Emmanuel Todd: “A
crise do ocidente é a crise do mundo”
Antropólogo e
demógrafo de formação, Emmanuel Todd defende a tese de uma diversidade política
fundamental entre as nações do mundo, devido às diferenças nas estruturas
familiares originárias presentes no planeta. Todd voltou recentemente
a ser tema de debate no mundo ao publicar sua última obra, A derrota do
Ocidente, alertando as nações do mundo sobre o perigo representado pelas nações
ocidentais, lideradas pelos Estados
Unidos,
para a estabilidade do mundo. Descreve um mundo ocidental submerso em uma grave
crise interna social, política e religiosa, que cai no niilismo e
na autodestruição, e consequentemente fomenta os principais conflitos
armados que sacodem o mundo. Neste sentido, Todd afirma que a OTAN é responsável
pela eclosão da guerra
na Ucrânia,
mas não é capaz de vencê-la devido ao seu declínio econômico, industrial e
educacional. Para o antropólogo, o inevitável fracasso militar e econômico
da OTAN contra a Rússia na Ucrânia marca
o início do fim da dominação ocidental no mundo.
<><> Eis
a entrevista.
·
Até
no título de seu livro você prediz “a derrota do Ocidente”. Para começar, o que
você entende por “Ocidente”?
Em termos
políticos, trata-se do Império Americano. Para ser mais preciso, eu diria
que o conceito de “Ocidente" corresponde ao sistema de dominação
estadunidense. É importante entender que os Estados Unidos exercem
uma dominação financeira, política e militar sobre inúmeros países no mundo.
Essa dominação pode ser natural em alguns casos, especialmente nos países da
anglosfera (Reino Unido, Austrália, Canadá) ou então
uma servidão voluntária, como no caso dos países escandinavos e
a França. Também incluo no sistema estadunidense os países que foram
conquistados pelos Estados Unidos no final da Segunda Guerra
Mundial: Alemanha, Itália e Japão. No entanto, sei que se fala
muito de um “Ocidente” uniforme nos marcos religioso e cultural. Esta noção, na
minha opinião, não faz sentido: não existe uma única cultura ocidental, mas,
sim, uma grande diversidade entre os países que associamos ao mundo
ocidental. Isto produziu diversos fenômenos políticos, caso reflitamos
bem: democracia liberal, fascismo, nazismo, entre outros. A
ideia de “valores” ocidentais uniformes é ridícula para o antropólogo que sou.
Sendo assim, minha análise antropológica das estruturas familiares antigas
dentro da esfera ocidental me levou a distinguir dois grupos diferentes.
Em primeiro lugar,
um Ocidente estruturalmente
liberal em suas estruturas antropológicas e familiares, que inclui
a França e os países anglo-saxões. Esses países se caracterizam
historicamente por contar com estruturas familiares flexíveis, compostas por
lares nucleares e um papel mais notório das mulheres em comparação a outras
regiões, bem como por uma rápida saída dos filhos do lar familiar. Nesses
países, a democracia liberal se desenvolveu com maior facilidade do
que em outros lugares. Em segundo lugar, um Ocidente mais autoritário,
que inclui principalmente o mundo germânico, o Japão e
a Coreia do Sul. Nesses países, as estruturas familiares tradicionais eram
mais verticais, caracterizadas pela convivência do pai com um único filho
herdeiro, dentro de uma casa matriz, e por um status limitado das mulheres. São
países “não liberais”, mas certamente “ocidentais” devido ao seu
desenvolvimento econômico e a sua proximidade política com os Estados
Unidos.
É muito importante
entender a diferença entre esses dois grupos de países para entender como a
atual crise no Ocidente se desenvolve.
·
Em
seu livro, você considera que a ascensão do protestantismo levou ao êxito do
Ocidente. Que relação você estabelece entre uma religião particular e essa
ascensão econômica?
O protestantismo original
- que nada tem a ver com a sua versão herética, o evangelismo – é pouco
conhecido em regiões de tradição católica
como França, Espanha e América Latina.
Esse protestantismo se
caracterizava por um sistema de constrição extrema sobre o indivíduo,
manifestado em um superego rígido e autoritário, bem como por uma forte pressão
exercida pela coletividade. Isto se traduzia, entre outras coisas, em uma ética
do trabalho implacável e uma obsessão pela educação, considerada necessária
para ter acesso aos textos sagrados sem a intermediação de um padre. Além
disso, demonstrava indiferença em relação à noção de igualdade, devido
à doutrina da predestinação. Conforme demonstrado por Max
Weber,
o protestantismo foi um motor central na ascensão econômica
do Ocidente. Eu penso que, por uma série de circunstâncias,
esse protestantismo, ao alfabetizar e disciplinar populações inteiras,
facilitou a ascensão econômica de uma parte do mundo. Por exemplo,
a Alemanha foi o primeiro país a alfabetizar sua população em massa,
muito antes da Revolução Francesa, e se tornou a principal potência
industrial da Europa no início do século XX. A Inglaterra iniciou
a Revolução Industrial,
enquanto Suíça e Suécia alcançaram níveis notáveis de
prosperidade e organização social.
·
Em
seu livro, você demonstra que o capitalismo atual se libertou da ética
protestante. Quais são as consequências desta transformação?
Meu livro reflete
sobre as consequências do desaparecimento da prática religiosa protestante, que
tanto contribuiu para o desenvolvimento econômico e educacional dos países onde
se estabeleceu. Observamos hoje o desaparecimento da vantagem econômica e
educacional das nações protestantes em comparação ao resto do mundo. Desde
1965, o nível educacional dos Estados Unidos está em declínio, como
demonstram os resultados dos exames de aptidão em matemática e leitura. Também
somos testemunhas de um retrocesso na valorização do trabalho manual
especializado e na formação de engenheiros. Os Estados Unidos e
a Inglaterra estão se tornando incapazes de produzir industrialmente
em larga escala, e a proporção da indústria em seu PIB cai frente aos
serviços, especialmente as atividades financeiras. Em ambos os países, a
proporção de estudantes que escolhem carreiras em engenharia é agora muito
menor do que em outras economias ocidentais e nos países BRICS. Afinal, esses
dois países foram pioneiros de um novo sistema econômico – que eu chamaria
de sistema de destruição econômica –: o neoliberalismo, cuja
ideia central é ganhar dinheiro não apenas sem produzir nada, mas destruindo as
forças produtivas. Uma ganância sem limites, em suma. O desaparecimento
da ética protestante marca, portanto, o declínio econômico, cultural
e moral de nações como a Inglaterra e os Estados Unidos. Estes
países estão agora submersos em crises sociais internas que ameaçam a
estabilidade do mundo.
·
Você
considera que as nações ocidentais estão perdendo a guerra na Ucrânia. Esta
derrota é inevitável?
Absolutamente.
A Ucrânia perdeu a guerra, tenho certeza disso. A indústria
estadunidense não conseguiu produzir em massa para equipar o exército
ucraniano, apesar das enormes ajudas financeiras conferidas ao governo
da Ucrânia. Isto não era difícil de prever: os Estados
Unidos formam significativamente menos engenheiros do que a Rússia,
embora tenham uma população duas vezes maior. Penso que a derrota estadunidense
também pode ser explicada por sua incapacidade em mobilizar plenamente seus
principais aliados industriais,
como Alemanha, Japão e Coreia do Sul. Entre esses três países,
a Alemanha era o alvo prioritário dos Estados Unidos, cuja
obsessão estratégica era cortar seus laços econômicos e energéticos com
a Rússia. Essa aproximação germano-russa ameaçava, a longo prazo, excluir
economicamente os Estados Unidos da Eurásia. Por isso, ativaram
um conflito inútil na Ucrânia que prejudica as relações entre
a Rússia e a Alemanha.
A sabotagem dos
gasodutos Nord
Stream,
claramente realizada pelos Estados Unidos, manifesta uma realidade sombria
para a Alemanha: este país nunca foi verdadeiramente independente, desde
a Segunda Guerra Mundial. A Alemanha é um estado de soberania
limitada, ainda ocupado militarmente pelos Estados Unidos e encaixado
dentro da OTAN. Tem um governo democraticamente eleito, mas que não é
soberano: só é livre para seguir os Estados Unidos, seja com má vontade ou
com entusiasmo. Os Estados Unidos parecem ter fracassado em seus
esforços de mobilizar plenamente a Alemanha neste conflito. No
entanto, nem tudo está dito: se a Alemanha e sua potência industrial
chegassem realmente a se envolver na guerra, estaríamos em um grande perigo.
·
Você
descreve os Estados Unidos como uma sociedade sem objetivos, nem valores, onde
subsistem apenas “obsessões residuais pelo dinheiro e o poder”. Esta
configuração também não existe em outros países, inclusive fora da esfera
ocidental?
Entendo o sentido
da sua pergunta, mas para melhor respondê-la, quero antes de tudo me referir à
história religiosa das nações.
Na França,
existe uma escola de pensamento que reúne inúmeros intelectuais, entre
eles Marcel Gauchet, Olivier Roy e Régis Debray, que
refletem sobre as consequências políticas e sociais do desaparecimento da
matriz religiosa em uma sociedade. Isto não é particularmente surpreendente no
país da laicidade e do anticlericalismo.
Inspirando-me em
seus trabalhos e em minhas pesquisas, cheguei a distinguir três etapas na
história religiosa de uma sociedade. Em primeiro lugar, a etapa da religião
ativa, onde os valores religiosos estruturam e regem a vida social dos
indivíduos. Depois, a da religião “zumbi”, onde o colapso da crença em
Deus é compensado por religiões substitutas que impõem morais muito
exigentes. O comunismo, o socialismo e
o republicanismo me parecem ser exemplos desta categoria de
“religiões zumbis”. Por fim, a terceira etapa, correspondente à nossa época, é
a da “religião zero”: não existe mais nenhuma crença, e nenhum projeto religioso
ou político consegue mobilizar as populações. Neste ponto, levanto uma hipótese
de trabalho: o surgimento de pulsões niilistas na sociedade. O indivíduo, em
princípio libertado de toda crença e de qualquer valor restritivo, enfrenta a
vertigem de sua nova liberdade. Diante da complexidade desta nova condição
humana, observam-se fenômenos de conformismo social e intelectual,
especialmente nas classes dirigentes, mas, sobretudo, vejo como reação mais
comum uma deificação do vazio e uma perigosa rejeição da realidade tal como uma
atração pela violência. Isto se chama niilismo. Voltarei a isto mais
detalhadamente ao falar dos Estados Unidos contemporâneo. Também
penso que cada sociedade reage de forma diferente diante do vazio religioso e
ideológico. Na Rússia, Alemanha e China, este vazio existe,
é claro, mas o legado de estruturas familiares mais densas e complexas permite
a estas sociedades manter uma forte organização social e industrial. A China e
a Alemanha são hoje as principais potências industriais do mundo, ao
passo que a Rússia está conseguindo vencer a sua guerra contra
o Ocidente.
Ao contrário, nos
países onde as estruturas familiares eram mais flexíveis e nucleares, os
valores religiosos desempenhavam um papel muito mais importante na estruturação
dos indivíduos. Seu colapso causa uma desorganização social muito mais
acentuada.
Estamos assistindo
a uma guinada histórica repleta de certa ironia. Durante a primeira crise
da modernidade, marcada pela industrialização e
pelo desenvolvimento do capitalismo, as sociedades que experimentaram
transições menos violentas foram aquelas onde o individualismo era mais
marcante, como o mundo anglo-americano e escandinavo. Ao contrário,
na Alemanha, Rússia e China, a transição para
a modernidade capitalista e industrial foi marcada por fases
totalitárias de uma violência extrema: nazismo, stalinismo e maoismo.
Hoje, o desconcerto e a angústia mais intensos são encontrados nas sociedades
desprovidas de um legado de estruturas familiares complexas. Esta falta de
estruturação social constitui um terreno fértil para desvios políticos
perigosos.
Gostaria de
compartilhar uma reflexão que pode interessar aos leitores espanhóis e
sul-americanos: o mundo anteriormente protestante me parece estar imerso em um
processo de degradação social e moral ainda mais acentuado do que mundo
anteriormente católico. Pergunto-me se países como os Estados
Unidos e o Reino Unido, onde as desigualdades alcançam níveis
repugnantes e onde as taxas de mortalidade estão aumentando, não alcançaram o
que eu chamaria de “estágio -1” das crenças religiosas e políticas. Agora,
penso na ideia de negatividade para descrever a sociedade estadunidense. Não
observo nada tão extremo em países anteriormente católicos.
·
O
que o leva a afirmar que a sociedade estadunidense atual é niilista e “negativa”?
Para entender a
dimensão da angústia social nos Estados Unidos, não pretendo me basear em
uma indignação moral, mas, ao contrário, ater-me aos fatos. Como bom herdeiro
do sociólogo Durkheim, apoio-me em estatísticas que medem a saúde pública,
como a taxa de suicídios, a mortalidade infantil e o nível de mortalidade
acidental, para avaliar o estado de anomia de uma sociedade. Os Estados
Unidos não são esta sociedade em pleno dinamismo que as oligarquias
europeias e sul-americanas costumam colocar em um pedestal… Ali, os
conceitos de moda mobilizados pelos intelectuais são os de “diseases of
despair” e “deaths of despair”, ou seja, as doenças e mortes relacionadas ao
desespero. O diagnóstico é incontestável: a sociedade
estadunidense alcançou um nível de degradação tal que as pessoas
literalmente começam a morrer por conta disso. Por exemplo, a taxa de suicídios
quase duplicou desde o ano 2000 e agora ultrapassa a das nações europeias.
Desde 2019, o aumento das mortes acidentais, violentas ou por insalubridade,
especialmente por envenenamento ou doenças crônicas, levou a uma queda
vertiginosa na expectativa de vida dos estadunidenses, que agora é inferior à
dos chineses. Pior ainda, a mortalidade infantil – o indicador por
excelência para medir a capacidade de uma sociedade de proteger os mais
vulneráveis - está aumentando e já supera a da Rússia e talvez, logo,
a da China.
Estes indicadores
já dramáticos em si nem sequer conseguem ilustrar toda a dimensão da violência
que o sistema estadunidense inflige à sua própria população. Existem
fatos graves que refletem uma profunda imoralidade por parte das supostas
“elites” estadunidenses. Por exemplo, o comportamento do sistema de saúde, que
envenenou deliberadamente milhões de estadunidenses ao lhes fornecer analgésicos
altamente viciantes e mortais, é revelador. Ainda mais grave é a incapacidade
do Congresso em proibir essas substâncias, sob a influência de lobbies, o que
ilustra o estado moral absolutamente deplorável das classes dirigentes.
É essencial que o
leitor entenda que existe algo profundamente abominável no sistema
estadunidense. Não se trata apenas de uma ausência de moralidade: é
um niilismo ativo, que carrega consigo, como qualquer niilismo,
uma atração pelo vazio e a morte. Isto se reflete na política externa do
grupo dirigente do país, que sempre opta pela guerra ou pelo agravamento dos
conflitos existentes.
·
Sua
análise é particularmente sombria sobre os Estados Unidos, mas também sobre a
Inglaterra. Você tem uma antipatia particular em relação a estes países?
Pessoalmente,
gostaria que o leitor sul-americano entendesse que não tenho contas pendentes
com os Estados Unidos. Historicamente, ao longo da minha vida, inclusive
fui muito mais pró-americano e pró-anglo-saxão. Sinto uma dívida para com esse
país, onde minha família materna judia se refugiou para escapar do nazismo.
Esta análise severa dos Estados Unidos, mas também da Inglaterra,
onde me formei como pesquisador na Cambridge, é para mim um verdadeiro
drama pessoal. Quero insistir brevemente na gravidade do declínio da nação
inglesa para o mundo, não porque a Inglaterra continue sendo uma
grande potência capaz de influenciar o destino global, mas porque constituía
uma espécie de matriz intelectual e moral, um modelo de “referência” para as classes
dirigentes estadunidenses, especialmente no âmbito educacional. Penso que o
desaparecimento da cultura de referência inglesa gera consequências
prejudiciais para a sociedade estadunidense.
·
Muitas
vezes, você é chamado de “profeta” por ter previsto, em 1976, a queda da URSS.
O que acontecerá nos próximos anos com os Estados Unidos?
O fracasso da
guerra estadunidense na Ucrânia, tanto no campo de batalha quanto no
terreno econômico, por meio das sanções, revela duas fragilidades principais:
por um lado, a fragilidade industrial dos Estados Unidos e, por
outro, o fato de terem se transformado em uma nação predatória, utilizando o
dólar e sua supremacia financeira para dominar, intimidar e saquear outras
nações. E, pouco a pouco, o mundo está percebendo esta realidade, exceto
na Europa. A curto prazo, os Estados Unidos enfrentarão uma
derrota na Ucrânia. Isto me parece uma certeza. O primeiro papel de Donald
Trump será
administrar essa derrota nesta frente. Seu objetivo será claro: convencer a
opinião mundial e seus rivais de que a derrota estadunidense
na Ucrânia nada mais é do que uma derrota do exército ucraniano.
Os Estados Unidos sempre tentaram jogar o peso de seus fracassos
sobre os seus aliados. No entanto, desta vez, duvido que o mundo se deixe
enganar por esse discurso. Testemunhamos algo extraordinário: na linha de
frente, a indústria militar estadunidense foi superada por sua equivalente russa,
e a economia do país de Vladimir
Putin resistiu
às sanções ocidentais.
No plano
econômico, Donald Trump tentará revitalizar a indústria
estadunidense, porque está consciente das graves carências de seu país neste
marco. Por conseguinte, acentuará a guinada protecionista iniciada
por Obama. À primeira vista, parece uma estratégia inteligente para resistir
ao processo de desindustrialização: os Estados Unidos, graças ao seu
tamanho e recursos, poderiam fazer uma política protecionista funcionar.
No entanto, penso
que esta estratégia está condenada ao fracasso. O processo de declínio interno
dos Estados Unidos está muito avançado.
·
Considera
que Trump não conseguirá reindustrializar os Estados Unidos?
Não conseguirá, e
por várias razões. Primeiro, o país sofre uma desqualificação de sua mão de
obra: faltam engenheiros e trabalhadores qualificados. Friedrich List, o
grande teórico alemão do protecionismo, havia entendido perfeitamente que
tal política só poderia ter êxito se uma nação contasse com uma mão de obra
suficientemente competente. Caso intensifiquem suas medidas protecionistas,
os Estados Unidos correm o risco de enfrentar desabastecimentos, o
que traria consequências sociais incalculáveis em um contexto já marcado por
uma forte degradação social. Depois, um fenômeno igualmente grave
dificultará o renascimento industrial esperado por Trump. A verdadeira
riqueza dos Estados Unidos - seu PIB - não está em seus
bens industriais, que exportam em quantidades muito inferiores a suas
importações, mas na supremacia do dólar. Como moeda mundial, utilizada nos
intercâmbios internacionais e como moeda de reserva para os ricos do mundo, o
dólar confere à finança estadunidense um poder ilimitado de criação monetária e
infla de forma artificial o PIB do país. Isto tem efeitos negativos
nos povos de todo o mundo, mas também na economia estadunidense, que sofre
uma patologia comparável à dos estados petrolíferos, onde a energia monopoliza
os recursos nacionais em detrimento de outros setores econômicos. Explico-me:
nos Estados Unidos, grande parte da energia e dos investimentos da
sociedade são dedicados à extração de dólares através do setor financeiro.
Quando se tem dinheiro, sempre será mais lucrativo investir em atividades
financeiras improdutivas do que na produção industrial. Além disso, um advogado
tributário ou um banqueiro de investimentos ganhará muito melhor em sua vida do
que um engenheiro ou um empresário industrial. Enquanto o dólar continuar sendo
a moeda dominante do mundo, os Estados Unidos não conseguirão se
reindustrializar.
·
O
declínio brutal dos Estados Unidos é inevitável? Mesmo apesar do dinamismo de
uma parte da sua sociedade?
Provavelmente.
Especialmente porque tenho provas de que Trump parece não ter
entendido as razões. Por exemplo, ameaçou os BRICS com tarifas altas,
se parassem de usar o dólar como moeda de intercâmbio e de reserva. Ao agir
dessa forma, Trump se apresenta tanto como defensor
da supremacia do dólar quanto da indústria estadunidense, uma
posição incoerente e contraditória. Na realidade, os Estados
Unidos são um império que teve muito êxito na história e que agora se
baseia em rendas. A primeira é o dólar, a segundo são seus recursos
excepcionais em hidrocarbonetos, e a terceira é o uso mundial do inglês, que
lhes permite uma forte influência cultural e ideológica. Estas rendas também
permitem que atraiam muitos jovens graduados do mundo todo, especialmente para
polos dinâmicos como a tecnologia californiana e a finança de Nova York,
mas, ao mesmo tempo, atrofiam o seu potencial produtivo. Sendo assim, aqueles
que se apresentam como os “gênios” estadunidenses, como Elon
Musk e Peter
Thiel, nem sequer nasceram nos Estados Unidos. Pergunto-me se este país
não tem o poder de emburrecer os jovens graduados mais promissores... O caminho
que os Estados Unidos estão tomando é preocupante. Acho difícil
imaginar as consequências de um cessar abrupto do fornecimento mundial de
mercadorias, que alimenta continuamente um país que produz cada vez menos bens
reais para o mercado mundial. Não gosto dos desastres, mas é difícil não prever
graves transtornos no futuro.
·
Menciona
muito brevemente o conflito israelo-palestino no epílogo de seu livro. O que a
política israelense te inspira? Trata-se do niilismo que você denuncia ou de
“legítima defesa”?
Sejamos claros:
independentemente da opinião que se possa ter sobre ambos os lados, uma pessoa
psicológica e moralmente normal deve concordar com um fato: o que o Estado
de Israel comete na Faixa
de Gaza é
monstruoso. Diante do drama que se desenvolve, não se trata mais de ser “pró”
algo, mas simplesmente de estar do lado da humanidade. A política israelense
vai contra todos os valores humanos fundamentais. Também transparece uma
realidade: os bombardeios israelenses são, na
verdade, bombardeios estadunidenses, já que os Estados
Unidos fornecem o material necessário para este massacre. Sem a ajuda
estadunidense, Israel nunca teria sido capaz de massacrar tantas
pessoas. Portanto, coloco esta atrocidade em paralelo ao estado de degradação
moral absoluta das “elites” estadunidenses e seu niilismo. Estas elites
não têm interesse, nem sequer em termos de poder, em apoiar uma guerra que, a
longo prazo, as afasta de todos os seus aliados árabes. Isto se assemelha mais
a uma forma de fascinação niilista pela violência e a guerra do que com uma
estratégia de poder reflexiva e racional. O problema é semelhante na Europa,
especialmente na França: enquanto os cidadãos comuns entendem a
monstruosidade do que está acontecendo, as classes dirigentes parecem dispostas
a ignorar esta atrocidade. Mais uma vez, é difícil não ver sinais de um colapso
moral aqui. Sou extremamente pessimista quanto ao desencadeamento do conflito.
Aqueles que olham com consternação as atrocidades cometidas pelo exército
israelense em Gaza não parecem perceber que isto é apenas o começo do
horror.
·
Considera
que sofrimentos maiores virão para as populações do Oriente Médio?
Certamente, a
situação no Oriente Médio piorará, pois a população israelense,
devido ao efeito de entrada e saída do país, está se tornando cada vez mais
violenta.
Os israelenses
razoáveis, pressentindo a tragédia que se aproxima, estão deixando o país. Esta
tendência, que começou há vários anos, foi acelerada desde os atentados de
7 de outubro de 2023. Esses migrantes se dirigem para os Estados
Unidos, Europa e Rússia. Por outro lado, aqueles que se sentem
atraídos pelo Estado de Israel, que nem sempre são judeus, parecem estar
motivados principalmente pela violência e o desejo de combater os árabes.
Admito que ainda tenho dificuldade em entender como o Estado de
Israel pôde chegar a esse ponto, embora eu esteja começando a me aprofundar
na pesquisa sobre o assunto. Isto continua sendo um imenso drama para a
história ocidental: proteger o povo judeu, vítimas do horror do Holocausto, era um imperativo
moral indiscutível para os países ocidentais. Ver hoje um Estado que se
autoproclama judeu envolvido em uma espiral de violência contra outro povo
certamente provoca uma profunda angústia metafísica. Como pessoa de origem
judaica, descendente de uma família que fugiu do nazismo, tenho
dificuldades em considerar que o Estado de Israel ainda seja
realmente um “Estado judeu”. Massacrar pessoas de forma indiscriminada me
parece totalmente contrário aos valores talmúdicos. É difícil não ver, neste
país, como em muitos países ocidentais, uma forma de “religião zero” - um vazio
de valores que alimenta o niilismo e a necessidade de violência.
Fonte: Entrevista
para Rafael Karoubi, em Diario
Red - tradução do Cepat, em IHU
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