SP: Como avança a militarização das remoções
A atuação da Polícia Militar (PM) de São Paulo, que nas
últimas semanas tem sido foco de denúncias por uma série de abusos de
violência, tortura e execução, não se restringe infelizmente a essas violações.
Em nosso mapeamento colaborativo e atuação nos territórios, a presença e ação
tanto da PM quanto da Guarda Civil Metropolitana (GCM), de âmbito municipal,
aparecem de forma presente e marcante na efetivação de remoções e de violações
de direitos, fazendo com que destaquemos a contaminação e espraiamento da
lógica da militarização pelo tecido social e em esferas em que antes essas
dinâmicas não eram observadas desta forma.
Sob a gestão de Guilherme Derrite, a Secretaria da
Segurança Pública do Estado (SSP) tem investido de forma intensa nas forças
policiais militares, seja em suas atribuições, dando-lhes protagonismo em investigações
de crimes de menor potencial ofensivo – incumbência da Polícia Civil – e nas
operações de repressão ao crime organizado, seja no caixa da Polícia Militar (PM), ampliando
significativamente os gastos com o aparato técnico e bélico da corporação, além
do aumento de bonificações.
Na prática, o fortalecimento desses agentes têm
refletido sobre a sua presença cada vez mais intensa na execução de remoções de
ocupações e comunidades, valendo-se de meios como bombas, gás lacrimogêneo,
cassetetes e balas de borracha para eliminá-las.
Paralelamente, na escala municipal, as Guardas Civis
Municipais, ou ainda GCMs, vêm passando por um processo de intensificação de
militarização, como têm reportado veículos como Brasil de Fato e Ponte Jornalismo.
Afastadas de sua atribuição originária, de corporações
de apoio à proteção do patrimônio público, as CGMs mostram-se cada vez mais
próximas das forças militares, tanto em quesitos como vestimentas e
instrumentos quanto em seu modus operandi — marcado por ações violentas de
repressão e por uma relação conflituosa com trabalhadores e pessoas em situação
de vulnerabilidade social, seja ambulantes, pessoas em situação de rua, ou na
repressão violenta a ocupações recentes.
A capilarização do ethos e lógica da militarização pelo
tecido social vem se intensificado não apenas retoricamente, mas com políticas
a partir da ascensão ao poder da extrema direita nos últimos anos nas esferas
de governo federal (2019-2022), e das esferas estadual e municipal.
A intensificação da militarização da guarda
metropolitana, inclusive, revela o fortalecimento e alinhamento da Prefeitura
de Ricardo Nunes, reeleito na capital paulista com apoio aberto e ostensivo do
governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, com a linha e posição políticas
do Governo do Estado.
Em 2024, as informações coletadas pelo Observatório de
Remoções (OR) mostram o reforço da presença de ambas as instituições em
processos de expulsão e conflitos em torno da moradia na Região Metropolitana
de São Paulo, confirmando uma tendência já apontada pelos mapeamentos colaborativos anteriores do OR.
Ao todo, 83,6% das remoções totais e parciais foram
executadas por forças policiais ligadas à PM e às GCMs, incluindo a ROMU (Ronda
Ostensiva Municipal), considerada a “tropa de elite” das guardas no modelo de
rotas muncipais.
Dentre as quarenta e nove (49) remoções totais e
parciais mapeadas, quarenta e uma (41) delas tiveram envolvimento desses
agentes, sendo (24) delas em operações conjuntas. Muitos desses casos foram
violentamente reprimidos em um intervalo de tempo de menos de 48 horas de
formação da ocupação, valendo-se do chamado “estado de flagrância” para
executar a remoção dos moradores.
Estado de flagrância é o período compreendido entre o
exato momento do chamado “esbulho possessório” (o termo técnico e criminalizante
que designa a realização de uma ocupação) até 24h ou 48h. Durante esse período,
se considera que o “crime” está em flagrante, o que permite a ação da polícia
sem ordem judicial para repressão imediata.
No caso das GCMs ainda existe uma discussão
complementar. A lei autoriza que o proprietário que teve sua propriedade
ocupada reaja imediatamente e proteja sua posse por sua própria força (a
chamada autotutela da posse, “desforço imediato”).
Desde a repressão das ocupações das escolas pelos movimentos
secundaristas, o Governo de São Paulo e outros entes passaram a implementar a
tese de que essa “autotutela”, nos casos de bens públicos, possa ser realizada
pelas forças de segurança. De acordo com essa tese, um imóvel da União poderia,
então, ser desocupado imediatamente pela Polícia Federal (PF), um imóvel do
estado pela PM, e do município pela GCM.
Um desses casos, ocorrido no início do ano, é
emblemático na instrumentalização das GCMs pelas prefeituras como plataforma
político-eleitoral, sobretudo num contexto social marcado por reivindicações de
ordem pública nas grandes cidades.
No dia 20 de janeiro, o prefeito de Osasco, Rogério
Lins (Podemos), junto de Gerson Pessoa, então candidato à sucessão do cargo
pelo mesmo partido e vencedor das eleições de 2024, divulgou um vídeo em suas
redes sociais exibindo uma ação conjunta entre a GCM e a PM, que impediu um
grupo de cerca de 600 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
(MTST) de ocupar um terreno particular.
A espetacularização da repressão de ocupações, cada vez
mais frequente, assim como o slogan “Invasão, aqui em Osasco, não!”, com o qual
Lins finaliza a gravação, anunciando uma política de “tolerância zero” às
ocupações, que notamos em outras cidades e territórios também, como apresentaremos
a seguir, trazendo para o espaço urbano um movimento que se organizou no campo como uma reação à Campanha
Despejo Zero –
um coletivo de movimentos sociais do campo e da cidade que junto de entidades
da sociedade civil organizou durante a pandemia uma forte campanha, exitosa,
contra a realização de remoções –.
Por mais que haja diferenças entre o movimento de
“invasão zero” – organizado nas zonas rurais sobretudo por grupos armados
autônomos e violentos –, com as remoções efetivadas pela atuação de
instituições de Estado, como a PM e a GCM, notamos uma mesma atmosfera social,
que vai se fortalecendo e disseminando, de intolerância, truculência e negação
de qualquer diálogo ou de direito à estratégia política e histórica de ocupar
denunciando a falta de alternativas de moradia e existência de imóveis vazios
por décadas que não cumprem sua função social, nos termos da Constituição
brasileira.
Essa dinâmica também é identificada na capital. Na Zona
Norte de São Paulo, em Janeiro, registramos uma ação comandada pelo subprefeito
de Pirituba, Marcos Zerbini (PSDB), que fez uso das forças de GCM, utilizando
métodos como spray de pimenta e retroescavadeira, para promover uma remoção
parcial da ocupação Quintal da Resistência.
Segundo relatos de moradores, a ação deixou ferimentos
graves em pelo menos uma criança e aproximadamente 300 famílias do Grupo
Pirituba Sem Teto, cerca de 1000 homens, mulheres, crianças e idosos, em
situação de insegurança e vulnerabilidade.
A região central, já citada em balanços anteriores do
OR como palco de disputas e violências em torno da questão habitacional,
continua sendo o epicentro de conflitos em torno da moradia (conforme mapa
abaixo) e alvo de operações policiais violentas.
Uma tentativa de ocupação de um imóvel na Praça do
Patriarca, ligada ao Movimento de Moradia do Centro (MMC), foi severamente
reprimida pela GCM em menos de 24 horas, com uso de tiros de borracha e a
prisão de uma das lideranças do movimento.
Em outubro, três (3) ocupações foram realizadas em
único dia pela Frente de Luta por Moradia (FLM) na Bela Vista e na Sé. Essas
retiradas se deram também durante o estado de flagrância, mas desta vez sob
ação Tropa de Choque da Polícia Militar, em uma operação transmitida por
grandes veículos de comunicação.
Segundo a coordenação do movimento, as famílias
ocupantes foram recebidas com o uso de bombas de gás e estilhaços, deixando
pessoas feridas.
Também no centro de São Paulo, como temos alertado em
uma série de textos, o projeto de transferência da sede
administrativa do governo do estado para o entorno do Parque Princesa Isabel
tem ameaçado cerca de 800 famílias moradoras e pretende demolir cinco
quarteirões.
Além desses quarteirões diretamente ameaçados pelo
projeto, identificamos, no território, uma combinação de ações judiciais e
administrativas executadas em grande medida pela PM e pela GCM, que estão
levando à expulsão e ameaça de expulsão de centenas de pessoas.
É o caso de operações que vêm sendo deflagradas na área
central. Uma delas foi a operação Salus et Dignitas, realizada em agosto deste
ano, autorizada pelo 1ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e
Lavagem de Bens e Valores da Capital do Tribunal de Justiça de São Paulo e
realizadas em conjunto pelo Grupo de Atuação de Combate ao Crime Organizado
(GAECO) do Ministério Público, governo do Estado, Polícia Militar, Polícia
Civil, Polícia Rodoviária Federal (PRF), Polícia Federal (PF), Receita Federal
e do Ministério Público do Trabalho (MPT).
A operação visava combater o que vem sendo nomeado por
esses agentes estatais como “ecossistema ilícito” criado pelo PCC. Dentre
outras medidas, a operação promoveu o fechamento de pensões e hotéis na área
central usados, segundo o GAECO em ação cautelar, para distribuição de
substâncias entorpecentes ilícitas, lavagem de dinheiro, dentre outros crimes.
A proposta de ação cautelar pelo GAECO foi subsidiada
por representação da Polícia Civil, comandada pela Secretaria de Segurança
Pública de Derrite, que apresentou uma listagem de imóveis constituintes do
“ecossistema ilícito”.
Dezenas de lacrações e interdições de pensões e hotéis
na região central passaram a ser realizadas, despejando as famílias sem
qualquer aviso prévio e sem garantir tempo hábil de retirada dos pertences
pessoais, conforme relatos levantados em campo.
Parte dessas lacrações e interdições se deram em
ocupações, pensões e hotéis que já recebiam ameaças de fechamento em processos
de fiscalização em massa por parte da Subprefeitura da Sé, bem como tinham
relatos de constantes ameaças e assédios contra os seus moradores por parte da
GCM e da PM.
Ao longo dos anos, acompanhamos a realização tanto por
agentes da PM quanto da GCM de: toques de recolher e ameaças a moradores e
comerciantes, interdições e bloqueios de pequenos comércios (muitas vezes sem
nenhum amparo legal, e na quase totalidade representando um sufocamento para o
funcionamento e continuidade de sua permanência), a realização de revistas de
bens e corporais, interdições de ir e vir, além de violências mais abertas e
explícitas nos momentos chamados de “confronto” – o termo
supõe algum equilíbrio e simetria de recursos e correlações de força, o que não
é o caso na região conhecida como “cracolândia”.
Nesses episódios, é “tiro, porrada e bomba” – aqui não
é literal – com o excesso da violência atingindo não só as pessoas do assim
chamado “fluxo”, mas também moradores e circulantes. Foram inúmeros os relatos
que recebemos de bombas e o cheiro de pimenta invadindo casas – quando não a
própria polícia, literalmente, com o pé na porta entrando em pensões e quartos
durante operações, com ou sem mandado judicial – e atingindo quartos em que
crianças dormem.
Execuções cometidas por agentes do Estado também
acontecem nesses momentos de maior conflito, mas muitas das vezes investigações
e punições não avançam, não só pela impunidade histórica que esses agentes se
beneficiam – algo que justamente está sendo firmemente denunciado e contestado
na atual ofensiva contra a violência policial –, mas também pelo medo muito
justificado das pessoas que vivem, circulam e trabalham na região têm de
denunciar e sofrer represálias posteriormente.
Por conta da mobilização da rede contra remoções, a
interdição de cerca de cinco imóveis na quadra 48 dos Campos Elíseos contou com
o acompanhamento de repórteres e do Conselho Tutelar, que denunciaram abusos
que estavam sendo cometidos.
Uma reunião emergencial online sensibilizou os
promotores e juízes envolvidos no caso, quando se reconheceram erros na
listagem dos imóveis, onde restou demonstrado que não havia comprovada
materialidade entre vários imóveis e o “ecossistema ilícito”, ou, ainda, as
medidas de repressão aos moradores não eram proporcionais à vinculação
existente.
Em alguns casos, por exemplo, foram encontradas quantidades
pequenas de substâncias entorpecentes na área comum de um imóvel. A hipótese é
que, por não ter tranca na porta principal, pessoas usuárias tinham acesso às
áreas comuns e se utilizavam delas para guardar pertences pessoais e pequenas
quantidades de substâncias entorpecentes nessas áreas.
Não havia, no entanto, nenhuma vinculação comprovada
entre os moradores do imóvel e as pessoas que acessavam as áreas comuns,
tampouco uma quantidade de substâncias encontradas que indicasse o uso pelo
tráfico de forma a justificar o despejo e lacração.
Assim, o “ecossistema ilícito” se trata, na realidade,
de uma generalização descuidada da criminalização de todo um território,
fazendo com que o que o próprio Ministério Público identificou como “vítimas do
PCC” sejam também vítimas da violência estatal.
Depois desta reunião online, parte dos imóveis
receberam uma série de condicionantes relacionadas com a documentação e
autorizações de funcionamento dos imóveis foram listadas com o prazo de alguns
meses para que não precisassem ser interditados. Em um dos casos, a presença de
uma paciente oncológica do Hospital da Mulher, vizinho à pensão onde ela
morava, foi dado o prazo de apenas um dia para que ela pudesse encontrar um
novo domicílio.
Assim, o centro de São Paulo se constitui como mais um
território onde abusos e violências estão sendo cometidos pelos agentes e
forças policiais do Estado, constituindo mais uma evidência da militarização
dos conflitos possessórios e expulsões na capital paulista e entorno.
Fonte: Por Lara Giacomini, Vitor Inglez, Débora
Ungaretti, Matheus Martins, Renato Abramowicz e Raquel
Rolnik, no LabCidade
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