Metade dos casos de
demência no Brasil podem ser evitados — conheça os 12 fatores de risco
Primeiro, a notícia
ruim: a América Latina já é a região
mais afetada pela demência no mundo, e a
situação tende ficar ainda pior nas próximas décadas.
Depois, a boa: mais
da metade desses casos podem ser evitados se 12 fatores que causam a doença forem
devidamente controlados.
Essas são algumas
das principais conclusões de uma pesquisa liderada pela Faculdade de Medicina
da Universidade de São
Paulo (FMUSP)
em parceria com outras oito instituições, publicada em
outubro de 2024 no periódico acadêmico The Lancet Global Health.
Os cientistas
levantaram dados e indicadores de saúde de sete
países da região — Argentina, Brasil, Bolívia,
Chile, Honduras, México e Peru — e
viram como cada um deles se saía em relação a 12 fatores modificáveis que
contribuem para a perda da memória e do
raciocínio.
A lista de fatores
por trás da demência inclui nível de educação, perda
auditiva, hipertensão, obesidade,
tabagismo, depressão, isolamento social, sedentarismo, diabetes, consumo
excessivo de álcool, poluição
atmosférica e traumas na cabeça (entenda a seguir como eles estão relacionados
ao desenvolvimento da doença).
Além de calcular
uma média para toda a América Latina, o estudo também avaliou a situação
específica de cada país e o peso que os 12 elementos possuem nesses lugares.
Para ter ideia, a
educação e a hipertensão são os dois fatores mais impactantes no Brasil,
enquanto a depressão e a obesidade
se sobressaem no México e o tabagismo é o principal
problema em Honduras.
Os autores esperam
que os achados sirvam de orientação para as pessoas e principalmente ajudem
governos a criar políticas públicas customizadas, de acordo com a situação de
cada local.
·
Como
o estudo foi feito
As estatísticas
usadas na análise foram retiradas de grandes trabalhos epidemiológicos
realizados nesses países durante a última década.
Esses levantamentos
reúnem dados relacionados à saúde de uma amostra representativa da população,
que supera as dezenas ou até centenas de milhares de pessoas.
No caso do México,
as estatísticas englobam mais de 107 mil indivíduos acima de 18 anos. Os
números também são elevados nos casos de Honduras (89 mil), Peru (81 mil) e
Argentina (29 mil).
"E, mesmo no
caso do Brasil, cujo estudo traz dados de 9,4 mil pessoas, trata-se de uma
amostra representativa da população do país", explica a bióloga Regina
Silva Paradela, pesquisadora da FMUSP e uma das autoras do estudo
recém-publicado.
Segundo ela, o
principal desafio foi padronizar e harmonizar todas essas estatísticas, para
que elas fossem submetidas aos mesmos critérios e definições sobre o que
significa, por exemplo, ter hipertensão ou fazer um consumo excessivo de
álcool.
Superada essa
barreira, os cientistas puderam calcular o impacto de cada um daqueles 12
elementos que provocam a demência.
"Precisamos
também levar em conta a comunalidade, pois alguns dos fatores tendem a se
agrupar e estão relacionados. A obesidade está associada à hipertensão, ao
diabetes, ao sedentarismo…", detalha a médica Claudia Kimie Suemoto,
professora do Departamento de Geriatria da FMUSP e outra autora do trabalho.
A partir dessa
análise, que isolou a contribuição de cada um dos elementos, os cientistas
puderam concluir que 54% dos casos de demência na América Latina podem ser
atribuídos aos 12 fatores citados anteriormente.
Em ordem
decrescente, aparecem obesidade (7%), sedentarismo (7%), depressão (5%),
tabagismo (4%), hipertensão (4%), traumas na cabeça (4%), educação (3%),
isolamento social (3%), poluição atmosférica (3%), diabetes (3%), perda
auditiva (1%) e consumo de álcool (1%).
Em outras pesquisas
do tipo, que avaliaram partes diferentes do mundo (especialmente os países mais
ricos), essa porcentagem de casos de demência ligada a esses 12 fatores fica em
40%.
Mas o que explica a
diferença de 14 pontos percentuais a mais na América Latina?
"Basicamente,
grande parte dessa diferença tem a ver com a prevalência mais elevada de alguns
dos fatores na nossa região", responde Suemoto.
"Sabemos, por
exemplo, que o baixo nível de educação é mais comum por aqui, assim como os
fatores de risco cardiovasculares, caso de hipertensão, diabetes e
obesidade", complementa ela.
Para a geriatra,
essa informação representa ao mesmo tempo uma grande ameaça e uma enorme
oportunidade.
Afinal, a América
Latina já tem a maior prevalência de demência: 8,5% da população acima de 60
anos do continente sofre com essa condição.
As projeções
apontam que essa taxa vai subir para 19,3% até 2050 — isso significa que
praticamente um a cada cinco indivíduos mais velhos sofrerão com a perda de
memória e as dificuldades de raciocínio.
"Ou seja,
estamos falando de uma possível redução de 54% nos casos em relação a uma
quantidade de pessoas muito maior, com um aumento projetado para o
futuro", compara Suemoto.
Enquanto isso, nos
países mais ricos, a possível diminuição de 40% nos casos pode acontecer sobre
uma base que já é menor e tende a crescer menos nas próximas décadas.
"Na prática,
isso significa que as políticas públicas contra a demência, se bem aplicadas,
podem fazer uma diferença ainda maior na América Latina", complementa a
médica.
Diferenças entre os
países
Como citado
anteriormente, a pesquisa da FMUSP também revelou como os impactos entre os
diferentes "gatilhos" da demência variam em cada país da América
Latina.
No caso do Brasil,
a ordem dos doze fatores por trás da demência é: educação (8%), hipertensão
(8%), perda auditiva (7%), obesidade (6%), depressão (4%), sedentarismo (4%),
poluição atmosférica (3%), diabetes (3%), traumas na cabeça (3%), tabagismo
(2%), isolamento social (0%) e consumo de álcool (0%).
No total, 48% dos
casos de demência no Brasil podem ser prevenidos se esses elementos fossem
devidamente controlados.
A educação também
aparece como um grande problema na Bolívia (11%) e em Honduras (7%), mas tem um
impacto bem menor em locais como México (2%), Argentina (2%), Chile (1%) e Peru
(1%).
"Isso tem a
ver com o sistema educacional de cada lugar. Na Argentina, existe uma forte
política de educação de qualidade para todos", exemplifica Suemoto.
Em nações como
Chile e Argentina, questões como obesidade, sedentarismo, depressão e
isolamento social se sobressaíram mais.
"A ideia é que
cada país possa usar as informações desses gráficos e pensar em como aplicá-las
na prática. Claro que criar políticas para todos os 12 fatores é difícil, mas
há a possibilidade de focar nas questões mais significativas de cada
lugar", sugere Suemoto.
Paradela destaca o
impacto reduzido do tabaco em toda a região — com exceção de Honduras e Peru,
onde o cigarro responde por 12% e 11%, respectivamente, o papel desse hábito na
demência é menor nos demais países e fica entre 5% na Argentina e 2% no Brasil.
"Isso é fruto
de políticas públicas que restringiram o tabagismo na maioria dos países
latino-americanos durante as últimas décadas", aponta Paradela.
Nesse período,
foram criadas leis e iniciativas para restringir o fumo em lugares fechados,
aumentar os impostos sobre a indústria do tabaco, coibir a propaganda desses
produtos, fazer campanhas de conscientização e oferecer tratamentos contra a
dependência à nicotina.
Em países como o
Brasil, essas medidas fizeram com que a porcentagem de fumantes caísse de 35%
nos anos 1980 para menos de 15% em anos recentes.
Os gatilhos da
demência
O médico Marco
Túlio Cintra, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia
(SBGG), que não esteve envolvido com o estudo da FMUSP, explica que a demência
é uma condição marcada pela "perda de funcionalidade".
"O idoso que
não sai de casa sozinho, não controla mais as próprias finanças, não consegue
tomar medicamento sem ajuda, não faz as tarefas dentro de casa, ou seja, se
torna cada vez mais dependente, não está diante de um processo normal do
envelhecimento", contextualiza o geriatra, que também é professor da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
"Se essa perda
de funcionalidade vem associada a esquecimentos significativos, especialmente
de episódios recentes, estamos diante de um quadro de demência", continua
ele.
Cintra destaca que
atualmente no Brasil até 80% dos casos de demência são diagnosticados em fases
mais avançadas.
"Essas pessoas
são privadas de um tratamento precoce e cuidados que poderiam fazer a
diferença", lamenta ele.
Mas qual a relação
entre os 12 gatilhos e a perda de memória e capacidade cognitiva? Qual o
mecanismo de ação por trás desses fenômenos?
Comecemos pela
educação, o fator mais importante no contexto brasileiro. Ao estudarmos e
desafiarmos a mente, nós fortalecemos e criamos novas conexões entre os
neurônios.
Ao longo dos anos,
isso cria o que especialistas chamam de reserva cognitiva.
Ela funciona como
uma "poupança cerebral", ou seja, caso o sistema nervoso comece a se
deteriorar — e essas sinapses entrem em colapso —, ainda existem outras
conexões em funcionamento para garantir um "acesso" ao raciocínio e
às lembranças.
"Vamos pegar
como exemplo dois indivíduos que apresentam um perfil genético similar, que
propicia o aparecimento da demência. Aquele que estudou menos e, portanto, tem
uma reserva cognitiva menor, vai ultrapassar o limiar da doença com mais
rapidez e apresentará sintomas de forma precoce em relação àquele que teve mais
anos de aprendizado", compara Cintra.
Aliás, a formação
dessa poupança cerebral é mais intensa na infância e na adolescência — o que
significa que a prevenção da demência começa a partir do nascimento.
No entanto, o
aprendizado é importante em todas as fases da vida — ler, conhecer um novo
idioma, fazer cursos e desafiar o intelecto permitem criar e cultivar a tal da
reserva cognitiva.
"E precisamos
lembrar que o acesso à educação no Brasil foi tardio. Boa parte dos idosos de
hoje estudaram numa época em que o ensino obrigatório era de apenas quatro
anos", destaca Cintra.
Seguindo a lista,
aparecem os fatores ligados ao estilo de vida e às doenças crônicas:
hipertensão, diabetes, obesidade, sedentarismo, tabagismo, consumo de álcool e
poluição atmosférica.
Em linhas gerais, a
questão aqui está relacionada aos vasos sanguíneos.
De diferentes
maneiras, todos esses elementos machucam veias e artérias. Com o passar do
tempo, esses tubos do sistema circulatório entram em colapso — e deixam de levar
oxigênio e nutrientes para diferentes partes do corpo.
Agora, imagina o
que acontece no cérebro: o fechamento de pequenos vasos sanguíneos provoca aos
poucos a morte de neurônios.
A questão é que
esse quadro pode dar sintomas claros, como no caso de um acidente vascular
cerebral (AVC), mas muitas vezes é sutil e passa despercebido.
Ao longo do tempo,
isso compromete diversas funções da mente, como a memória e o raciocínio —
tanto é que a demência vascular (causada por problemas na chegada de sangue ao
cérebro) é um dos tipos mais comuns da doença, ao lado do Alzheimer.
Além de lesar os
vasos sanguíneos, alguns dos fatores citados acima também podem ter um efeito
direto nas células cerebrais, como é o caso do consumo de álcool e da poluição.
Na lista, também
chama a atenção a importância da perda auditiva, que responde por 7% dos casos
de demência no Brasil.
"Podemos
pensar no cérebro como um computador. Ele depende de estímulos do ambiente para
funcionar, e a audição é um dos meios mais importantes para isso", ensina
Suemoto.
"A pessoa que
não ouve direito fica mais quieta, deixa de falar com os outros, se afasta e,
por consequência, tem menos estímulos cognitivos", observa a geriatra.
"Esses
indivíduos são privados dos sons que fazem a vida, como a folha que cai no
chão, o canto dos pássaros, a roda do carro deslizando no asfalto…",
complementa Cintra.
E, com o passar do
tempo, isso gera um declínio cognitivo e desemboca numa demência.
Para fechar, há os
fatores ligados à saúde mental, como o isolamento social e a depressão.
Cintra explica que
esses quadros provocam a liberação de substâncias inflamatórias no cérebro que,
ao longo do tempo, aumentam o risco de demência.
"Além disso, a
pessoa que vive sozinha tem menos contato social, costuma se alimentar pior,
faz pouca atividade física…", pontua Cintra.
·
Como
melhorar esse cenário
Suemoto argumenta
que a prevenção de casos de demência passa necessariamente pela criação de
políticas públicas.
"Os estudos
mostram que mudanças individuais são pouco efetivas. Para reduzir o risco,
precisamos alterar o ambiente, para que todos esses fatores tenham um melhor
controle", diz ela.
Ou seja: não basta
apenas pedir para que a pessoa emagreça ou controle a pressão arterial. É
necessário aprimorar a estrutura das cidades e dos sistemas de saúde para
garantir que todos tenham acesso a lugares para praticar atividade física,
possam fazer um acompanhamento de saúde, tenham condições de comprar alimentos
saudáveis, recebam os remédios necessários, e assim por diante.
"Eu moro em
Belo Horizonte e vejo os problemas de mobilidade todos os dias. Muitos idosos
não têm uma atividade de lazer perto de onde moram e só saem de casa para ir ao
médico quando é extremamente necessário", ilustra ele.
"Precisamos
investir no bem-estar e na saúde da população agora para evitar uma série de
problemas no futuro", acredita ele.
Suemoto destaca que
a Organização Mundial da Saúde pediu em 2015 que todos os países criassem
planos para prevenir e lidar com a demência.
No Brasil, esse
debate começou a acontecer em 2023 e surgem agora as primeiras iniciativas para
lidar com essa demanda.
Em junho de 2024, o
Governo Federal sancionou uma lei que cria a "Política Nacional de Cuidado
Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e Outras Demências".
Também está
previsto para os próximos meses a publicação de uma cartilha do Ministério da
Saúde para educar a população sobre como se proteger contra a demência, que
foca justamente na lista de fatores citados ao longo da reportagem.
Suemoto vê com bons
olhos esses primeiros passos, mas entende que há muito trabalho pela frente.
"Precisamos de
uma mudança na estrutura das cidades e do ambiente para propiciar esses
cuidados de saúde", reforça ela.
Cintra concorda.
"Há a necessidade de um investimento para que essas políticas sejam de
fato implementadas na prática."
"Se isso não
acontecer, corremos o risco de elas serem apenas mais um livreto que fica num
canto qualquer acumulando poeira", conclui ele.
Fonte: BBC News
Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário