Psicanálise e normatividade
— o amor para Freud e Kelsen
No livro O Banquete,
Platão narra um simpósio realizado na casa de Agatão, o qual recepciona mais
seis convidados, incluindo o principal deles, Sócrates, para uma celebração.
Por lá, as sete personagens discorrem sobre o amor e a importância deste para o
ser humano. Interessante notar que Erixímaco relata sobre o equilíbrio
existente na visão ontológica do amor, haja vista que há uma união entre o
sadio e o mórbido.
Complementando a ideia dual, Sócrates explicita uma explicação de
completude por meio da carência, já que a busca pelo ser, visando-se a
concretude do amor, nada mais é do que a tentativa de se encontrar com aquilo
que falta no próprio ser. Ora, a figura de Eros é então retratada como uma
figura híbrida, tendo em vista que este semideus é filho de Pênia (a própria
carência/falta) e Poros (deus da abundância). Percebe-se, a partir de tal narrativa,
que Eros busca incessantemente aquilo que não possui, pois há uma ausência a
ser preenchida, diferentemente dos deuses completos do Olimpo.
Assim, este processo é caracterizado pelas virtudes divinas, que é o bem
e o belo, conceitos estes explorados por Platão em suas obras. Então, como
configuração do Eros, nota-se a essência de imputação da mudança de estágio do
“não ter” para o “ter”, pois não há, mas sim há de haver. Não satisfeita, a
obra contempla ainda a visão de Pausânias, tendo o amor dual interconectando em
si as formas amorosas etérea e carnal, enfatizando o aspecto duplo.
Todavia o que mais chama atenção em O Banquete com toda a certeza é o discurso de Aristófanes,
afinal a gênese da sexualidade possui explicações simbólicas ao longo da dissertação.
Logo, é explicado que no início havia três tipos de seres humanos, sendo estes
o de sexo masculino, o feminino e o andrógino.
No entanto, tais criaturas possuíam fisionomia dupla se comparado com os
indivíduos atuais, haja vista que a constituição era de duas cabeças, quatro
pernas, quatro braços, duas bocas etc. Desta forma, estes primeiros seres sobem
até o reino dos deuses para confrontá-los e destroná-los, mas perdem a guerra.
Como castigo, Zeus ordena que os corpos sejam cortados pela metade, dando
origem aos aspectos fisionômicos dos dias de hoje. Porém, uma das consequências
é a formação de dois seres que partem de um, então o de sexo masculino acaba se
tornando dois homens e, com o sexo feminino, ocorre o mesmo processo com a
síntese de duas mulheres. Já do andrógino cria-se um homem e uma mulher.
Desta maneira, para Aristófanes, a ideia de complementação de sua “cara
metade” é criada juntamente com os desejos heteroafetivos, já que o homem que
foi separado de sua parte mulher a busca incessantemente, assim como a parte
feminina busca seu igual masculino. Concomitantemente, a homoafetividade é
enfatizada pela busca do homem para com seu par masculino e, a mulher, para com
sua metade feminina.
A história explicita alguns conceitos filosóficos e normativos, tendo em
vista que há de se compreender que a essência humana é homoafetiva e bissexual
pelos seus respectivos complementos enquanto ser humano originário único. Logo,
a heteroafetividade é que seria o desvio do “natural” humano, divergindo do que
é pregado pelos contextos diversos da humanidade.
Entretanto, Hans Kelsen não faz um juízo de valor da sexualidade
normativa (Solon; Silva, 2024) por estar alinhado a Freud ao não patologizar as
relações sexuais nos dias presentes e, muito menos, na Antiguidade Clássica.
Ainda, Hans Kelsen pode estar correto ao analisar que as condutas autoritárias
dos diálogos, que refletem o pensamento de Platão, convergem para a repressão
homoafetiva do autor. Todavia, o jusfilósofo não leva em consideração o caráter
nômade das relações afetuosas na Grécia.
Ora, o Eros não encarna (utilizando-se uma expressão kardecista como
meio didático) como forma de engessar-se a uma criatura, mas sim está em
contínuo movimento até alcançar a sublimação do belo, já que o falta como
essência. Tal fluxo é estabelecido nas relações a partir do momento em que há a
necessidade do seu próprio complemento, sendo a relação entre os homens gregos
vista como uma virtude de cunho pedagógico e complementar.
Importante ressaltar que o conceito de heteronormatividade regida por um
status dominante, assim como a homofobia retratada de forma discriminatória,
são termos recentes na história humana. Parte-se do pressuposto, segundo Michel
Foucault, que o termo o qual define a repulsa entre a relação de dois
indivíduos do mesmo sexo remonta ao século XIV, tendo em vista que a
homossexualidade sempre existiu, mas não como rótulo que delimite a
personalidade de um indivíduo. Ou seja, a relação homossexual ocorria como
forma de ação momentânea ou não, mas sempre com um caráter verbal e não
substancial de uma pessoa.
Sendo assim, não há sentido em dizer que uma sociedade era
heteronormativa se a definição de hétero, bi ou homossexual, como substrato
constituinte do indivíduo, é algo recente. Mais uma vez, observa-se o nomadismo
amoroso ao se retratar as relações comunitárias.
Nota-se que há uma desinformação ao retratar a sociedade ateniense como
aberta aos costumes homoafetivos por si só. Na verdade, as relações apenas eram
bem vistas na pedagogia do desenvolvimento do homem como ser capaz de exercer
sua política. Para tal, era costumeira a união entre uma pessoa mais velha e
experiente (erastes) e jovens (eromenos). Esta união de tutoria servia de
auxílio na criação e educação do jovem, criação esta que possuía certas
especificidades, como a relação sexual com seu mestre (Andrade, 2018).
Mas o que não é observado é que tal fenômeno não é sinônimo de
penetração consentida sem restrições morais e sociais, já que o procedimento de
sexo intercrural (entre coxas) é o que ocorria de forma aconselhável. Assim,
após o período de apadrinhamento e iniciação sexual, o jovem dirigia-se para
outro estágio de sua vida, incluindo o casamento com uma mulher visando a
reprodução para agregar na coesão social da pólis. Encara-se, deste modo, um intrínseco pensamento de
mudança amoroso no cidadão grego, já que a permissão para fases homoafetivas e
heteroafetivas era explorada de forma satisfatória segundo o próprio
desenvolvimento.
Contudo, o Eros o qual busca o engendramento da beleza, desenvolve-se na
relação entre homens, já que o complemento entre um homem e uma mulher fica
preso à reprodução. Em suma, a fonte de inspiração para se contemplar a beleza
seria entre o corpo de cidadão (homens), não se levando em consideração o sexo
feminino como membro deste horizonte de eventos, já que a mulher era excluída
da vida pública.
Como consequência, há uma inclinação na definição do belo e do bem ao
formalizar o movimento da entidade metafísica que perpassa pelo corpo, mas que
vai além ao chegar até a alma e continuar seu trajeto para outros estágios.
Sendo assim, Platão reúne fatores que podem explicar seu caráter aristocrático
que perpassa até os dias atuais ao se explicitar os conceitos neoconservadores
que abarcam os ideais militaristas, nacionalistas e antidemocráticos (Trevisan,
2008).
Em primeiro lugar, seu berço familiar, haja vista que Platão nasce em
meio abastado. Em segundo, como é rico, não precisa trabalhar, então possui
tempo para praticar a filosofia num período de escravização como mão de obra,
possuindo assim o almejo de uma sofocracia em sua cidade ideal. Por fim, Platão
bem que poderia ser homossexual e ter este desejo reprimido, no entanto há de
se estabelecer que não é este o caráter canônico de paradigma autoritária, pois
mesmo que a prática homoafetiva fosse interpretada com preconceito, Platão
teria esta oportunidade de usufruto quando se analisado o intuito pedagógico de
jovens.
Levando em conta que o conceito de complementaridade está presente na
obra de Freud, o qual destaca que a expressão do amor se resume a certa pulsão,
além de Lacan, que agrega o pensamento atribuindo a busca complementar como
narcísica, ou seja, buscamos aquilo que encontramos em nós (Pires, 2019), há de
se notar que a psicanálise ajuda na compreensão do recalque. Para a ciência
psicanalítica, o recalque seria este afastamento do consciente para o
inconsciente, reprimindo as ideias. Apesar disso, tais ideias não ficam
estáticas, mas buscam uma expressão por meio de perturbações e condutas no
indivíduo repressor.
Talvez, então, Platão fomentava o próprio recalque ao não compreender o
Eros como figura mítica contínua. De modo efetivo, o amor platônico é
compreendido de forma errônea pelo senso comum ao se estabelecer um amor ideal
que não pode ser alcançado, esquecendo-se do trâmite percorrido pelo amor que
abarca corpo, alma e espírito até encontrar a verdade. Logo, Platão objetiva a
sublime verdade, mas parece esquecer do mundo sensorial ao não enfrentar a
realidade proposta, focando-se apenas nas ideias.
De acordo com a análise antropológica de Freud, a limitação social é um
fator histórico o qual ganha nome na psicanálise de castração. Ora, em Totem e Tabu, o autor reflete sobre a
gênese do que seria a instituição de normas morais em uma sociedade.
Primeiramente, parte-se do mito fundador de um parricídio que fomenta a
estrutura organizacional.
Por partes, observa-se que as primeiras hordas possuíam um membro macho
que impunha força objetivando a dominação dos outros indivíduos. Como consequência,
este detinha o privilégio de tomar para si todas as fêmeas do grupo. No
entanto, tal ação poderia causar uma insurgência de outro macho ou um conjunto
do mesmo gênero o qual visava o poder supremo, sintetizando em um duelo e uma
possível morte do líder.
Assim, coloca-se no lugar do pai um símbolo sagrado (totem) que
substituiria o respeito e a ordem local. Ainda, há de se estabelecer um limite
de atos para que não haja um usurpador da imagem honrada, então atitudes que
visavam possuir a fêmea que bem entendesse foram proibidas, de tal forma que
indivíduos do mesmo totem não podiam ter relações sexuais ou conjugais.
Para Freud, o mito é de suma importância para se compreender a questão
da castração, haja vista que o estabelecimento do totem reflete a limitação do
desejo. Ou seja, a partir do momento em que apenas a exogamia é permitida,
barrando-se o desejo do incesto inicial, é observado que o objeto canônico
apenas existe para proibir um ensejo natural, mas que pode causar distúrbios na
coesão social de um grupo. Logo, o totem sintetiza o tabu, conceito empregado
para explicar a formação do receio de infringir a norma proibida. É notada,
neste momento, o desenrolar do que será conhecido como Direito penal.
Associando-se a Platão, o totem grego é a relação homossexual
desprendida de causalidade moralmente aceita. Entretanto, de acordo com o
desejo dos homens em explorar o amor por meio da trajetória do Eros, que é
essencialmente através da relação homoafetiva, cria-se a vontade natural de
extrapolar a esfera pedagógica recomendada, pois a natureza humana tem como
princípio norteador a bissexualidade inerente e, também, pela busca de seu
igual sexo, segundo o conto de Aristófanes em O Banquete.
Em resumo, nega-se as experiências bissexuais como fator essencial para
a vida, ou seja, a fobia homoafetiva influencia na postura de Platão, mas a
normatividade bissexual pode ser a principal representante de confusão psíquica
no discurso do filósofo. Ora, será que Platão temia ao saber que seu momento
íntimo com um homem teria certo findar e, seu posicionamento frente à
realidade, o assustava? Seria um caso paradoxal entre teoria do amor platônico
sem a compreensão platônica?
Fonte: Por Ari Marcelo Solon & João
Marcelo Moura Simões, em A Terra é Rednda
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