Mouzar Benedito: Ser de
esquerda ainda tem sentido?
“Isso de esquerda e direita não tem mais sentido”,
dizem muitas pessoas. E não é de hoje. Que eu me lembre, lá pelos anos 1980 já
ouvia um pouco isso, e a partir da queda do Muro de Berlim, na década seguinte,
a coisa se escancarou. Para quem procurava uma desculpa para pular para a
direita ou, no mínimo, “se alienar”, o fim do muro foi um prato cheio. Quando
algum chegado criticava a degringolada ideológica de um amigo ou conhecido, o
sujeito fazia cara de ofendido e dizia para quem queria manter um mínimo de
coerência: “Ô, meu! Caiu o Muro de Berlim”, querendo dizer que a tal queda
simbolizava o fim das coisas, o início de uma espécie de era do “vale tudo”, e
quem não seguisse essa tendência era um retrógrado, imbecil, fora do seu tempo.
Tinha que se atualizar, seguir o que poderia ser chamado de tendência do
momento. Seguir o “espírito da época”, ou, sofisticando, falavam em alemão: “Zeitgeist”. Lembrei para alguns deles
que nos anos 1930, por exemplo, ser uma pessoa do “seu tempo”, para muitos, era
ser nazista na Alemanha e fascista na Itália. Aqui tinha os integralistas e,
mais tarde, nos anos 1990, seguir o espírito da época era apoiar e aplaudir o
modelo tucano de FHC e ser neoliberal, não é? Eles eram. E pioraram de lá pra
cá.
Enfim, por aqui, o reflexo da queda do muro foi a
pulada pra direita da maioria dos militantes do PCB, dirigidos por Roberto
Freire, que liderou uma negação da sua própria história, criando o PPS (Partido
Popular Socialista), uma espécie de braço do PSDB. Sobrou uma minoria que
manteve a sigla PCB. Eu dizia então que a queda do Muro de Berlim tinha
mostrado quanta gente estava em cima do muro. Nos anos seguintes, o PFL (Partido
da Frente Liberal) tornou-se um aliado automático do PPS (que agora chama-se
Cidadania). De direita, o PFL era liderado por Antônio Carlos Magalhães, o ACM,
também conhecido como Toninho Malvadeza, por causa do tratamento que dava aos
seus opositores na Bahia.
Eu não tinha simpatia pelo modelo político da União
Soviética, que ela estendia aos países alinhados, e nunca engoli certas coisas
do stalinismo, mas achava (ingenuamente?) que seu futuro seria uma evolução
para um socialismo democrático. Gozado (ou cara-de-pau dessa turma) é que
quando falávamos isso muita gente do antigo PCB nos xingava como se fôssemos
anticomunistas, enquanto eles seriam os defensores perpétuos da Revolução.
Depois da famigerada queda do Muro de Berlim e da derrocada da União Soviética,
esse mesmo pessoal que antes nos xingava por acharmos que a União Soviética não
era o paraíso da classe operária passou a nos xingar como se nós fôssemos os
defensores do modelo stalinista e eles os críticos.
Bom, repito: sempre achei que muito desse pessoal
procurava simplesmente uma desculpa para deixar de ser de esquerda, para ir
“cuidar da sua vida”: ganhar muito dinheiro, ficar rico, tornarem-se amigos e
parceiros do que hoje chamam de “faria limers” (que horror de expressão).
Decidiram se locupletar, como diria o humorista Stanislaw Ponte Preta.
Em vez de admitir que mudaram, preferiram fingir
que esses conceitos de esquerda e direita não existiam mais e que quem
permanecesse com ideias de esquerda não passava de um dinossauro. Não sei como argumentariam
hoje, já que existe uma direita explícita, assumida — na verdade, uma extrema
direita.
Eu não sou nenhum teórico político, mas nunca
engoli isso e dizia que esquerda e direita não só continuava existindo como
assumiu novas características. Como trabalhei como jornalista voltado para a
agricultura (uma das minhas dezenas de empregos), citava minha experiência
nessa área: “Existe até uma prática agrícola de esquerda e uma de direita”, eu
dizia. E não estava me referindo a latifúndios X pequenas propriedades.
Uma agricultura de esquerda se preocupa com o solo,
o clima, a produção de alimentos saudáveis, pensando nas próximas gerações. Um
agricultor de esquerda age assim. Enquanto isso, uma agricultura de direita não
dá a mínima para essas coisas. Quer tirar o máximo de lucro da terra, no menor
tempo possível. E para isso, haja veneno, haja práticas predatórias (vocês
sabem que o Brasil não tinha desertos – nossos professores falavam maravilhas
sobre isso, mas plantadores de soja no sudoeste gaúcho, com essas práticas,
acabaram criando um deserto, em Alegrete). Ferrou tudo ali? “Vamos pra outro
lugar. Tem muito a ser destruído”. Preocupação com o futuro, a produção de
alimentos? Danem-se as futuras gerações (embora eles achem que seus filhos e
netos seguirão herdeiros de fortunas). Alimentar o povo? Besteira!
Naquela época já existiam fazendeiros poderosos de
direita agrupados na UDR – União Democrática Ruralista, embrião do agronegócio
predador de hoje. Um pessoal que acha ridículo produzir alimentos para o povo
brasileiro (dá pouco lucro, no conceito deles), preferindo plantar só o que
pode exportar com muito mais lucro. A produção de soja, que “justifica” em
parte a devastação de florestas, a deterioração do clima, dos solos, das águas;
a expulsão de povos indígenas de suas terras — matando, se for preciso. É uma
carga pesada do que classifico como ambição sem limites, ódio e otras cositas más. Muitos odeiam
a agricultura familiar e o MST porque produzem alimentos para os brasileiros.
Claro, nem todos são assim, mas esse tipo de ideologia se tornou um símbolo
destes novos tempos).
Ah… Esses agronegociantes ainda recebem muitos
benefícios fiscais que aumentam ainda mais seus lucros. E o que fazem com a
grana? Entre outras coisas, financiam golpistas.
Lembro mais uma coisa atual sobre eles: as
ferrovias como a norte-sul, que não transportam passageiros, foram feitas só
para descarregar a produção deles, basicamente de soja. Acho que o transporte
ferroviário, comparado com o rodoviário, seria mais “de esquerda”, desde que
feito para transportar com custo mais barato não só mercadorias, mas também
gente. As novas ferrovias do Brasil, acho, são “de direita”: não levam gente
nem a produção da agricultura familiar, só coisas de interesse dos
agronegociantes. Ajudam a desmatar o Cerrado, por exemplo, e não beneficiam o
povo. São de interesse exclusivo dos deterioradores do meio ambiente, com a
desculpa de melhorar a balança comercial. Destroem nosso futuro dando lucro
para poucos e “ajudando” a equilibrar as contas dos governos.
Não preciso me estender mais. Acho que esse exemplo
da agricultura (e das novas ferrovias), que pode ser de direita ou de esquerda,
encontra semelhanças em muitas outras áreas, e não vou ficar com um didatismo
desnecessário aqui.
<><> Coletei várias frases sobre o
assunto e reproduzo abaixo. Incluo algumas com as quais não concordo.
Mary Shelley: “Para ser de esquerda é preciso ler e
pensar muito. Para ser de direita, tudo que é preciso fazer é ter orgulho da
sua própria ignorância”
***
Françoise Chagan: “Não sou filiada a nenhum partido
político, mas estou comprometida com a esquerda. Odeio matar. Se houvesse
guerra, eu iria para onde? Não sei. Mas se houvesse uma invasão fascista eu
lutaria. Contra uma causa indigna, eu lutaria”.
***
Pablo Castellano Cardallaguet: “A direita acusa a
esquerda de ideologizar tudo. A direita tem o costume de fazer negócio com
tudo”.
***
Rosa Luxemburgo: “Quem é feminista e não é de
esquerda, carece de estratégia. Quem é de esquerda e não é feminista, carece de
profundidade”.
***
Rosa Luxemburgo, de novo: “Só uma pessoa inteira
pode ser também um socialista inteiro”.
***
Luís Fernando Veríssimo: “É ‘de esquerda’ ser a
favor do aborto e contra a pena de morte, enquanto direitistas defendem o
direito do feto à vida, porque é sagrada, e o direito do Estado de matá-lo se
ele der errado”.
***
Carlito Maia: “Quando a esquerda começa a contar
dinheiro, converte-se em direita”.
***
Clarice Lispector: “Sempre conservei aspa à
esquerda e outra à direita de mim”.
***
Salvador Dali: “O céu não está em cima ou embaixo,
ou à direita, ou à esquerda; está no centro do peito do homem que tem fé”.
***
Millôr Fernandes: “A diferença fundamental entre
Direita e Esquerda é que a Direita acredita cegamente em tudo que lhe
ensinaram, e a Esquerda acredita cegamente em tudo que ensina”.
***
Nelson Rodrigues: “Como são parecidos os radicais
da esquerda e da direita. Dirá alguém que as intenções são dessemelhantes. Não.
Mil vezes não. Um canalha é exatamente igual a outro canalha”.
***
Guimarães Rosa: “Chegando na encruzilhada tive que
me arresolver… pra esquerda fui contigo… Coração soube escolher”.
***
Humberto Castelo Branco: “A esquerda é boa para
duas coisas: organizar manifestações de rua e desorganizar a economia”.
***
Odorico Paraguaçu: “Isto deve ser obra da esquerda
comunista, marronzista e badernenta”.
***
Che Guevara: “Que culpa tenho eu, se meu sangue é
vermelho e meu coração e de esquerda?”
***
Carlos Drummond de Andrade: “E se Deus é canhoto e
criou com a mão esquerda? Isso explica, talvez, as coisas deste mundo”.
***
Yves Citton: “Ser de esquerda é ter uma certa
confiança na energia e na inteligência da juventude”.
***
George Benanos: “Há uma burguesia de esquerda e uma
burguesia de direita. Não existe povo de esquerda ou de direita, existe apenas
um povo”.
***
Karl Marx: “A história da sociedade até os nossos
dias é a história da luta de classes”.
***
Marx, de novo: “Os trabalhadores não têm nada a
perder em uma revolução comunista, a não ser suas correntes”.
***
Mao Tse-Tung: “Nós, comunistas, somos como sementes
e as pessoas são como o solo. Onde quer que a gente vá, devemos nos unir às
pessoas, criar raízes e florescer entre elas”.
***
Fidel Castro: “Ele [Jesus Cristo] foi o primeiro
comunista. Repartiu o pão, repartiu os peixes e transformou a água em vinho”.
***
Alexandra Kolontai: “A revolução socialista na
Rússia significou uma revolução também na situação da mulher. Pela primeira vez
um país tomava medidas concretas para alcançar a igualdade entre homens e
mulheres”.
***
Norberto Bobbio: “A direita considera a
desigualdade social tão natural quanto a diferença entre o dia e a noite. A
esquerda encara-a como uma aberração a ser erradicada”.
***
Baltasar Gracián: “Não escolha o lado errado de uma
discussão só porque o seu oponente escolheu o lado certo”.
***
Gery Mollet: “Os comunistas não estão à esquerda…
estão a leste”.
***
Ariano Suassuna: “Quem, na sua visão do social
coloca ênfase na justiça, é de esquerda. Quem a coloca na eficácia do lucro, é
de direita”.
***
José Saramago: “Quando a esquerda chega ao poder,
não usa as razões pelas quais chegou. A esquerda deixa de o ser muitas vezes
quando chega ao poder, e isso é dramático”.
***
Alexandre Moraes: “A extrema-direita tenta se
eleger para corroer as instituições”.
***
George Orwell: “Um povo que elege corruptos,
impostores, ladrões e traidores, não é vítima. É cúmplice!”.
***
Orwell, de novo: “Muito do pensamento de esquerda é
uma espécie de brincadeira com fogo por parte de pessoas que nem sabem que o
fogo é quente”.
***
Cristovam Buarque: “Não fui eu que mudei, foi a
esquerda que envelheceu”.
***
John Lennon: “Sim, eu acredito que Deus é como uma
usina de força, que Ele é um poder supremo, que não é nem bom nem ruim, nem de
direita nem de esquerda, nem branco nem preto. Ele simplesmente é”.
***
Arnaldo Jabor: “O que sempre ferrou o Brasil foi a
burrice da esquerda e a canalhice da direita”.
***
Paulo Freire: “Nos anos 60 fui considerado um
inimigo de Deus e da Pátria, um bandido terrível. Hoje diriam que eu sou apenas
um saudosista das esquerdas”.
***
Paulo Freire, de novo: “O que o capitalismo tem de
bom é apenas a moldura democrática. Um dos maiores erros históricos das
esquerdas que ser fanatizaram foi antagonizar socialismo e democracia”.
***
Edward Said: “Para a direita, o Islã representa o
barbarismo. Para a esquerda, teocracia medieval. Para o centro, um tipo de
exotismo de mau gosto. Há, no entanto, uma opinião comum a todos, unânime, que
mesmo pouco que se sabe sobre o mundo islâmico, não há muito que possa ser
aprovado lá”.
***
Leon Tolstói: “Dar centavos com a mão esquerda
depois de tirar milhares com a direita, chama-se caridade”.
***
Patrik Jake O’Rourke: “Nem conservadores nem
humoristas acreditam que o homem é bom. Mas os esquerdistas acreditam”.
***
Gilbert Kerith Chesterton: “Chegará o dia em que
será necessário desembainhar a espada para afirmar que a grama é verde”.
***
Oscar Wilde: “O democrata exige que todos os
cidadãos comecem na mesma linha. O homem de direita acha que deveríamos parar
alguns. O homem de esquerda gostaria que todos terminassem em primeiro”.
***
Gustave Thibon: “À direita dormimos. À esquerda
sonhamos”.
Fonte: Blog da Boitempo
Nenhum comentário:
Postar um comentário