quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Avanço da oncologia de precisão é impulsionado por sequenciamento de nova geração

A genômica tem liderado uma série de revoluções na medicina. Nas últimas décadas, as tecnologias dessa área ganharam escala e avançaram ainda mais com o desenvolvimento e aplicação em várias frentes do Sequenciamento de Nova Geração (NGS, na sigla em inglês), metodologia de análise genética que permite testes abrangentes em pouco tempo. Um dos campos mais beneficiados por este avanço é a oncologia de precisão – e isso tem o potencial de transformar o curso da doença para milhões de pacientes, uma vez que impacta o rastreio e otimiza o tratamento.

Segundo estimativas do Instituto Nacional do Câncer (Inca), um em cada cinco brasileiros terão câncer no decorrer da sua vida. No mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a doença é responsável pela morte de uma em cada seis pessoas. Para diminuir o impacto das neoplasias na população, a OMS recomenda a ampliação do acesso a exames de rastreio e diagnóstico precoce, assim como a tratamentos mais adequados de acordo com o desenvolvimento e estadiamento do tumor. O avanço da tecnologia e da medicina de precisão permitem justamente atuar no mapeamento de riscos, na prevenção e na eficiência das terapias.

“A possibilidade de entender a doença oncológica como uma doença do genoma e, portanto, molecular, transformou totalmente a oncologia”, explica Fernando Augusto Soares, diretor Médico da Anatomia Patológica da Rede D’Or e ex-Presidente da Sociedade Brasileira de Patologia e da Sociedade Latino-americana de Patologia sobre Oncologia de Precisão.

Para ele, uma das principais mudanças de paradigma está no fato de que, além do diagnóstico mais preciso, é possível obter uma melhor definição molecular e escolha do alvo a ser tratado. “A evolução do conhecimento levou ao avanço da tecnologia e permitiu o desenvolvimento de tratamentos-alvos”, completa.

·        Identificação de biomarcadores

Um dos marcos principais na oncologia de precisão foi a descoberta de biomarcadores. Esses elementos consistem em alterações genéticas encontradas na estrutura molecular dos tumores. Eles são usados para um diagnóstico mais preciso e também possibilitam a utilização de terapias-alvo para tratamentos mais personalizados.

O crescimento exponencial do conhecimento sobre diferentes biomarcadores foi um divisor de águas para a área, como aponta a doutora em oncologia Maria Amorim, gerente de desenvolvimento de mercado na Thermo Fisher Scientific: “O câncer de pulmão, por exemplo, é o que mais tem biomarcadores mapeados até hoje, aproximadamente metade dos pacientes com tumores do tipo células não pequenas tem um biomarcador identificável e acionável. E com base nisso, foram desenvolvidas as terapias-alvo, que proporcionam um desfecho muito melhor, uma sobrevida maior para os pacientes.”

Mas antes mesmo do câncer de pulmão, os tumores hematológicos foram os primeiros a serem estudados com base em biomarcadores, lembra Israel Bendit, professor livre docente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e head da área de biologia molecular em onco-hematologia da Dasa Genômica. Essa história começa ainda na década de 1960 com a descoberta de uma alteração cromossômica relacionada a leucemia mieloide crônica (LMC) em pacientes com a doença. No entanto, foi apenas no início dos anos 2000 que as pesquisas passaram a se transformar em soluções para os pacientes. “Começou-se a falar em medicina de precisão em 2010, com o desenvolvimento de uma droga-alvo para LMC”, aponta.

Principalmente a partir de 2015, houve uma ampliação de conhecimentos sobre alterações genômicas para determinadas doenças, com o lançamento de um programa do governo norte-americano de medicina de precisão. As descobertas na área cresceram bastante desde então. “Hoje, a mutação para um gene específico é capaz de orientar o tratamento de um paciente, na escolha de uma droga mais relevante para ele”, pontua o Bendit.

·        Oncologia de precisão possibilita terapias personalizadas

Diante dos avanços no sequenciamento genético de nova geração e nas técnicas de análises moleculares, com o passar dos anos o tratamento tradicional passou a dar espaço para as terapias-alvo. Assim, medicamentos desenvolvidos com base na descoberta dos biomarcadores permitiram sair da era do one-size fits all (solução única para todos, em tradução livre) para a era dos tratamentos personalizados. Ou seja, agora os pacientes são tratados com base nos biomarcadores encontrados nos seus tumores, de maneira direcionada.

Essa precisão mudou radicalmente a experiência de tratamento do câncer, como explica Bendit: “Antigamente, nós tratávamos os pacientes de LMC sem precisão e eles vivam cerca de seis anos a mais. Hoje, com os tratamentos de precisão, eles já têm uma vida comparável a indivíduos saudáveis da mesma faixa etária e sexo. Ou seja, se um indivíduo sem a doença vive até os 80, 85 anos, um paciente com LMC também. Foi uma verdadeira transformação”.

As duas principais categorias de terapias-alvo utilizadas no combate ao câncer atualmente são os anticorpos monoclonais e fármacos de pequenas moléculas. O primeiro grupo imita anticorpos naturais produzidos pelo organismo. Replicadas em laboratório, eles reconhecem e se ligam a proteínas específicas nas células cancerígenas, atuando para matá-las ou interromper seu crescimento. Essa terapêutica, no entanto, não consegue chegar a um nível intracelular e molecular. É assim que surge o segundo grupo, fámacos que também imitam componentes biológicos, penetrando a membrana celular para atingir alvos moleculares. A mais recente tendência de terapias avançadas são as baseadas em terapias celulares, como o CAR-T-cell, que modifica geneticamente as células de defesa do próprio paciente para o tratamento de uma doença específica.

Além do uso para o diagnóstico, atualmente já se sabe que os chamados biomarcadores prognósticos também contribuem para a compreensão sobre a provável progressão da doença, as chances de recorrência e os resultados esperados, como destacou um artigo de revisão publicado este ano na revista científica Cell.

·        O papel dos testes genéticos

Todo esse avanço tem se apoiado justamente nas tecnologias de sequenciamento genético. Mas foi um caminho longo até chegar nos parâmetros atuais. O Projeto Genoma Humano, finalizado em 2003, foi o primeiro a sequenciar um genoma humano completo, mas levou mais de uma década e custou US$ 3 bilhões. Hoje, já é possível realizar esse mesmo procedimento por menos de mil dólares e em questão de dias. Mesmo assim, ainda é preciso chegar a um consenso sobre o responsável por arcar com essas despesas.

No Brasil, até o momento, algumas aplicações de testes genéticos que utilizam a técnica de NGS não são obrigatoriamente cobertas pelas operadoras de saúde, de acordo com as diretrizes da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Pacientes com neoplasias mieloides, por exemplo, podem ter de desembolsar mais de R$ 3 mil para realizar o exame. No SUS, o cenário também é de limitações, apesar de já haver iniciativas como um projeto de lei que tramita no Congresso com o objetivo de disponibilizar testes genéticos para mulheres diagnosticadas com câncer de mama.

A ciência tem pesquisado o impacto que o uso da técnica NGS pode trazer ao sistema de saúde ao tornar o tratamento do paciente mais eficiente. Um estudo de custo-efetividade conduzido no sistema público de saúde canadense revelou que o uso da técnica NGS, em comparação a testes de gene único, reduziu o intervalo entre diagnóstico e início do tratamento e identificou um número maior de pacientes com biomarcadores que são alvo de terapias disponíveis. Isso impactou na redução do custo estimado por paciente associado ao atraso do tratamento.

Avançar no acesso a essa tecnologia, portanto, pode se relacionar a uma perspectiva de sustentabilidade a longo prazo da saúde, segundo Soares, da Rede D’Or: “O sistema de saúde resiste a esse tipo de estratégia porque ainda não pensa a longo prazo, pensa a curtíssimo prazo. No entanto, se estamos falando sobre prevenção, sobre promover acesso, a discussão deve ser em torno da questão do financiamento.”

Essa perspectiva também é abordada por Amorim, da Thermo Fisher Scientific, que defende o fomento da discussão sobre alternativas de financiamento para ampliar o alcance dos testes genéticos. “Porque o próprio tratamento está atrelado ao resultado desse exame”, ressalta.

·        Presença no país e capacitação de profissionais

O fortalecimento e a disponibilidade de tecnologia no país é um próximo passo importante não apenas para a ampliação do acesso, mas também para acelerar o processo do início de tratamento dos pacientes diagnosticados com câncer. Atualmente, o tempo médio de resposta para o perfil de biomarcadores tumorais baseados em NGS é de aproximadamente 25 dias. Esses dados são baseados nos Estados Unidos, mas Amorim ressalta que no Brasil, a situação é ainda mais delicada.

“Estudos mostram que de 20% a 50% dos pacientes recebem o tratamento de primeira linha sem ter recebido o perfil dos biomarcadores, com consequências negativas para o desfecho terapêutico. Isso é um reflexo da demora do teste genético, e sabemos que aqui no Brasil o tempo de espera é muito maior, porque muitos médicos ainda enviam os testes para serem realizados fora do país. Esse atraso logístico impacta o tratamento do paciente”, explica Amorim, que ressalta que há muitos laboratórios no país capacitados para realizar os exames localmente, com menor tempo para o resultado.

Ao mesmo tempo, é importante mobilizar entidades médicas, instituições de ensino e instituições de saúde para promover a capacitação dos profissionais para lidar com a análise e interpretação dos resultados de testes dessa natureza. Soares chama a atenção para o fato de que, hoje, uma parcela relevante dos médicos se formou antes da chamada era genômica e precisa conhecer esse campo para fazer melhor uso de suas ferramentas.

E é um desafio que tende a crescer se considerar que os avanços da ciência seguem a todo o vapor, como é o caso da biópsia líquida. Essa técnica pode ainda atuar na detecção de uma provável recidiva do tumor e está sendo cada vez mais usada no acompanhamento de pacientes. “Ela detecta a alteração genética na circulação do paciente sem que ele tenha o tumor”, explica Bendit, possibilitando intervenções mais precoces do que as baseadas nos exames tradicionais.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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