enche de orgulho nossa brava gente brasileira. E quanto aos haters, os inimigos do Brasil, os que tentam distorcer a história brasileira para satisfazer suas mesquinhas conveniências, aqueles que propagam o ódio como forma de política, que advogam teses irracionais em nome da regressão civilizatória, eu vos deixo com as palavras de Drummond, que sabiamente nos adverte: “Não, o tempo não chegou de completa justiça. O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera…’. Mas, contra todas as probabilidades e expectativas, ‘uma flor nasceu na rua! Uma flor ainda desbotada… garanto que uma flor nasceu… Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”

 

¨      Sem anistia: a mensagem clara de 'Ainda Estou Aqui'

Se já era extraordinário o desempenho da película "Ainda Estou Aqui" , de Walter Salles Jr., com 3,1 milhões de espectadores no Brasil até o domingo, 5 de janeiro passado, a concessão do prêmio de melhor atriz dramática para Fernanda Torres tem o poder de transformar a obra num fenômeno de público ainda maior.

Até a concessão do prêmio, o filme estava em cartaz em 145 redes de cinema do Brasil, oferecidos em 187 salas. Nesta semana, já são 350 estabelecimentos que o exibem, em 400 salas.

A inédita vitória de  Fernanda Torres para o cinema brasileiro, desbancando competidoras de peso como Angelina Jolie (pelo filme Maria), Nicole Kidman (por Babygirl), Tilda Swinton (por O Quarto ao Lado), Kate Winslet (por Lee) e Pamela Anderson (por The Last Showgirl), vem se prestando a interligar, no filme de Salles Jr.  significados incidentes ao longo de um arco histórico dilatado, sugerindo que o fenômeno da ditadura não foi superado inteiramente. 

O prêmio foi comemorado como se se tratasse de um triunfo equivalente à conquista da Copa do Mundo pela seleção nacional de futebol. O presidente Lula fez questão de ligar para parabenizar a atriz. Nos cinemas, a história da luta de Eunice Paiva após a prisão, tortura e morte do ex-deputado Rubens Paiva, em 1971, por forças da ditadura, tem suscitado aplausos demorados seguidos do grito "Sem Anistia", entoado pelas plateias.

De fato, Eunice, na busca por esclarecer o destino do ex-marido, na luta por obter um atestado de seu óbito, já havia se tornado uma referência do movimento por verdade, memória e justiça às vítimas das ações sanguinárias da ditadura.

Agora, o filme sobre Eunice, baseado no livro homônimo de seu filho Marcelo Rubens Paiva, oferece a oportunidade para que novas gerações conheçam as violências cometidas naquele período, sob as ordens dos ditadores de plantão e o silêncio, quando não o apoio explícito dos  meios de comunicação golpistas. Espectadores de todo o mundo também se informam agora do que ocorria no Brasil na longa noite que durou de 1964 a 1985.

Mais do que isso, o filme intervém no contexto de agora. 

O grito "Sem anistia" abre-se a diversas leituras. Refere-se ainda à necessidade de esclarecimento, punição e reparação do legado de graves e sistemáticas violações de direitos humanos durante a ditadura de 64. Refere-se, porém, sobretudo, à repulsa dos brasileiros hoje a iniciativas para anistiar o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros, militares e civis, herdeiros e cultores da ditadura anterior, de tentar agora um novo golpe para reeditar o autoritarismo em 8 de janeiro de 2023.

Como aquele golpe, que torturou e assassinou Rubens Paiva e muitos outros, o de agora também previa matar o próprio presidente Lula, seu vice Geraldo Alckmin e o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes. 

A interpretação de Fernanda Torres (bem como de sua mãe Fernanda Montenegro, que faz Eunice mais velha, no fim da vida, limitada pelo mal de Alzheimer), carrega a força de uma mulher que represa as emoções para atingir sua meta. É sua contenção que  emociona as plateias e as leva a soltar o grito: "Sem Anistia".

¨      Marcia Tiburi: ‘prêmio de Fernanda Torres pode conter a ascensão fascista’

Em entrevista ao programa Boa Noite 247, a filósofa Marcia Tiburi analisou o impacto da premiação internacional da atriz Fernanda Torres no contexto político e cultural brasileiro. Segundo Tiburi, o reconhecimento de obras artísticas como o filme de Walter Salles, estrelado por Torres, transcende o âmbito cultural e adquire relevância política ao enfrentar narrativas autoritárias.

"É um momento de muita alegria", afirmou Tiburi. "Nós temos que comemorar e discutir esse filme porque ele traz questões importantíssimas para pensar o nosso passado, nosso presente e, evidentemente, o futuro, considerando o risco da ascensão fascista, especialmente em períodos eleitorais como o que se aproxima em 2026."

A filósofa destacou que a arte e a cultura desempenham um papel crucial na formação de subjetividades democráticas. "Se as artes e a cultura ficarem nas mãos da extrema direita, teremos um mundo cada vez mais fascista", advertiu. Ela ainda traçou um paralelo com a manipulação estética promovida por regimes autoritários, como o nazismo. "A estética produz sensibilidade, e isso pode ser usado tanto para fomentar o ódio quanto para construir empatia e solidariedade."

Tiburi também refletiu sobre o papel do cinema no fortalecimento da democracia. "Esse filme conseguiu implantar um sentimento de empatia maravilhoso, ao contar a história de uma família destruída pela ditadura militar, algo que dialoga diretamente com a história do Brasil e suas feridas ainda abertas."

Sobre a estratégia da extrema direita em manipular afetos, Tiburi enfatizou: "O afeto que vence e faz a extrema direita chegar ao poder é sempre o ódio. Ele não é abstrato; é organizado e fomentado por meio de processos estéticos e afetivos."

Respondendo à audiência do programa, que questionou como competir com grandes veículos de propaganda de extrema direita, como o Brasil Paralelo, a filósofa sugeriu que é essencial fortalecer a mídia democrática e alternativa. "Apoiar pensadores, cursos e iniciativas democráticas é um caminho. Precisamos estudar mais, fortalecer a educação e a cultura para resistir à cultura autoritária e ao ódio."

Por fim, Tiburi ressaltou a relevância de prêmios internacionais como o recebido por Fernanda Torres. "É impossível desmerecer um reconhecimento desse nível. Ele nos lembra que o Brasil sabe fazer cinema, arte e cultura. É urgente que o Ministério da Cultura ocupe a centralidade que merece, pois arte não é algo menor — é um elemento transformador da sociedade e da democracia."

A filósofa encerrou com um apelo: "Lembrem-se: não há arte do lado da extrema direita. Há uma indústria cultural da ignorância que precisa ser combatida com educação, cultura e sensibilidade democrática." 

¨      Paulo Betti: "Todos nós brasileiros fomos premiados. Viva o cinema nacional!

 Paulo Betti, renomado ator, diretor e professor universitário, compartilhou em entrevista à TV 247, uma reflexão profunda sobre a premiação de Fernanda Torres no Globo de Ouro como Melhor Atriz. Segundo Betti, o prêmio é uma vitória coletiva. "Eu me senti premiado junto. Todos nós brasileiros fomos premiados", declarou. A entrevista abordou desde os desafios do cinema nacional até a memória histórica em produções audiovisuais.

A obra que rendeu a premiação a Fernanda Torres foi o filme "Ainda Estou Aqui", que retrata a luta de Eunice Paiva, figura marcante na resistência contra a ditadura militar. "É uma história que nos traz reflexão e nos conecta a um passado que não pode ser esquecido", afirmou Betti. Ele destacou a relevância de manter viva a memória histórica em tempos em que, segundo ele, "há quem ache que ditadura é refresco".

<><> Memória e conexão com a história nacional

O ator compartilhou memórias pessoais ligadas ao contexto da história de Eunice Paiva, mencionando sua relação próxima com a família de Marcelo Rubens Paiva, filho da homenageada, e o impacto que a trajetória de luta pela justiça teve em sua formação artística e cidadã. "Eu dirigi a peça Feliz Ano Velho e convivi de perto com a família. Essa conexão tornou tudo ainda mais visceral para mim", contou.

Betti também exaltou o talento de Fernanda Torres, descrevendo sua interpretação como "magistral" e destacando o humor e a sensibilidade da atriz. "Ela trouxe uma verdade tão profunda para o papel que emocionou até aqueles que não conheciam a história de Eunice", acrescentou, ao lembrar a experiência de assistir ao filme ao lado da família em um cinema no Rio de Janeiro.

<><> Cinema nacional: resistência e desafios

Além de celebrar as conquistas, Betti ressaltou as dificuldades enfrentadas pelo cinema brasileiro. Ele recordou episódios marcantes, como a resistência para exibir Cafundó, filme que dirigiu sobre João de Camargo, líder espiritual negro. "Na época, enfrentamos barreiras porque o tema incomodava grandes redes. Isso mostra como o mercado pode ser hostil a narrativas que fogem do mainstream", relatou.

O ator também comentou a ascensão do streaming e o impacto nas produções. Apesar de reconhecer a ampliação do alcance, ele criticou a falta de regulamentação que proteja os direitos dos intérpretes. "Estamos lutando para que nossos direitos sejam garantidos, tanto no streaming quanto diante da inteligência artificial", afirmou.

<><> Uma trajetória acadêmica e política

Paulo Betti, que foi professor na Unicamp e estudou na New York University com bolsa da Fundação Fulbright, ressaltou como sua formação acadêmica influenciou sua carreira artística. "Tive a sorte de aprender com grandes mestres e de levar isso para minhas criações", disse. Ele também relembrou momentos de militância política e cultural, como sua atuação em campanhas e peças com forte teor social.

<><> Futuro do cinema e esperança para o Brasil

Encerrando a entrevista, Betti expressou otimismo com o impacto de obras como Ainda Estou Aqui e a força transformadora da arte. "O cinema tem o poder de unir pessoas, de emocionar e de trazer reflexões necessárias. É essa conexão que nos dá esperança para o futuro", concluiu.

 

Fonte: Por Jonathan da Silva Marcelino, no Le Monde/Brasil 247

 

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