Excesso de telas em
crianças pode causar sintomas que se confundem com autismo?
"As telas são
um veneno. Eu não sabia o mal que estava fazendo ao meu próprio filho."
Nadia David Peres,
de 45 anos, precisava aliar uma rotina atribulada no trabalho como médica aos
cuidados com o pequeno Breno, que hoje está com três anos.
Ela cumpria parte
das horas do expediente em casa, realizando atendimentos à distância no período
da tarde — e encontrou nas telas uma maneira de manter o filho entretido por
longas horas.
Segundo a mãe,
Breno passava uma média de seis horas por dia assistindo desenhos.
"Muitas vezes,
para conseguir trabalhar, precisava deixá-lo no celular ou no tablet. E
ele ficava ali quietinho, assistindo", relata ela.
Em março deste ano,
porém, a situação começou a mudar de figura.
"Recebi uma
carta da escola em que ele estudava que chamou a atenção para um comportamento
muito parecido com alguns sintomas típicos do autismo", diz Peres.
"Ele não
olhava nos olhos dos outros durante interações sociais, era agressivo com outras
crianças, mordia, batia, não se concentrava em nenhuma atividade, se recusava a
comer certos alimentos, tinha birras excessivas e não podia ser
contrariado", lista ela.
Peres diz que a
carta não chegou a surpreendê-la, pois ela já observava muitas dessas
características do filho em casa. Mas receber o comunicado foi a gota d'água
para finalmente buscar ajuda profissional.
"Marquei uma
consulta com uma neuropediatra, que me perguntou sobre a rotina do Breno.
Quando descrevi nosso dia a dia, ela constatou que estava tudo errado
e meu filho tinha uma exposição excessiva às telas", conta Peres.
Após a avaliação, a
família decidiu cortar totalmente o contato com esses aparelhos.
"E a melhora
dele foi absurda. Em questão de duas semanas, o Breno passou a interagir mais,
deixou de agredir os colegas, diminuiu as birras… Agora ele come de tudo e está
muito mais feliz", descreve Peres.
"Eu realmente
não fazia ideia de quão errados estávamos. Antes de fazer essa mudança e cortar
as telas, eu ia em restaurantes, observava outras crianças chorando ou correndo
e pensava: 'Gente, por que esses pais não dão um desenho para elas
assistirem?'", lembra a mãe.
A neuropediatra que
acompanha Breno ainda não descartou e nem confirmou um diagnóstico de autismo —
o menino precisa ser acompanhado por mais um tempo, para observar como ele se
desenvolve.
"Mas posso
garantir que, a partir do momento que tiramos as telas, ele melhorou
70%", estima Peres.
Breno também está
fazendo fonoaudiologia para lidar com um atraso na fala e, segundo Peres, as
sessões também o ajudam a desenvolver a comunicação.
É claro que, para
conseguir lidar com esse movimento de extinção das telas em casa, a mãe
precisou fazer uma série de mudanças na rotina.
"Eu e meu
marido somos do interior de Minas Gerais e hoje moramos em Belo Horizonte. Não
temos família aqui ou uma rede de apoio para nos ajudar com os cuidados. Muitas
vezes, o único suporte é do meu outro filho, que está com 13 anos", relata
ela.
"Precisei
fazer adaptações na agenda, reduzir minha carga horária e abrir mão de alguns
trabalhos que tinha."
"Mas entendo
que é mais importante estar com o Breno nesse momento", complementa Peres.
A médica destaca
que, a partir do momento que removeu os dispositivos, precisou criar novas
formas de interagir com o filho.
"Nós começamos
a conversar mais e a inventar brincadeiras. Ele passou a conversar com maior
frequência e a dormir muito melhor."
·
Fenômeno
recente em ascensão
A história de Peres
está longe de ser única. No podcast "Mil e Uma Tretas", a atriz Thaila
Ayala relatou uma situação bem parecida com o filho Francisco, que também tem
três anos.
"Chamava [o
Francisco] pelo nome e ele não respondia, as coisas que ele normalmente fazia,
não fazia mais, não olhava mais no olho. Eu cheguei a pensar que ele tinha
algum grau de autismo", disse ela.
Após a avaliação de
um profissional de saúde, a orientação também foi reduzir o contato de
Francisco com smartphones, tablets, computadores e televisões.
"Com toda a
rede de apoio que eu tenho, cortamos [as telas]. Foram dez dias sem tela e eu
tinha outra criança em casa. Fiquei muito chocada", relatou ela.
Esse trecho da
entrevista foi compartilhado nas redes sociais — e diversas outras mães
relataram casos parecidos com os próprios filhos.
Mas será que o
contato com as telas pode de fato trazer esse impacto para as
crianças? Elas chegam mesmo a desenvolver padrões de comportamento que
podem até levantar suspeitas de autismo?
Especialistas
ouvidos pela BBC News Brasil dizem que sim.
O neuropediatra
Anderson Nitsche, do Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, explica que o
núcleo central do autismo "é a dificuldade de socialização e a tendência
de um comportamento repetitivo e estereotipado, sem muita função".
"E o excesso
de telas pode fazer com que algumas crianças desenvolvam esse comportamento,
principalmente uma dificuldade de socializar e aquela tendência de repetir
estratégias, conversas e falas que veem nos vídeos", contextualiza ele.
"Isso é algo
relativamente comum e, quando o problema está relacionado às telas, o
comportamento da criança muda quando há maior controle no tempo de
exposição", complementa o especialista.
A psicóloga e
neurocientista Mayra Gaiato, do Instituto Singular, em São Paulo, reforça
que as telas não causam o autismo — é que o contato excessivo com
conteúdos audiovisuais nos primeiros anos de vida pode afetar o desenvolvimento
de certas habilidades ou influenciar a forma como a criança se comporta.
Vale lembrar que
o autismo está relacionado à uma interação entre predisposição
genética — pesquisas já identificaram centenas de mutações no DNA
relacionados a esse transtorno — e o ambiente em que a criança cresce.
"O contato com
as telas libera no cérebro um neurotransmissor chamado dopamina", pontua
Gaiato.
"Em excesso,
essa substância não consegue ser absorvida pelo sistema nervoso e pode suscitar
descontroles emocionais e sensoriais."
"O problema é
que, quanto mais se usa as telas, mais dopamina é liberada. E isso cria um
vício que gera dependência, alteração no sono, problemas comportamentais, irritabilidade,
falta de atenção e dificuldades de interagir socialmente", complementa a
especialista.
Gaiato destaca que
esse fenômeno pode acontecer até mesmo com desenhos educativos, feitos para
idades específicas — cores, sons e imagens são altamente excitatórios e tornam
qualquer outro estímulo, como um brinquedo de madeira, pouco atrativo.
Vale notar ainda
que a maioria dos relatos de famílias e das observações de especialistas chamam
a atenção para a reversibilidade dos sintomas nesses casos. Quando o tempo nas
telas é reduzido ou completamente cortado, a criança volta a ter um padrão de
comportamentos típico para a idade dela.
Um estudo da
Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos EUA, acompanhou um grupo de
indivíduos um pouco mais velhos, na pré-adolescência, que foram enviados a um
acampamento.
Esse grupo não teve
contato nenhum com as telas durante a viagem — e os cientistas já puderam notar
uma melhora na capacidade de reconhecer emoções e usar recursos de comunicação
nas interações sociais deles, em comparação a uma turma de jovens que não mudou
os hábitos e continuou a ver TV e a mexer no celular.
"Vemos
claramente isso acontecer no consultório. Muitas vezes, de uma consulta para
outra, quando os pais fazem a mudança no regime de telas, a criança que
apresentava um comportamento muito próximo ao autismo volta mais organizada,
menos irritada, fazendo contato social e com maior atenção", descreve
Nitsche.
·
O
que dizem as evidências científicas?
A relação entre
telas e sintomas similares ao autismo é algo relativamente novo e pouco
estudado.
Há alguns poucos
trabalhos acadêmicos publicados sobre o tema. Um deles, feito em 2020 por
especialistas de três hospitais franceses, conclui que "a síndrome de
superexposição precoce à mídia deve ser avaliada em crianças que apresentam
atraso de fala com sintomas similares ao autismo".
Esse é um dos
primeiros artigos a dar um nome para esse problema. Como mencionado no
parágrafo acima, os autores o chamam de "síndrome de superexposição à
mídia".
Já o psicólogo
romeno Marius Zamfir cunhou em 2018 o termo "autismo virtual", que
serve para descrever certas questões comportamentais em crianças de zero a três
anos.
Segundo o
especialista, essas manifestações incluem "deprivações sócio-afetivas e
sensório-motores" e são causadas "por uma exposição de mais de quatro
horas por dia ao ambiente virtual".
Na avaliação de
Zamfir, indivíduos submetidos a esse regime prolongado de consumo de conteúdos
audiovisuais apresentam "sintomas funcionais e comportamentais observados em
crianças com transtorno do espectro autista (TEA)".
Vale reforçar que
esses termos ainda não são consenso entre especialistas da área e nem
aparecem em manuais de Psicologia ou Psiquiatria. São necessárias mais
pesquisas para confirmar (ou descartar) a existência de um quadro desses.
Mas, pela
observação dos próprios pais e dos profissionais de saúde que recebem essas
crianças nos consultórios, esse é um fenômeno que chama cada vez mais atenção
na prática.
Gaiato lembra que,
no caso do transtorno do espectro autista "formal", que possui
critérios de diagnóstico e tratamento bem estabelecidos, as telas também são
uma preocupação constante.
"Se a criança
já possui um transtorno do neurodesenvolvimento e ainda é exposta às telas, o
prejuízo é incalculável", diz ela.
"Nesses casos,
o indivíduo é privado da interação social, algo que ele mais precisava numa
época em que o cérebro está em formação e tem maior neuroplasticidade, ou seja,
uma capacidade de fazer novas conexões e novos caminhos para aprender e absorver
coisas novas."
A psicóloga explica
que crianças com autismo que são intelectualmente estimuladas no início da
vida, com pouco ou nenhum consumo de conteúdo por telas, têm uma chance maior
de desenvolver sintomas mais leves.
"Essa
estimulação precoce pode fazer com que alguns indivíduos tenham manifestações
menos graves, quase imperceptíveis aos olhos de quem conhece pouco sobre o
autismo", complementa a especialista.
Algumas pesquisas
publicadas nos últimos anos investigaram uma possível relação entre o uso de
telas e o autismo.
Um estudo feito na
Universidade de Yamanashi, no Japão, por exemplo, analisou 84.030 mães e filhos
— e concluiu que, entre meninos, a exposição prolongada a conteúdos
audiovisuais no primeiro ano de vida "esteve significativamente associada
ao diagnóstico de TEA aos três anos de idade".
Já uma revisão
sistemática (que compila resultados de vários artigos) feito no Instituto de
Neurociências Comportamentais e Psicologia da Califórnia, nos EUA, aponta que
"quanto mais longa [e precoce] a exposição às telas, maior o risco da
criança desenvolver TEA".
Não custa reforçar,
as evidências não revelam que desenhos e vídeos de internet causam o autismo —
falamos aqui de um transtorno relacionado a diversas questões genéticas e
ambientais.
Mas as evidências
apontam que as telas podem ser um fator a mais a contribuir para o agravamento
de determinadas manifestações do quadro.
·
Por
que as telas são tão danosas?
Na última década,
entidades como a Academia Americana de Pediatria (AAP) e a Organização Mundial
da Saúde publicaram manuais e consensos sobre o uso de telas durante a
infância.
Em linhas
gerais, a orientação é evitar o contato com smartphones, tablets,
computadores e televisões nos primeiros 18 meses de vida. A única exceção aqui
são as videochamadas, sempre com a supervisão de pais ou responsáveis.
Entre 18 e 24
meses, os pais devem "buscar uma programação de alta qualidade" caso
queiram introduzir as telas aos poucos, diz a AAP. A ideia é que a família
assista o programa em conjunto e faça brincadeiras relacionadas ao tema.
Dos dois aos cinco
anos, as entidades recomendam que o tempo de tela não ultrapasse "uma hora
por dia", sempre com conteúdos de alta qualidade.
Já para as crianças
mais velhas, a partir de seis anos, a AAP fala em "estabelecer um
planejamento familiar de contato com a tecnologia que tenha regras
consistentes".
·
Mas
o que faz as telas serem tão ruins à saúde dos pequenos?
"Estudos
internacionais sólidos demonstram que as telas diminuem a capacidade de
socialização das crianças ao reduzir o tempo que elas interagem com o mundo
real", responde Nitsche.
"Há também um
aumento no risco de desenvolver problemas visuais, obesidade, de linguagem,
entre outros", complementa o neuropediatra.
"O tempo que a
criança passa numa tela, por menor que seja, já rouba oportunidades de ela
aprender coisas que são muito importantes", resume Gaiato.
O médico Francisco
Assumpção, coordenador do Departamento de Psiquiatria Infantil da Associação
Brasileira de Psiquiatria, lembra que humanos são seres sociais e dependem da
interação para a própria sobrevivência.
"Ou nós nos
agrupamos, compartilhamos, fazemos atividades colaborativas e dividimos o
trabalho, ou morremos", raciocina ele, que também é professor do Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
"As telas são
exatamente o oposto disso."
"E a situação
fica ainda pior quando falamos de um indivíduo em crescimento. As crianças
precisam aprender a se relacionar com os outros", ensina Assumpção.
"Quando limito
esse aprendizado por causa das telas, estou modelando um adulto futuro que não
sabe se relacionar, interagir, viver e compartilhar interesses reais, fora do
mundo virtual", complementa ele.
A médica Magda
Lahorgue Nunes, presidente do Departamento Científico de Neurologia da Sociedade
Brasileira de Pediatria (SBP), destaca que a preocupação com as telas não está
relacionada apenas à quantidade de horas assistidas, mas também à qualidade do
conteúdo.
"Ainda não
temos regras muito claras sobre o acesso à internet, especialmente das
crianças. Hoje em dia, qualquer um acessa o que quiser, incluindo sites
maliciosos que promovem apostas, jogos, pornografia…", alerta ela, que
também é professora titular de Neurologia da Escola de Medicina da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
·
Dá
pra melhorar a relação com as telas?
Embora os
dispositivos eletrônicos possam representar uma ameaça à saúde das crianças,
não dá pra negar que eles fazem parte do dia a dia da maioria das pessoas
— e é praticamente impossível pensar a vida hoje sem esse apoio da
tecnologia.
Será que dá pra
garantir uma relação mais saudável (e menos danosa) com as telas na infância?
"O primeiro
passo é dar o exemplo. Os pais precisam se policiar para eles próprios não
usarem as telas por um tempo prolongado", começa Nitsche.
Definir regras
claras e uma rotina, com horários definidos para fazer todas as atividades
(dormir, acordar, fazer as refeições, tomar banho, assistir TV…) também é
primordial, avalia o especialista.
"Isso ajuda a
criança a ter uma previsibilidade e saber quando vai poder usar as telas",
complementa o neuropediatra.
"Ao limitar
esse tempo, também é possível aumentar o convívio familiar e trazer outras
atividades interessantes, com o envolvimento de pais e cuidadores",
acrescenta Nunes.
Já Assumpção sugere
que as famílias adotem a política de uma única televisão em casa.
"Com uma TV,
todos veem a mesma programação, interagem, comentam e precisam aprender a
negociar sobre qual programa será assistido e por quanto tempo", argumenta
ele.
Essa negociação,
aliás, é uma boa maneira da criança desenvolver o pensamento e a linguagem. As
conversas posteriores sobre o vídeo ou o desenho assistido também são
bem-vindas, pois ajudam a entender e dar perspectiva às emoções que foram
suscitadas por aquele conteúdo.
Aliás, o tamanho e
as funcionalidades da tela também têm influência aqui.
"A televisão é
melhor, ou menos pior, que tablets e smartphones", exemplifica Gaiato.
"As crianças
não podem controlar os dispositivos. Elas não devem voltar o mesmo conteúdo ou
pular de um vídeo para outro quando quiserem", complementa a psicóloga.
Nesse contexto, é
importante que o conteúdo tenha começo, meio e fim — e o pequeno
passe por todas as etapas da história e lide com eventuais frustrações que
sentir nesse processo.
Se ele tiver o
controle em mãos — ou puder passar o vídeo para frente com os próprios dedos —
a tendência é buscar conteúdos com cada vez mais estimulantes.
"É preciso se
frustrar com as esperas e os intervalos", diz Gaiato.
Nitsche pondera que
as telas "podem ser um recurso digital interessante, que fazem parte da
vida e que precisamos aprender a usar".
"Isso acontece
com todas as tecnologias que temos no mundo. O carro pode matar pessoas, mas
também nos transporta de um ponto a outro."
"O uso das
telas passa por uma discussão dos próprios valores daquela família e o que
quero que meus filhos entendam e aprendam ao utilizar esse recurso",
argumenta ele.
Mas será que só
reduzir as telas resolve todos os problemas? Quando a criança deve ser levada
para uma avaliação com um especialista?
"Nossa relação
com os outros depende de um instrumental linguístico e comportamental. Se a
criança consegue fazer isso conforme cresce, não há com o que se
preocupar", orienta Assumpção.
"Agora, se ela
apresenta dificuldades nos relacionamentos sociais, como problemas para se
comunicar ou prefere fazer atividades específicas e autocentradas, vale buscar
um especialista", pontua o médico.
Nádia Peres, que
passou por todo esse processo de descoberta com o pequeno Breno, torce para que
mais pais e responsáveis desenvolvam uma relação saudável dos filhos com
desenhos, jogos e vídeos online.
Fonte: BBC News
Brasil
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