As duas caras da
filantropia: o perigoso custo das doações de produtos ultraprocessados
María, uma indígena
do povo Otomí do México, recebe todos os meses caixas de cereais açucarados e
leite para seus filhos. Ela diz que só consome esse tipo de produto quando
ganha, porque prefere que os filhos consumam “o que é natural, o que a gente
cultiva. Tenho uma pequena estufa com cenoura, abóbora, brócolis e acelga”. As
doações para a comunidade são da multinacional Kellogg’s e fazem parte do
programa de responsabilidade social da empresa.
Uma reportagem da
rede investigativa transnacional OjoPúblico, em parceria com o PopLab, analisou
39 programas de responsabilidade social das mais importantes empresas da
indústria de ultraprocessados e bebidas da
América Latina e identificou que no Brasil, México, Peru e Colômbia, parte
significativa das doações destinadas a populações vulneráveis tem baixíssimo valor nutricional: são compostas por
cereais açucarados, doces, bebidas açucaradas e similares.
Entre 2021 e 2023,
a indústria de alimentos ultraprocessados doou mais de 35 mil toneladas de
produtos na Colômbia por meio de bancos de alimentos; no México, entregaram
67,2 milhões de produtos; no Brasil, os principais doadores são Nestlé, Bimbo e
Burger King; enquanto no Peru o banco alimentar local tem aliados empresas como
Oxxo, Mondelez ou PepsiCo.
Parte dessas
doações é feita por meio de bancos alimentares, organizações sem fins
lucrativos que recolhem alimentos para distribuí-los a populações com elevada
vulnerabilidade alimentar devido aos elevados riscos de doenças não
transmissíveis como o diabetes. Em alguns casos, como não recebem feijão,
carnes ou alimentos de alto teor nutricional, esses bancos complementam as
doações comprando outros insumos adquiridos em parcerias com agricultores.
No Peru, a líder
Abilia Ramos, presidente da Rede de Panelas Comuns do distrito de San Juan de
Lurigancho – um dos mais pobres da capital –, relata que já receberam bebidas
açucaradas, como refrigerantes e outros produtos ultraprocessados, como
doações. “Se for da sua vontade, diga aos empresários: não comprem refrigerante
para a gente, o que precisamos é de alimentos que tenham proteína”, recomenda a
dirigente.
·
Publicidade
com cara de responsabilidade social
Pesquisas
científicas consultadas para esta reportagem apontam que as doações por meio de
bancos de alimentos enquanto ações de responsabilidade social da indústria
constituem, na realidade, estratégias publicitárias. “São um mecanismo para
criar uma intenção mais forte de compra”, afirmaram os autores do estudo “Revisão
sobre as práticas do mercado e políticas das empresas alimentícias
transnacionais e respostas da saúde pública”, de 2021.
O pesquisador do
Instituto Nacional de Saúde Pública do México Simón Barquera destaca a
necessidade de que produtos doados não tragam danos à saúde, uma vez que “nos
lugares mais pobres, como é o caso do México, há doenças crônicas, obesidade e
deficiências de micronutrientes”. Ele afirma que é preciso que as autoridades
estabeleçam critérios melhores para doações do gênero, priorizando alimentos
ricos em nutrientes, e que eles não sejam definidos pela indústria de
ultraprocessados.
Um estudo de 2021,
fruto de parceria entre universidades da Austrália, Indonésia e Brasil, aponta
que o consumo de ultraprocessados estacionou em países mais ricos enquanto as
vendas crescem naqueles de baixo ou médio desenvolvimento. Segundo a pesquisa,
publicada no International Journal of Health Policy and Management,
grandes empresas se aproveitam do crescimento dos mercados emergentes usando
ações de responsabilidade social corporativa “como uma estratégia valiosa para
ajudar a reduzir custos e aumentar investimentos e vendas futuras enquanto
houver atuação fraca ou inexistente das autoridades [locais]”.
A Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e a Organização Mundial da
Saúde (OMS) destacaram que dietas saudáveis “previnem deficiências e excessos
de nutrientes, e doenças transmissíveis e não transmissíveis” e recomenda
evitar o consumo de alimentos que concentram altos níveis de gorduras saturadas
e açúcares livres (processados e ultraprocessados).
Com esse fim e com
o aumento de doenças relacionadas à má alimentação, nos últimos anos Brasil,
México, Peru e Colômbia vêm promovendo leis contra a venda de fast food em
escolas, regulando a publicidade e os rótulos de produtos ultraprocessados com
o objetivo de proteger a saúde da população, em especial de crianças e
adolescentes.
Por outro lado, a
indústria tem aumentado sua influência por meio dos bancos de alimentos,
principalmente em países mais pobres. No Brasil, 95 bancos de alimentos do
gênero são agrupados pelo Sesc
Mesa,
enquanto o México concentra 56, Colômbia, 25 e o Peru, um. A Rede Global de Bancos
de Alimentos reúne 50 organizações em 45 países e recebe apoio de bancos,
empresas, fundações e companhias ligadas à indústria alimentícia, a exemplo da
Kellogg’s e Herbalife. Essas fabricantes chegaram a doar 651 mil toneladas de
produtos no mundo em 2023, segundo o balanço da
organização. Os quatro países latinos concentraram 37% dessas doações (245 mil
toneladas) – e um terço dos receptores foram crianças.
No Brasil e no
México, uma das empresas que mais doaram produtos foi a Kellogg’s. A empresa
apresenta em seus informes públicos que a ação faz parte de seus compromissos
de sustentabilidade para “garantir a segurança alimentar e melhorar a
nutrição”, mas também é uma das principais doadoras de ultraprocessados.
No mundo, o ranking
de empresas de alimentos processados que mais doam, segundo o balanço anual da
Rede Global de Bancos de Alimentos, também incluem Coca-Cola, Nestlé, Pepsico,
Carrefour, General Mills, Grupo Bimbo, McDonald’s, Mondelez, Starbucks,
Unilever e Walmart.
·
Ultraprocessados
e a população mais vulnerável na América Latina
No Peru, o Banco
Alimentar, uma organização civil sem fins lucrativos, é um dos principais
intermediários entre as empresas que fazem doações e os beneficiários, como
abrigos infantis, lares de idosos, escolas, hospitais, refeitórios sociais e
moradores de áreas de vulnerabilidade social. A instituição indica que, desde a
sua criação, em 2014, enviou esse tipo de produto a mais de 1 milhão de pessoas
em 19 regiões do país, e que a sua rede de beneficiários é composta por 900
organizações sociais e comunidades.
Um estudo
sobre cozinhas
comunitárias no
Peru, publicado na revista Debate Agrário em 2024, relata o caso de uma
das organizações que durante a pandemia (entre 2020 e 2021) recebia doações de
uma empresa, como verduras e frutas frescas e mantimentos, mas, que, desde
2022, recebe doces, alimentos industrializados e pouquíssimas compras.
“Eles me dão mais
doces, o que me dão agora é mais chocolate, às vezes muito chocolate, e até me
dão potes de guloseimas. Quer dizer, sim, é bom, mas não é comida para a gente,
que é o que as pessoas precisam. Muitas vezes me dão balas, chicletes, biscoitos.
Não é isso que vamos cozinhar”, diz uma das mulheres entrevistadas pela
pesquisadora Gabriela
Rengifo.
Um dos mais reconhecidos
especialistas em alimentação saudável do México, o pesquisador Simón Barquera,
presidente da Federação Mundial de Obesidade, explica que para as empresas de
produtos ultraprocessados o custo de produção
é mínimo. “Isso gera lucros enormes e lhes dá muita capacidade de investir em
marketing agressivo, e eles focam na infância, porque sabem que as crianças,
além de terem muita influência nas decisões de compra em casa, também se tornam
clientes cativos desses produtos”, afirma.
Um exemplo de como essas
empresas expandem seu mercado para as
crianças é por meio das doações. No Peru, a empresa Backus
y Johnston –
do grupo AB Inbev, multinacional com sede na Bélgica, que produz cervejas e
bebidas não alcoólicas – costuma entregar doações a crianças e idosos nos
Centros Residenciais de Assistência do Programa Nacional Integral para o
Bem-Estar Familiar (Inabif). A última delas, em março de 2024, foi de 2.010
unidades de bebidas, sendo 78% bebidas açucaradas (refrigerantes).
Barquera, que
também é diretor do Centro de Pesquisa em Nutrição e Saúde do Instituto
Nacional de Saúde Pública do México, alerta que “a região das Américas, e
particularmente a América Latina, é uma das áreas onde se esperam aumentos mais
significativos da obesidade nos próximos anos e onde uma percentagem maior da
população está com sobrepeso e obesidade em geral”.
O Fundo das Nações
Unidas para a Infância (Unicef) informa que a América Latina passou por uma “transição
nutricional”,
ou seja, “as dietas tradicionais ricas em frutas e vegetais e pobres em
produtos de origem animal mudaram para uma dieta rica em calorias e pobre em
nutrientes, composta de carboidratos refinados, alto consumo de gorduras e
alimentos processados”.
Em um relatório de 2019, o
Unicef explica que isso se deve à rápida
expansão das lojas de autoatendimento na região, que vendem dietas baratas e,
em sua maioria, pouco saudáveis. Chamaram esses espaços de “ambientes
obesogênicos” porque promovem o consumo de produtos de baixa qualidade
nutricional. Essa situação gera, segundo Barquera, um duplo impacto: ter, ao
mesmo tempo, um grande número de pessoas com obesidade e outro com desnutrição.
Na América Latina e
no Caribe há 5,7 milhões de meninos e meninas com menos de 5 anos de idade com
desnutrição crônica e 8,6 milhões afetados pelo sobrepeso. Em dez anos, a
desnutrição diminuiu na região; no entanto, o excesso de peso tem aumentado
nesse setor da população em níveis médios e elevados.
Um estudo liderado pela
Universidade de Melbourne questiona a influência da indústria na concepção de
políticas públicas para melhorar a nutrição dos cidadãos. “Há evidências crescentes
de que as práticas e políticas de mercado das grandes empresas alimentares
moldam padrões de saúde e doença e representam um risco para o desenvolvimento
e implementação de políticas de prevenção eficazes”, observam os acadêmicos.
A influência é grande:
as dez maiores empresas de alimentos e bebidas do mundo controlam 80% dos
produtos vendidos nas lojas, com lucros anuais superiores a 100 bilhões de
dólares – e 75% da renda provém de produtos de baixa qualidade.
Questionado sobre
as doações de alimentos ultraprocessados, Juan Carlos Buitrago,
diretor-executivo do Banco Alimentar Colombiano (Abaco), acredita que a
política pública de segurança alimentar deve evoluir. “Há países, há bancos
alimentares no mundo que já se dão ao luxo de só utilizar alimentos do campo,
frutas e legumes; mas nesses países não há insegurança alimentar, não há mortes
por desnutrição, são países desenvolvidos”, declarou, lembrando que, apenas na
Colômbia, 4,2 milhões de pessoas não consomem as calorias diárias de que
precisam.
·
A
pressão da indústria
As ações para
reduzir o consumo de alimentos ultraprocessados nas
populações mais vulneráveis no Brasil, México,
Peru, Colômbia e outros países latino-americanos avançam a um ritmo lento. A
nutricionista Ana Paula Bortoletto, do Centro de Pesquisa em Epidemiologias de
Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Usp), explica que a aprovação de
políticas na região exigiu muito tempo e esforço devido à interferência da
indústria.
“Uma das
estratégias [da indústria de alimentos ultraprocessados] é organizar grupos de
defesa política, como associações comerciais, para ter relacionamento direto
com tomadores de decisão em agências reguladoras, instituições de saúde e
grupos de trabalho. Essas organizações representam os interesses, posições
técnicas e políticas de grandes corporações sem que seus nomes estejam diretamente
envolvidos”, afirma Bortoletto.
México e Argentina
têm as experiências mais bem-sucedidas na regulamentação de alimentos
ultraprocessados, segundo Bortoletto, devido ao forte pacote de medidas
regulatórias aprovadas, como rotulagem nutricional, publicidade e restrições de
oferta nas escolas e regulamentações para identificar alimentos não saudáveis e
com maior impacto na saúde pública.
A nutricionista diz
que o Brasil avançou com as diretrizes alimentares, que recomendam evitar o
consumo desses alimentos, e com a promoção da alimentação saudável nas escolas,
mas ainda não teve grande sucesso com a questão dos rótulos desses produtos,
que indicam a concentração de altas, médias ou baixas quantidades de açúcares,
sódio ou gorduras, seguindo o chamado semáforo nutricional (cores vermelha,
amarela ou verde), em vez do modelo octogonal, que os especialistas consideram
mais eficaz e que já foi implementado em países como Peru, Colômbia e México.
Mirko Lázaro,
nutricionista do Instituto Nacional de Saúde do Peru, tem opinião semelhante.
Reconhece que as disposições regulatórias do Peru, como a Lei de Promoção da
Alimentação Saudável para Crianças e Adolescentes, os guias alimentares e o
imposto sobre bebidas açucaradas tiveram impacto na indústria de ultraprocessados,
mas considera que ainda há muito a fazer.
“As empresas
reduziram o teor de açúcar, sódio e gorduras saturadas em muitos de seus
produtos, mas é preciso continuar melhorando a educação nutricional da
população, principalmente da mais vulnerável, como crianças e adolescentes”,
avalia.
Além do avanço das
políticas regulatórias, a nutricionista brasileira destaca a crescente
coordenação entre os países latino-americanos para a troca de experiências,
informações e lições aprendidas. “Essa colaboração regional é muito importante
para garantir políticas públicas mais eficazes e minimizar conflitos de
interesses e interferências da indústria de ultraprocessados”, afirma
Bortoletto.
Por sua vez, Lázaro
propõe melhorar a coordenação interna entre os setores de saúde, educação e
agricultura de cada país, a fim de promover o consumo de alimentos in
natura ou minimamente processados.
Da Colômbia, Lorena
Ibarra, da organização The Global Health Advocate Incubator, alerta que, quando
as empresas não conseguem impedir o avanço de políticas que restringem o
consumo dos seus produtos pouco saudáveis, procuram enfraquecê-lo. “A indústria
cria padrões políticos alternativos. Se não houver expertise da sociedade civil
e de organizações acadêmicas livres de conflitos de interesses governamentais,
podem ser adotadas medidas inúteis para proteger a saúde e muito funcionais
para a indústria”, alerta Ibarra.
Um exemplo da
interferência da indústria de alimentos não saudáveis ocorreu quando a
Associação de Bancos Alimentares da Colômbia (Abaco) alertou sobre um projeto
de lei apresentado por parlamentares do partido Alianza Verde, em 2023. A
iniciativa buscava proibir a doação de dez alimentos ultraprocessados:
chocolate, aveia em flocos, requeijão, iogurte grego, pedaços de frango
marinado, pão fatiado, presunto, chouriço, compota e sucos embalados. O
diretor-executivo da Abaco, Juan Carlos Buitrago, alertou que essa regra
afetaria as famílias de baixa renda que recebem periodicamente esses alimentos.
Os números oficiais
de 2022 indicam que, na
América Latina e no Caribe, 133,4 milhões de pessoas não têm acesso a uma
alimentação saudável. A análise desses números revela que na região o custo
médio de uma alimentação saudável é mais elevado do que em outros lugares.
Enquanto a média global para uma dieta saudável é de US$ 3,96 por pessoa por
dia, na América Latina é de US$ 4,56. Peru (US$ 33,6) e Colômbia (US$ 36,6)
apresentam os custos mais elevados.
Embora os bancos
alimentares sejam organizações independentes, trabalham em estreita colaboração
com empresas de ultraprocessados, com as quais têm acordos de colaboração,
doação ou aliança.
Questionada sobre as
doações de produtos ultraprocessados, Clarisa Fonseca, gerente de comunicação
da Rede de Bancos de Alimentos do México, declarou que sua organização “não
demoniza nenhum produto” e explicou que, embora existam “alimentos que
nutricionalmente não vão nos dar nada, no nosso país há pessoas que todos os
dias vão dormir com fome e vivem com fome, então o que fazemos com o apoio dos
nutricionistas é entregar o pacote equilibrado para que, se entregarmos
produtos com muito açúcar ou muita gordura, isso possa ser contrabalançado com
outros produtos que não tenham”.
Juan Carlos
Buitrago, diretor da Associação de Bancos Alimentares da Colômbia, explica que
no país existem 22 mil crianças com desnutrição aguda. “Há quem diga que os
alimentos industrializados não devem ser consumidos na Colômbia e não devem ser
doados. Pensamos diferente: acreditamos que na Colômbia todos os alimentos são
bons. Qualquer alimento faz mal quando consumido em excesso”, comentou.
Simón Barquera, por
outro lado, considera que a doação de alimentos hiperpalatáveis, que possuem
sabores intensos, pode ter impacto na infância e que crianças que consomem
ultraprocessados podem, ao experimentar alimentos naturais, “por questões
sensoriais, deixar de preferi-los”, alerta.
Alimentos
ultraprocessados – como
refrigerantes, sucos engarrafados, energéticos, iogurtes de frutas, batatas
fritas, salgadinhos, biscoitos, chocolates, balas, cereais açucarados, barras
energéticas, embutidos, carnes processadas como salsichas ou hambúrgueres,
nuggets de frango e barras de cereais – estão associados a problemas de saúde,
incluindo doenças cardíacas, hipertensão, diabetes, câncer e depressão, entre
outros, de acordo com um estudo em grande
escala publicado no British Medical Journal em 2024.
Para esta
investigação foram solicitadas entrevistas aos representantes regionais das
empresas Coca-Cola e Nestlé, e ambos indicaram que não dariam entrevistas. Por
sua vez, o Grupo Bimbo e a Kellogg’s não responderam aos pedidos feitos por
meio de seus emails oficiais.
Fonte: Por Kennia
Velázquez e Elena Miranda, na Agência
Pública
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