Rob Wallace: “Se deseja projetar o melhor sistema para
produzir patógenos mortais, escolheria o do agronegócio”
No final de 2025, líderes de todo o mundo voarão para Belém, no Pará,
para a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP30.
Será mais uma tentativa de avançar no enfrentamento às mudanças climáticas, no
momento em que o Acordo de Paris, pelo qual os países se comprometeram a
reduzir emissões de gases de efeito estufa para limitar a média de aquecimento
do planeta, completa dez anos. O epidemiologista evolucionário norte-americano
Rob Wallace, no entanto, não vê grandes chances de se chegar a um acordo a
partir da COP30, a despeito do grau de consenso em torno das mudanças
climáticas. Para ele, a captura dos Estados nacionais, das instâncias de
governança multilaterais e da ciência pelos interesses das classes capitalistas
é hoje tão grande que fica difícil esperar grandes mudanças em um sistema
econômico que serve aos interesses de alguns dos setores que mais emitem CO2.
LEIA A ENTREVISTA:
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Parece haver um consenso
científico em torno das mudanças climáticas, mas ainda sobrevive um discurso de
que não seriam as ações humanas as responsáveis por esse fenômeno. Qual a
origem desse argumento?
A tentativa de ‘turvar as águas’ é quase que inteiramente impulsionada por
dinheiro corporativo e pelos teóricos da conspiração. Seu objetivo é proteger
um sistema econômico que foi o principal responsável por esse dano. Existem nos
Estados Unidos muitas fundações de direita dedicadas a financiar cientistas, na
prática, marginalizados, mas que defendem que a mudança climática não está
acontecendo. Mas a grande maioria dos cientistas, de uma variedade de visões
políticas, entende que está. A conclusão é que é uma questão política, apesar
de haver pessoas que estão genuinamente preocupadas com isso nos governos de
todo o mundo. Mas há, infelizmente, um esforço mais no gesto do que numa ação
material. Não se trata de dizer que a mudança climática não está acontecendo. É
dizer ‘vamos fazer algo’ e não fazer nada. Há uma farsa política, que permite
que o extrativismo que está impulsionando a mudança climática continue. As
chamadas democracias não estão resolvendo o problema que admitem e entendem
como proveniente dos dados que os cientistas coletam. Esta é uma conversa
difícil, porque ninguém é a favor do autoritarismo. Também não vai resolver. E,
no entanto, a ideia atual da democracia como a defendemos não está produzindo
os resultados que esperaríamos. É a armadilha em que nos encontramos, em parte
porque mesmo as democracias têm um caráter de classe. Elas atendem às
necessidades de uma classe capitalista que capturou amplamente a governança
democrática sob uma agenda de permitir que vários setores, particularmente os
que estão impulsionando a mudança climática, continuem operando. Falo do
petróleo e gás, da agricultura industrial. E das indústrias que precisam de
petróleo e gás baratos para produzir suas commodities. Estamos
apoiando democracias por boas razões, mas estamos nos deparando com a
possibilidade de que esta versão atual não esteja cumprindo suas promessas. É
um duplo impasse. E ambos os lados, o autoritário e o chamado mais democrático,
são criaturas do Estado, que tem um caráter de classe. A classe capitalista é
capaz de exercer seu poder político de uma forma que nenhum grupo ou
organização política pode. O poder não é exercido apenas por meio de nossos
representantes políticos. Acho que as pessoas têm dificuldade com isso, porque
isso significaria que estamos vivendo em alguma forma de oligarquia.
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Estados Unidos e Brasil estão
entre os principais emissores de gases de efeito estufa no mundo. Existem
diferenças em relação à natureza das emissões realizadas por um e outro? Que
papel tem o grande capital e o agronegócio em específico para esse fenômeno em
cada país?
Se olhar para os mapas de CO2 produzido pelos países, você sabe que
diferentes partes de cada um desses países estão produzindo uma quantidade de
dióxido de carbono. O erro é supor que o país de origem é a fonte da
responsabilidade. Nem sempre. Há um trabalho do geógrafo Luke Bergman que
mapeou como os fluxos de investimento ao redor do mundo têm impacto na
quantidade de dióxido de carbono produzido. Um bom exemplo é que Índia e China
estão entre os maiores produtores de CO2 neste momento, mas isso é em parte porque
esses países são as fábricas do mundo. Portanto, a responsabilidade não é
apenas deles, mas também dos países que investem em suas fábricas,
impulsionando a produção que leva à emissão de CO2. Os Estados Unidos operaram
uma desindustrialização, deslocando toda a sua produção fabril para países nos
quais a mão de obra é mais barata. Portanto, o CO2 absoluto sai dos países que
estão se oferecendo como fábricas do mundo. Mas o investimento vem de países no
centro do capitalismo. Estados Unidos e Brasil são diferentes nesse sentido.
Mas o Brasil não é apenas um país produtor. Também há cada vez mais uma
economia de consumo aqui. E isso talvez fale sobre a decisão do Brasil de
seguir sua própria direção. É isso que os países do BRICS [acrônimo para
Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul] representam. Mas o Brasil também
já vem sendo considerado um sub-império em partes do mundo. Vêm à mente alguns
países da África, onde empresas brasileiras estão montando suas fábricas e
explorando mão de obra barata. Empresas brasileiras estão se tornando tão
grandes que estão se engajando nessa prática nos Estados Unidos. Temos fábricas
da JBS espalhadas pelo Centro-Oeste americano poluindo as águas e explorando
trabalhadores e imigrantes no país, da mesma forma que fizeram no Brasil. Essa
é a ironia sombria do tipo de multipolaridade que se desenvolveu. Os Estados
Unidos estão entrando, na minha opinião, em uma espécie de declínio. Estamos
saindo desse ciclo de acumulação iniciado após a Segunda Guerra. Quando seu
império começa a desmoronar, seus ricos basicamente transformam capital de
volta em dinheiro, e começam a procurar outros lugares para investir. A questão
é: os BRICS serão a próxima versão disso, ou será a China sozinha? Há quem diga
que isso é muito difícil, já que entramos em uma escala de acumulação que
excede a capacidade da Terra de suportá-la. A expectativa de que possamos
continuar com esse tipo de produção econômica está se chocando com a
biogeografia, com a biogeologia do planeta. Esta é a parte difícil, porque
temos uma classe política que se beneficiou tanto desse sistema em particular
que quer continuar com ele.
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Uma ideia central nos seus textos
é a de que a humanidade está “cultivando patógenos”, através do modelo de
produção pecuária capitalista. Pode desenvolver um pouco essa ideia e dar
exemplos?
Há uma perspectiva de que existem caminhos de transbordamento de
patógenos endêmicos de animais selvagens, que encontram um ponto de ruptura
para se espalhar para o gado e, posteriormente, para os humanos. Esse é, em
grande parte, o paradigma da Saúde Única [leia mais na edição 97 da Poli]. Mas
ele não percebe a integração profundamente econômica e política do ecossistema
no que a humanidade faz. Portanto, não percebe a natureza política das
ecologias. É necessário oferecer um contexto mais estrutural no qual se dão
esses eventos de transbordamento da vida selvagem para o gado e os humanos. O
agronegócio tem um sistema dedicado à produção de carne que se concentra no
animal primeiro como uma forma de mercadoria e de lucro e as consequências
ecológicas e epidemiológicas estão em segundo plano, em parte porque eles não
têm que pagar a conta do dano que causam. Eles externalizam o custo dos danos
da produção para o contribuinte, para a vida selvagem local, a comunidade, os
trabalhadores, estejam eles na fazenda ou nas fábricas de processamento. Se
você não está necessariamente considerando as consequências ecológicas ou
epidemiológicas, então você está criando um sistema que, na verdade, produz
esses patógenos. Em outras palavras, no curso da agricultura, da
industrialização da produção animal, você também está industrializando a
produção de patógenos. Em essência, se desejasse projetar o melhor sistema para
produzir os patógenos mais mortais, você escolheria o modelo do agronegócio.
Você tem milhares de animais concentrados juntos, todos geneticamente iguais,
criados para acentuar características morfométricas para cultivar mais carne o
mais rápido possível. E não há animais cruzando e produzindo novos animais lá.
Você apenas importa uma nova leva de pintinhos ou um novo bezerro.
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Por que isso é importante?
Digamos que haja um surto em sua fazenda, que elimina a maior parte do
seu rebanho, mas alguns desgarrados sobreviveram. Pode haver uma peculiaridade
em seu sistema imunológico. Eu poderia usar esses animais para gerar a próxima
geração. Mas se não há nenhuma reprodução na fazenda, você elimina a seleção
natural como um serviço ecossistêmico. Você expôs seu rebanho, retirando sua
imunidade natural contra patógenos circulantes. A outra coisa é que, ao ter
milhares de pássaros, gado ou porcos no mesmo local, você está selecionando os
patógenos mais mortais possíveis. Porque se você é um patógeno virulento e mata
seu hospedeiro antes de entrar no próximo, foi cortada sua cadeia de
transmissão. Você precisa ter o próximo hospedeiro pronto para que possa manter
essa cadeia. Se você tem uma agropecuária diversificada, com muita
agrobiodiversidade em uma paisagem maior, a frequência de contato é muito
limitada e os animais são muito diferentes uns dos outros. Portanto, há a
diversidade imunológica e a frequência de contato é mais lenta. Então, como um
vírus, você precisa evoluir apenas o suficiente para um nível de virulência que
corresponda a um intervalo de tempo mais lento para entrar no próximo
hospedeiro. Mas se você embalar 250 mil galinhas no mesmo celeiro, os
hospedeiros estão todos ali. É tudo comida para a gripe. Portanto, as cepas que
se saem melhor são as que ‘queimam’ aquele celeiro o mais rápido possível. Isso
seleciona os patógenos mais virulentos. Isso foi provado pelo trabalho do
colega Marius Gilbert, da Bélgica, e seu grupo. Eles analisaram a literatura e
mostraram que os eventos de seleção que resultaram na transição da gripe
aviária de baixa patogenicidade para alta patogenicidade ocorreram quase todos
em fazendas com grande número de aves. Há um trabalho considerável que indica
que esse processo é intrínseco ao agronegócio. Você está permitindo a seleção
de um patógeno mortal que pode entrar em trabalhadores locais, transbordar para
a comunidade local ou seguir seu caminho para a capital para sair de avião. E
não é só o Brasil nem na China, você tem esse processo acontecendo na África
Subsaariana também. O vírus do Ebola é um ótimo exemplo. Ele era encontrado em
morcegos que estavam isolados, mas quando você pega uma floresta complexa e a
simplifica transformando-a em terras agrícolas, muitas das criaturas da
floresta morrem, mas algumas se adaptam. E os morcegos têm uma plasticidade
comportamental que lhes permite viver nas fazendas, o que aumenta a interface
entre eles, que são reservatórios de doenças, e os trabalhadores. E assim os
eventos de transbordamento aumentam, e aumenta a chance de que um vírus
descubra como ir de humano para humano, o que explica o Ebola. Até os anos
1970, ele foi um vírus que matava uma ou duas aldeias de vez em quando, com 90%
de taxa de letalidade. Algo terrível, mas o surto basicamente se exauria,
porque você não tinha corrente de transmissão suficiente. Não foi o que aconteceu
em 2013, 2015. De repente, a coisa se espalha na África Ocidental e passa por
países como Guiné e Libéria, e alguns casos acabam indo para a Europa e os
Estados Unidos, de avião. Temos um surto com 15 mil mortes de uma forma que não
havia antes. As mudanças na paisagem, em grande parte impulsionadas pelo
agronegócio, desconectam ecologias anteriores que marginalizam doenças mortais
e as reconectam de uma forma que permite que alguns desses microrganismos sejam
capazes de varrer territórios maiores, com a possibilidade de emergirem para
matar um bilhão de pessoas na Terra. É o que mantém os epidemiologistas
acordados à noite.
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Do ponto de vista político e
diplomático, Brasil e estados unidos parecem viver cenários opostos na área
ambiental. Como vê o cenário atual dos dois países na discussão sobre mudanças
climáticas e o que espera de ambos para o futuro próximo?
Com o declínio do império dos Estados Unidos, vem uma espécie de caos
sistêmico. A imprevisibilidade do país é agora a parte mais previsível dele. O
Brasil também tem as suas contradições. Mas eu fiquei muito impressionado com o
palestrante do Ministério da Saúde na conferência da Abrasco [durante o 12º
Congresso Brasileiro de Epidemiologia, realizado no final de novembro, no Rio
de Janeiro], que deu uma aula sobre o que eles estavam fazendo em termos de um
programa de Saúde Pública. Me diz que essas pessoas sabem o que estão fazendo.
Você pode não concordar com tudo, mas é extraordinário ter uma compreensão
sobre a natureza do que é governança, do papel que a Saúde Pública desempenha e
de como buscar isso da melhor maneira possível, sob os limites do cenário
brasileiro e internacional. Os Estados Unidos são outra coisa. Todos os
candidatos em potencial para os vários ministérios são incompetentes e
assustadores. Seu negócio não é administrar essas agências ou ministérios, mas
destruí-los. Temos um país que tem a intenção de reverter até mesmo suas noções
meia-boca de governança. É um momento terrível e perigoso. Eu diria que no
primeiro governo [Donald] Trump, até mesmo em sua própria administração, houve
um esforço para, pelo menos, reduzir o dano que os Estados Unidos causariam no
cenário mundial, na tentativa de isolá-lo do pior de seus instintos. Isso
não vai acontecer no segundo governo. Ele se cercou de gente que fará o que ele
manda.
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Em seus artigos, o financiamento
privado da pesquisa científica nos Estados Unidos desponta como um fator de
conflito de interesses. Quais são os limites da participação do setor privado
no financiamento da pesquisa científica?
A academia dos Estados Unidos se deslocou em uma direção em que não
solicitar financiamento privado seria considerado o conflito. Espera-se que
você traga dólares externos e, se não o fizer, talvez sua titularidade não seja
aprovada. Costumava ser uma forma de vergonha sutil você trazer dinheiro de
fora para pesquisa, mas agora é o contrário. Há um entendimento de que, para
atender a sua universidade, você não deve permitir que sua curiosidade pessoal
atrapalhe a vinda de dólares. Isso se deu, em parte, porque o orçamento estatal
caiu muito, no nível federal e estadual. Com isso houve uma necessidade de
selecionar a ciência que traz dinheiro privado. Na Costa Leste é a indústria
farmacêutica, no Centro-Oeste é a agrícola e por aí vai. Em outras palavras, o
sentido moral do seu trabalho está no dinheiro que você conseguiu trazer para
sua instituição. Várias cátedras são batizadas com nomes de empresas do
agronegócio. Alas inteiras de campi têm nomes como ‘Ala
Cargill’, ‘Ala Monsanto’. Você quase deseja que seus professores tenham em seus
jalecos os vários adesivos que os pilotos de carros têm, com todos seus
patrocinadores. Há um grande orgulho nisso. Não há o tipo de preocupação que
sua pergunta implica. E não é que essas pessoas não sejam brilhantes e
cientificamente apropriadas em termos filosóficos. Mas nada disso diz das
perguntas que você escolhe fazer, que são em grande parte impulsionadas pela
indústria. Isso tem um impacto profundo no tipo de produção que é feita. É aqui
que você tem o complexo universitário-industrial impactando o bem-estar dos
agricultores e em última análise, o surgimento de patógenos. Não se trata de
manipulação de dados. A distorção está na pergunta que você escolhe fazer e o
que é considerado importante. Qual é o melhor agrotóxico para colocar nesse
milho? A pergunta é capciosa: presume que vamos usar agrotóxico e apenas
escolher qual é o melhor. Você excluiu a possibilidade de que possa haver
maneiras de fazer as coisas de forma agroecológica, sem precisar usar todos os
produtos derivados de petróleo e gás, como fertilizantes e agrotóxicos.
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Há uma dificuldade dos estudos
epidemiológicos em fazer uma relação causal entre o consumo de produtos com
resíduos de agrotóxicos e a prevalência de doenças entre a população. O princípio
da precaução adotado na rio 92 estabelece que quando há risco potencial de
prejuízo à saúde e ao meio ambiente, mesmo sem consenso científico, a medida em
questão não deve ser adotada. Mas desde então interesses econômicos fizeram com
que ele fosse abandonado. Esse é um fenômeno global?
As consequências do abandono do princípio da precaução em todo o mundo
têm sido um fenômeno global. E no que diz respeito aos agrotóxicos, o
agronegócio vê a natureza como um competidor econômico, que deve ser derrotado.
Não é só ‘vamos usar a natureza como um recurso’. Porque a natureza, se
permitida, pode fornecer serviços ecossistêmicos gratuitamente. Você pode obter
um solo saudável, pode fazer com que morcegos e pássaros se alimentem de
pragas. Ela fornece o sol, a água se for bem cuidada. Mas se você é uma
empresa, você quer que seu agricultor não seja capaz de ter um solo rico para o
qual ele não precisa de fertilizantes. Por que ter morcegos e pássaros se
alimentando de pragas ou ter culturas-armadilha que podem atrair essas pragas
para longe de sua safra comercial, se você pode usar um agrotóxico? Ver a
natureza como concorrente possibilita que você possa forçar o agricultor a
pagar pelo que antes eram serviços ecossistêmicos gratuitos. Isso é chamado de
mercadoria fictícia. Você transformou algo que antes estava disponível
gratuitamente em uma mercadoria. É a mesma coisa com a água. De repente, você
está comprando água engarrafada porque não pode mais beber água limpa. Em que
ponto vamos partir para o ar engarrafado? Vem à mente uma frase do [historiador
norte-americano] Howard Bruce Franklin, de que é mais fácil imaginar o fim do
mundo do que o fim do capitalismo.
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Você fala da necessidade de
responsabilização do grande capital que controla a produção pecuária intensiva,
que tem se mostrado foco para o surgimento de vírus cada vez mais contagiosos e
letais, ao mesmo tempo em que investe bilhões no fomento à produção científica
sobre essas doenças. Em que medida essa chave de leitura pode ser empregada
para falar da covid-19?
Nosso grupo tem analisado várias doenças à medida que surgiram. Comecei
a analisar o H5N1, na virada do século, mas depois houve o Ebola, algumas
outras gripes surgiram, teve a Zika nesse meio, SARS-1 por volta de 2002 e MERS
em 2012. Ao acompanhar esses surtos e tentar mapeá-los e relacioná-los com a
integração do agronegócio em paisagens florestais, começamos a desenvolver um
modelo geral sobre como esses diferentes tipos de patógenos estão relacionados
ao uso da terra. Nós o vemos como um circuito de produção de uma maneira mais
geral, que vai da borda da floresta, a área rural geral e periurbana, até a
cidade. Alguns patógenos estão surgindo na borda da floresta, como o Ebola, e
acho que o SARS-2, transbordando dos morcegos. Alguns estão mais perto da
cidade, onde muitas fábricas de processamento de aves são frequentemente
organizadas em torno de áreas urbanas para transporte rápido. Mas eles estão
todos envolvidos nesse tipo de circuito. Podem entrar nele em virtude da
migração rural-urbana que acontece entre os humanos e, posteriormente, acabar
na cidade antes de entrar em um avião. Esse é o nosso modelo geral do que
parece estar acontecendo em relação ao surgimento repentino de diferentes
vírus, ameaçando ser proto-pandemias. Agora, eu tenho uma visão muito agnóstica
sobre as origens do covid-19. Há todos os tipos de teorias sendo discutidas
(leia mais na pág. 10), e acho que a resolução disso pode não acontecer em dez
anos, e pode-se não entender o ponto principal. Suponhamos que tenha sido um
vazamento de um laboratório: isso não diz nada sobre como o desmatamento está
selecionando os patógenos para se espalharem para os humanos. O objetivo dos
laboratórios, em primeiro lugar, era lidar exatamente com esse problema: mais
doenças emergentes e reemergentes. Temos uma terrível ironia, então: se
você construir milhares e milhares de laboratórios BSL-3 e 4 [sigla para
Laboratório de Biossegurança 3 e 4, os níveis mais altos, que envolvem
microrganismos que oferecem alto risco para a vida humana], você acaba
transformando um evento raro, que seria um vazamento de laboratório, em algo
praticamente inevitável. E alguns países são melhores em sua segurança de
laboratório do que outros. A China, francamente, foi péssima. Houve vazamentos
em Pequim e outros lugares. Também há a possibilidade de que o vírus tenha se
espalhado a partir do mercado de alimentos em Wuhan. O problema com essas duas
coisas é que estão pensando nisso como um detetive: concentram-se dentro dessa
faixa espacial e temporal que diz quando o evento de transbordamento aconteceu,
sem pensar nas transições de longo prazo que levam aos eventos de
transbordamento de morcegos, que são o reservatório claro para os coronavírus,
para o gado e para a população humana em geral. Esse evento de transbordamento
está acontecendo de novo e de novo e de novo. Então, se não fosse no mercado,
poderia ter acontecido ao longo do caminho do circuito de produção de que
estávamos falando. Acredito que quase a totalidade dos novos patógenos
emergentes em todo o mundo, sejam vírus Ebola, coronavírus ou gripes,
acontecerão ao longo dessa rota.
·
Na América Latina temos a chamada
epidemiologia crítica, que busca transcender os limites das análises puramente
biomédicas e quantitativas tradicionais e entende que a saúde é socialmente
determinada. Qual a importância dessa abordagem para o debate das mudanças
climáticas e em que medida há possibilidade de um diálogo dela com as suas
críticas a partir dos Estados Unidos?
Eu tiro o chapéu para o Brasil e a América Latina, porque isso não faz
parte do currículo da maioria das escolas de saúde pública norte-americanas. E
é interessante que seja mantido no currículo, porque se o Brasil quiser se ver
como espelho dos Estados Unidos e da Europa, vai acabar destruindo as coisas
que tornam a ciência brasileira maravilhosa. A longa tradição que a América
Latina tem na Medicina Social e na epidemiologia crítica são coisas lindas, que
devem servir de modelo para outros países onde esse tipo de perspectiva é
amplamente marginalizada. Se eu me tornei algo como um epidemiologista crítico
nos Estados Unidos, isso surgiu de uma grande luta. E não fiz isso sozinho.
Surgiu de um entendimento de que os modelos que a maioria das escolas
americanas segue eram destrutivos para nossa compreensão da natureza das
doenças emergentes. E eu tenho sido amplamente marginalizado por isso, mas acho
uma maravilha que lugares como o Brasil continuem a promover esse tipo de
manancial de pensamento e análise, porque isso servirá ao país nas próximas
décadas, por causa dos perigos à nossa porta, desde as mudanças climáticas até
as novas pandemias e os danos dos agrotóxicos. Analisar os efeitos dos
agrotóxicos está no centro de muito do que aprendi aqui sobre a objeção de
pesquisadores e instituições de pesquisa brasileiras à forma como o agronegócio
é tocado. Uma escola americana simplesmente seguiria a posição do agronegócio.
E isso seria prejudicial. Você precisa ter uma oposição que esteja nas ruas no
sentido político, que esteja nos tribunais, mas também de uma oposição que
esteja nas escolas de saúde pública, que entenda que não é necessariamente da
maneira como as empresas nos dizem que é. Você precisa de boa regulamentação
governamental, de uma voz acadêmica e uma voz pública fortes que tornem suas
necessidades conhecidas e sua independência sentida. Os americanos sempre falam
sobre liberdade. Essa sim é a verdadeira liberdade. A independência de espírito
e de ação para poder dizer que o que acontece na sociedade não é
necessariamente o caminho a seguir, e gostaríamos que fosse em outra direção.
Mas mais ciência e mais dados nem sempre são suficientes. Você precisa de
organização política. E os cientistas precisam fazer parte disso. Só o trabalho
no laboratório pode não ser suficiente. Como cientista você também tem a
responsabilidade de participar da transformação de seus resultados em
legislação e em verdadeiras mudanças. É preciso entender que no cerne da
ciência natural que fazemos estão questões profundamente políticas que devem
ser abordadas de mãos dadas com o trabalho que fazemos no microscópio ou no
campo. Caso contrário, acabamos como os cientistas do clima, que têm aprendido
desde os anos 1980 que apenas apresentar dados não é suficiente.
Fonte: Por André Antunes – EPSJV/Fiocruz
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