Quem foi Frei
Caneca, o padre revolucionário fuzilado há 200 anos
Condenado à morte
por uma comissão militar autorizada, com plenos poderes, pelo imperador d. Pedro 1º (1798-1834),
o padre, jornalista, escritor e militante político Joaquim da Silva Rabelo
(1779-1824), mais conhecido como Frei Caneca, foi fuzilado diante do Forte das
Cinco Pontas, em Recife, no dia 13 de
janeiro de 1825, há 200 anos.
Sua sentença havia
sido proferida em 20 de dezembro, pelo "assassino tribunal", como ele
mesmo classificou em um de seus últimos textos escritos na prisão.
Republicano e,
principalmente, federalista, o religioso foi um dos principais participantes
da Revolução
Pernambucana de 1817 e
um dos mentores da Confederação do Equador, movimento autonomista que pretendia
criar um Estado independente no Nordeste, deflagrado em
1824.
A condenação à
morte, assim como de outros 30 confederados, baseou-se nos crimes de sedição e
rebelião contra "as imperiais ordens de sua Majestade Imperial".
A comissão militar,
presidida por Francisco de Lima e Silva (1785-1853) era investida de poderes
absolutos para julgar aqueles tidos como rebeldes e conferir sentenças
sumárias.
"Na repressão,
o imperador suspendeu as garantias constitucionais. A comissão militar foi
encarregada de julgar de forma verbal e sumariíssima os cabeças do
levante", diz à BBC News Brasil o historiador George Cabral, professor na
Universidade Federal de Pernambuco.
"Fica muito
evidente que d. Pedro 1º tinha pressa eliminar esses líderes, em eliminar
radicalmente as lideranças revolucionárias. A comissão cumpriu apenas o
trâmite. Na prática, fica claro que já havia interesse determinado de eliminar
os líderes, como se a sentença já estivesse vindo pronta do Rio."
No momento da
aplicação da pena capital, que era prevista para ocorrer por enforcamento, Frei
Caneca foi despojado das vestes religiosas, em um simbolismo que indicava que
ele deixava de ser visto como um padre. Foi excomungado e instalado no
cadafalso.
Contudo, um a um,
três carrascos incumbidos de enforcá-lo desistiram da atroz empreitada. A
comissão militar, então, ordenou o fuzilamento.
Conforme explica à
BBC News Brasil o historiador Marcus de Carvalho, também professor na
Universidade Federal de Pernambuco, havia um entendimento na época de que
"não se matava padre", justamente porque eles eram vistos como
"enviados de Deus".
Frei Caneca acabou
sendo transformado em uma espécie de "Tiradentes do Nordeste", como define
à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na
Universidade Estadual Paulista.
"Sua obra
escrita, biografia e atuação política foram recuperadas posteriormente e
realçadas em momentos de afirmação e de mobilização política em Pernambuco e na
região Nordeste", diz ele.
"O 'mártir da
liberdade' foi idealizado e teve a sua imagem construída, e de forma
sistemática, a partir da segunda metade do século 19."
O historiador
ressalta que o julgamento de Frei Caneca foi "tipicamente de
exceção". "Comissões militares apreciaram as respectivas formas de
participação, envolvimento e dedicação individual na rebelião.
Ditaram procedimentos
e sentenças consideradas excessivas, dado a origem e a vinculação de inúmeros
rebeldes com as elites sociais e econômicas regionais", contextualiza.
"As dissenções
internas entre grupos e interesses específicos não desfrutaram de tolerância,
conciliação, nem piedade, por parte dos vencedores identificados com a
centralização e a autoridade política polarizada e sediada no Rio de
Janeiro."
Frei Caneca
incomodava o governo imperial não somente pela participação em movimentos
revolucionários. Ele também fazia sermões com ideais republicanas e, como
jornalista, escrevia artigos em que defendia um sistema de governo com maior
participação popular e autonomias regionais.
Os textos eram
publicados tanto em seu jornal, o Typhis Pernambucano, como em outros periódicos
com os quais ele se correspondia, ecoando inclusive na corte sediada no Rio de
Janeiro.
·
Pobre,
erudito e militante
De família humilde,
desde criança demonstrava uma inteligência acima da média. Era filho de um
tanoeiro português — daí a origem de seu apelido "caneca" — que vivia
em um povoado no entorno do Recife. Provavelmente ingressou na ordem dos
carmelitas para conseguir ter acesso aos estudos. Para isso, teria contado com
a influência de um primo de sua mãe, também religioso da mesma congregação.
Entrou para o
Convento de Nossa Senhor do Carmo em 1796, tornou-se frade no ano seguinte e
foi ordenado padre em 1801, com apenas 22 anos. Como religioso, assumiu o nome
de Joaquim do Amor Divino Caneca.
Sua erudição fez
com que ele se destacasse. Logo seria professor de retórica, geometria e
filosofia de seu convento.
"Caneca deve à
Igreja, à ordem carmelita, a oportunidade de vida de poder ter estudado e ter
tido acesso ao conhecimento que ele teve. Com exceção de uma curta viagem a
Alagoas, ele nunca havia saído de Pernambuco. Todo o conhecimento que ele
absorveu o fez de bibliotecas locais, sobretudo vinculadas à igreja",
pontua Cabral.
Tornou-se maçom e
passou a compartilhar com seus companheiros ideais liberais e republicanas,
influenciado pelos ecos da Revolução Francesa (de 1789) e pelo movimento que
tornou os Estados Unidos uma nação independente, de 1776. O modelo americano,
de uma republica federalista, parecia-lhe o ideal.
Em 1817, Frei
Caneca foi um dos participantes mais ativos da chamada Revolução Pernambucana,
que proclamou uma república e criou um governo independente na região. Segundo
o historiador Evaldo Cabral de Mello conta no seu livro A Outra
Independência: Pernambuco, 1817-1824, ele não foi um militante de primeira hora
— não há registros de sua atuação nos primeiros acontecimentos do movimento.
"Sua presença
só se detecta nas últimas semanas de existência do regime, ao acompanhar o
exército republicano que marchava para o sul da província a enfrentar as tropas
do conde dos Arcos, ocasião em que, segundo a acusação, teria exercido de
capitão de guerrilhas", escreve o historiador.
Caneca era visto
como conselheiro do grupo republicano, além de prestar assistência espiritual
aos combatentes.
Derrotado o
movimento, o religioso foi preso e enviado para Salvador. Segundo relatos da
época, quando acabou detido, estava descalço e vestia uma batina rasgada e
muito suja. Nos quatro anos em que cumpriu pena escreveu, no cárcere, uma
gramática da língua portuguesa.
·
Republicano
mesmo?
"Inegavelmente
a autonomia regional foi o principal valor político manifestado em seu
engajamento nos disputas e nos embates durante a conjuntura que resultou na
emancipação do Brasil. A sua execução não permitiu que houvesse expressão e
revisão das ideias que tinham animado a sua ação política", comenta
Martinez.
Há uma discussão se
Frei Caneca era essencialmente republicano ou não. O historiador George Cabral
explica que a raiz desta controvérsia está no fato de que em 8 de dezembro de
1822, três meses após d. Pedro 1º ter proclamado a independência, ele fez um
sermão saudando o imperador recém-coroado.
"No entanto,
ele já havia participado da Revolução de 1817, que foi republicana, ficado 8
anos preso", ressalta Cabral. "E depois dos problemas com a
assembleia constituinte de 1823 ele voltou a se posicionar contra a
monarquia."
Para Cabral, é
importante lembrar que naquele momento histórico "era conveniente e
sensato", nas publicações e manifestos, não empregar "abertamente a
palavra república", para não ser enquadrado em "crime de lesa
majestade". "Percebemos uma relutância, em geral, em fixar por
escrito o termo […], e isso pode justificar o Caneca não ter usado de forma
mais explícita em seus textos", analisa.
"O modelo de
nação que ele propõe é um modelo no qual o cidadão tem de ter uma participação
ativa, sendo conclamado a participar da vida política. É essencialmente um
regime republicano, com espaço para a participação pública", comenta o
historiador. "Então, mesmo que não se declarando abertamente republicano,
na sua base de pensamento ele defende, sim, a república […] sobretudo olhando o
modelo norte-americano."
"Ele tanto
dialogava bastante com as ideias republicanas quanto também com o desejo de
Pernambuco de ter uma independência", diz à BBC News Brasil o cientista
político Paulo Niccoli Ramirez, professor na Fundação Escola de Sociologia e
Política de São Paulo.
Carvalho afirma que
"não tem nenhuma dúvida" de que Frei Caneca fosse republicano.
"Mas eram republicanos que aceitariam uma monarquia constitucional",
ressalva. Por isso o estopim teria sido a dissolução da assembleia e a
imposição da constituição de d. Pedro.
Para entender isto
é preciso voltar ao fio da história.
·
Ecos
de Portugal
O movimento de 1817
havia sido esmagado pelas tropas governamentais, mas não as ideias republicanas
que pipocavam em diversas partes da então América portuguesa. Frei Caneca foi
solto em 1821, voltou ao Recife e logo encontrou espaço para retomar sua
militância política.
O contexto era
outro. A Revolta Liberal do Porto, de 1820, que defendia transformar Portugal
em uma monarquia constitucional ecoava do outro lado do Atlântico. Caneca e
seus companheiros viam espaço para que suas ideias finalmente pudessem ser
colocadas em prática.
Neste momento, o
caminho que parecia natural seria uma adesão às cortes de Lisboa, em um
xeque-mate emancipacionista frente à corte sediada no Rio. Era uma maneira de
seguir atrelado a Portugal, contudo driblando a regência do então príncipe d.
Pedro.
Pernambuco teve
então duas juntas governativas no período. Até que, em 1823, com o Brasil já
território proclamado independente e sob um governo imperial, foi criada a
Confederação do Equador.
Frei Caneca
demonstrava indignação com o fato de que "o Senado do Rio" ser
"a bússola do Brasil", servindo de "guia a todas as demais
províncias". Queria autonomia, buscando um modelo similar ao federalismo
norte-americano.
Em 2 de julho de
1824 declararam criada a Confederação do Equador, um projeto de nação autônoma
formada pelas então províncias de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte,
Piauí, Paraíba, Alagoas e Sergipe. Não deu certo. Além de Pernambuco, apenas
alguns povoados cearenses e paraibanos foram convencidos a integrar o plano.
Em seu livro, Mello
ressalta que em nenhum momento a Confederação do Equador cravou ser
republicana. Ele destaca que o movimento não pretendia "fazer uma
revolução", tampouco "destruir a monarquia constitucional".
Era, na verdade,
baseado na oposição ao projeto de d. Pedro 1º — principalmente depois que o
mesmo, em novembro de 1823, dissolveu a assembleia constituinte para impor sua
própria Carta Magna, conhecida como Constituição Outorgada.
·
Imprensa
A essa altura, as
ideias de Frei Caneca já eram conhecidas pela elite intelectual e política do
país. De dezembro de 1823 a agosto de 1824 ele editou um periódico, do qual foi
fundador, chamado Typhis Pernambucano. Era uma publicação engajada, que se
prestava a fazer crítica política e a defender a liberdade constitucional.
"Ele soube
utilizar de modo muito intenso a imprensa, publicando em muitos periódicos, não
só em seu jornal em Pernambuco mas também na corte, que reproduzia os textos
saídos aqui. Havia um intercâmbio grande nesse momento", diz Cabral.
"Por isso as
ideias de Caneca repercutiram em outras parte do Brasil. E foi exatamente essa
repercussão que despertou um furor, um ódio, uma antipatia muito grande do
imperador contra ele. Ficou evidente que ele era uma das pessoas mais visadas
para a repressão", acrescenta.
Seu conteúdo acabou
reeditado em 1972, quando a Assembleia Legislativa de Pernambuco publicou o
conjunto facsimilar sob o título de Obras Políticas e Literárias. Doze
anos mais tarde, o Senado Federal também reeditou em livro o conteúdo do
Typhis.
Além da imprensa,
Frei Caneca também tinha o púlpito da igreja a seu favor. "Ele teve uma
vida eclesial ativa. Fica evidenciado que ele andava de hábito, inclusive, o
tempo todo com seu hábito de carmelita. Somente no momento da luta ele deixou
de usar o hábito e passou a usar o que os documentos descrevem como jaqueta de
guerrilha", diz Cabral. "Mas essa vida eclesial também se reflete no
fato de que ele fez sermões, pregou nas igrejas, escreveu textos de cunho
religioso…"
"Mas ele mesmo
disse que sua atuação extrapolava os muros do convento", lembra Ramirez.
Cabral comenta que
Frei Caneca soube combinar "duas dimensões da vida", a de padre e a
de militante, como também amalgamou "teoria e prática
revolucionária". "Ele lutou com a pena e com o fuzil", afirma o
historiador.
·
Repressão
A repressão à
Confederação do Equador foi violenta porque o governo imperial temia que
fagulhas separatistas se tornassem praxe incendiassem todo o território. Com
dinheiro emprestado da Inglaterra, uma tropa de mercenários foi contratada para
acabar com o projeto autonomista.
O grupo inicial, de
1,2 mil combatentes, acabou ganhando reforço no caminho do Rio até o Nordeste,
chegando a contar com 3,5 mil homens. Houve cerco e ataques ao Recife. Segundo
historiadores, a repressão à Confederação do Equador foi a mais rigorosa dentre
todas as que buscaram conter motins e revoltas no período imperial brasileiro.
Frei Caneca e
outros 30 foram condenados à morte, mas nove conseguiram fugir. Mais de 100
outros foram presos. Não há consenso sobre quantos acabaram mortos nos
combates.
Para Martinez, a
própria rapidez com que Caneca foi julgado e executado deixou uma lacuna: o
próprio não teve a oportunidade de explicar o movimento do qual havia sido um
dos líderes.
"Ao contrário
do que aconteceu em 1817, a repressão aos líderes de 1824 foi sem prisão e sem
anistia. A condenação à morte e a execução sumária impediram que a experiência
política daquele movimento fosse avaliada e explicada pelos próprios
protagonistas", avalia.
Fonte: BBC News
Brasil
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