Avanço da oncologia de precisão é
impulsionado por sequenciamento de nova geração
A genômica tem liderado uma
série de revoluções na medicina. Nas últimas décadas, as tecnologias dessa área
ganharam escala e avançaram ainda mais com o desenvolvimento e aplicação em
várias frentes do Sequenciamento de Nova Geração (NGS, na sigla em inglês),
metodologia de análise genética que permite testes abrangentes em pouco tempo.
Um dos campos mais beneficiados por este avanço é a oncologia de precisão – e
isso tem o potencial de transformar o curso da doença para milhões de
pacientes, uma vez que impacta o rastreio e otimiza o tratamento.
Segundo estimativas do Instituto Nacional do Câncer (Inca), um em
cada cinco brasileiros terão câncer no decorrer da sua vida. No mundo, de
acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a doença é
responsável pela morte de uma em cada seis pessoas. Para diminuir o impacto das
neoplasias na população, a OMS recomenda a ampliação do acesso a exames de
rastreio e diagnóstico precoce, assim como a tratamentos mais adequados de
acordo com o desenvolvimento e estadiamento do tumor. O avanço da tecnologia e
da medicina de precisão permitem justamente atuar no mapeamento de riscos, na
prevenção e na eficiência das terapias.
“A possibilidade de entender
a doença oncológica como uma doença do genoma e, portanto, molecular,
transformou totalmente a oncologia”, explica Fernando Augusto Soares, diretor
Médico da Anatomia Patológica da Rede D’Or e ex-Presidente da Sociedade
Brasileira de Patologia e da Sociedade Latino-americana de Patologia sobre
Oncologia de Precisão.
Para ele, uma das principais
mudanças de paradigma está no fato de que, além do diagnóstico mais preciso, é
possível obter uma melhor definição molecular e escolha do alvo a ser tratado.
“A evolução do conhecimento levou ao avanço da tecnologia e permitiu o
desenvolvimento de tratamentos-alvos”, completa.
·
Identificação de
biomarcadores
Um dos marcos principais na
oncologia de precisão foi a descoberta de biomarcadores. Esses elementos
consistem em alterações genéticas encontradas na estrutura molecular dos
tumores. Eles são usados para um diagnóstico mais preciso e também possibilitam
a utilização de terapias-alvo para tratamentos mais personalizados.
O crescimento exponencial do
conhecimento sobre diferentes biomarcadores foi um divisor de águas para a
área, como aponta a doutora em oncologia Maria Amorim, gerente de
desenvolvimento de mercado na Thermo Fisher Scientific: “O câncer de pulmão,
por exemplo, é o que mais tem biomarcadores mapeados até hoje, aproximadamente
metade dos pacientes com tumores do tipo células não pequenas tem um
biomarcador identificável e acionável. E com base nisso, foram desenvolvidas as
terapias-alvo, que proporcionam um desfecho muito melhor, uma sobrevida maior
para os pacientes.”
Mas antes mesmo do câncer de
pulmão, os tumores hematológicos foram os primeiros a serem estudados com base
em biomarcadores, lembra Israel Bendit, professor livre docente do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e head da área de biologia molecular
em onco-hematologia da Dasa Genômica. Essa história começa ainda na década de
1960 com a descoberta de uma alteração cromossômica relacionada a leucemia
mieloide crônica (LMC) em pacientes com a doença. No entanto, foi apenas no
início dos anos 2000 que as pesquisas passaram a se transformar em soluções
para os pacientes. “Começou-se a falar em medicina de precisão em 2010, com o
desenvolvimento de uma droga-alvo para LMC”, aponta.
Principalmente a partir de
2015, houve uma ampliação de conhecimentos sobre alterações genômicas para
determinadas doenças, com o lançamento de um programa do governo norte-americano
de medicina de precisão. As descobertas na área cresceram bastante desde então.
“Hoje, a mutação para um gene específico é capaz de orientar o tratamento de um
paciente, na escolha de uma droga mais relevante para ele”, pontua o Bendit.
·
Oncologia de precisão
possibilita terapias personalizadas
Diante dos avanços no
sequenciamento genético de nova geração e nas técnicas de análises moleculares,
com o passar dos anos o tratamento tradicional passou a dar espaço para as
terapias-alvo. Assim, medicamentos desenvolvidos com base na descoberta dos
biomarcadores permitiram sair da era do one-size
fits all (solução única para todos, em tradução livre) para a
era dos tratamentos personalizados. Ou seja, agora os pacientes são tratados
com base nos biomarcadores encontrados nos seus tumores, de maneira
direcionada.
Essa precisão mudou
radicalmente a experiência de tratamento do câncer, como explica Bendit:
“Antigamente, nós tratávamos os pacientes de LMC sem precisão e eles vivam
cerca de seis anos a mais. Hoje, com os tratamentos de precisão, eles já têm
uma vida comparável a indivíduos saudáveis da mesma faixa etária e sexo. Ou
seja, se um indivíduo sem a doença vive até os 80, 85 anos, um paciente com LMC
também. Foi uma verdadeira transformação”.
As duas principais
categorias de terapias-alvo utilizadas no combate ao câncer atualmente são
os anticorpos monoclonais e fármacos de pequenas moléculas. O primeiro
grupo imita anticorpos naturais produzidos pelo organismo. Replicadas em
laboratório, eles reconhecem e se ligam a proteínas específicas nas células
cancerígenas, atuando para matá-las ou interromper seu crescimento. Essa
terapêutica, no entanto, não consegue chegar a um nível intracelular e
molecular. É assim que surge o segundo grupo, fámacos que também imitam
componentes biológicos, penetrando a membrana celular para atingir alvos
moleculares. A mais recente tendência de terapias avançadas são as baseadas em
terapias celulares, como o CAR-T-cell, que modifica geneticamente as células de
defesa do próprio paciente para o tratamento de uma doença específica.
Além do uso para o
diagnóstico, atualmente já se sabe que os chamados biomarcadores prognósticos
também contribuem para a compreensão sobre a provável progressão da doença, as
chances de recorrência e os resultados esperados, como destacou um artigo de revisão publicado este ano na
revista científica Cell.
·
O papel dos testes genéticos
Todo esse avanço tem se
apoiado justamente nas tecnologias de sequenciamento genético. Mas foi um
caminho longo até chegar nos parâmetros atuais. O Projeto Genoma Humano,
finalizado em 2003, foi o primeiro a sequenciar um genoma humano completo, mas
levou mais de uma década e custou US$ 3 bilhões. Hoje, já é possível realizar
esse mesmo procedimento por menos de mil dólares e em questão de dias. Mesmo
assim, ainda é preciso chegar a um consenso sobre o responsável por arcar com
essas despesas.
No Brasil, até o momento,
algumas aplicações de testes genéticos que utilizam a técnica de NGS não são
obrigatoriamente cobertas pelas operadoras de saúde, de acordo com as diretrizes da Agência Nacional de Saúde Suplementar
(ANS). Pacientes com neoplasias mieloides, por exemplo, podem ter de
desembolsar mais de R$ 3 mil para realizar o exame. No SUS, o cenário também é
de limitações, apesar de já haver iniciativas como um projeto de lei que tramita no Congresso com o objetivo de
disponibilizar testes genéticos para mulheres diagnosticadas com câncer de
mama.
A ciência tem pesquisado o
impacto que o uso da técnica NGS pode trazer ao sistema de saúde ao tornar o
tratamento do paciente mais eficiente. Um estudo de
custo-efetividade conduzido no sistema público de saúde
canadense revelou que o uso da técnica NGS, em comparação a testes de gene
único, reduziu o intervalo entre diagnóstico e início do tratamento e
identificou um número maior de pacientes com biomarcadores que são alvo de
terapias disponíveis. Isso impactou na redução do custo estimado por paciente
associado ao atraso do tratamento.
Avançar no acesso a essa
tecnologia, portanto, pode se relacionar a uma perspectiva de sustentabilidade
a longo prazo da saúde, segundo Soares, da Rede D’Or: “O sistema de saúde
resiste a esse tipo de estratégia porque ainda não pensa a longo prazo, pensa a
curtíssimo prazo. No entanto, se estamos falando sobre prevenção, sobre
promover acesso, a discussão deve ser em torno da questão do financiamento.”
Essa perspectiva também é
abordada por Amorim, da Thermo Fisher Scientific, que defende o fomento da
discussão sobre alternativas de financiamento para ampliar o alcance dos testes
genéticos. “Porque o próprio tratamento está atrelado ao resultado desse
exame”, ressalta.
·
Presença no país e
capacitação de profissionais
O fortalecimento e a
disponibilidade de tecnologia no país é um próximo passo importante não apenas
para a ampliação do acesso, mas também para acelerar o processo do início de
tratamento dos pacientes diagnosticados com câncer. Atualmente, o tempo médio
de resposta para o perfil de biomarcadores tumorais baseados em NGS é de
aproximadamente 25 dias. Esses dados são baseados nos Estados Unidos, mas Amorim ressalta que
no Brasil, a situação é ainda mais delicada.
“Estudos mostram que de 20%
a 50% dos pacientes recebem o tratamento de primeira linha sem ter recebido o
perfil dos biomarcadores, com consequências negativas para o desfecho
terapêutico. Isso é um reflexo da demora do teste genético, e sabemos que aqui
no Brasil o tempo de espera é muito maior, porque muitos médicos ainda enviam
os testes para serem realizados fora do país. Esse atraso logístico impacta o
tratamento do paciente”, explica Amorim, que ressalta que há muitos
laboratórios no país capacitados para realizar os exames localmente, com menor
tempo para o resultado.
Ao mesmo tempo, é importante
mobilizar entidades médicas, instituições de ensino e instituições de saúde
para promover a capacitação dos profissionais para lidar com a análise e
interpretação dos resultados de testes dessa natureza. Soares chama a atenção
para o fato de que, hoje, uma parcela relevante dos médicos se formou antes da
chamada era genômica e precisa conhecer esse campo para fazer melhor uso de
suas ferramentas.
E é um desafio que tende a
crescer se considerar que os avanços da ciência seguem a todo o vapor, como é o
caso da biópsia líquida. Essa técnica pode ainda atuar na detecção de uma
provável recidiva do tumor e está sendo cada vez mais usada no acompanhamento
de pacientes. “Ela detecta a alteração genética na circulação do paciente sem
que ele tenha o tumor”, explica Bendit, possibilitando intervenções mais
precoces do que as baseadas nos exames tradicionais.
Fonte: Futuro da
Saúde
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