A segunda
independência africana
As relações entre a República Popular da China e a
África, notadamente a sua parte subsaariana guardam imensos paradigmas que
impedem em um único artigo sua plena abordagem. Digo isto, pois não se trata
somente de relações entre comércio e investimento, mas também da necessidade de
todo um novo equipamento teórico ser construído para dar conta da análise desta
relação.
Digo isto, pois de forma deliberada poderosas
categorias e conceitos de análise têm sido utilizadas de forma imprudente para
classificar tais relações, a começar pela categoria de imperialismo e a noção
de neocolonialismo como meios de sustentar determinadas argumentações que
interessam única e somente ao Norte Global. Nosso ponto de partida, logo, é a
de que existe um processo de recrudescimento de luta anticolonial nos países
africanos cujo alvo são seus antigos colonizadores, a começar pela França e o
papel da China neste processo tem sido no mínimo fundamental. Vamos comentar um
pouco sobre isso.
O primeiro ponto é que categorias e conceitos são
produtos do processo histórico, portanto em constante transformação. O conceito
que se manifesta no movimento real (Hegel) das relações entre China e África é
fruto de um processo histórico que se inicia com a Conferência de Bandung
(1955), a chamada Teoria dos Três Mundos elaborada por Mao Zedong e a
ideia-força de Xi Jinping – em ampla oposição às noções de “destino manifesto”
e Nova Canaã surgidos no Mediterrâneo Oriental e que ganha forma na ideia de
excepcionalidade dos EUA – de construção de um “Comunidade de Destino
Compartilhado”. A Iniciativa Cinturão e Rota e a globalização que a China
entrega a partir desta iniciativa são expressões concretas do processo acima
descrito.
Trabalhando com a noção de neocolonialismo, devemos
observar tanto a dolorosa experiência chinesa (“século das humilhações”) quanto
o papel dos países ocidentais, do Banco Mundial e do FMI sobre os destinos
africanos – principalmente desde a década de 1980. Por exemplo, a renda per
capita dos países da África Subsaariana cresceu, em média, nas décadas de 1960
e 1970 a uma taxa anual de 1,6%. Após o início das políticas de austeridade e
neoliberalismo radical imposta à região, a renda per capita decresce, ao ano,
0,3% entre 1980 e 2004.
Isso significa que histórica e atualmente os países
ocidentais têm aplicado mais restrições políticas e exercido maior influência
política do que a China sobre os assuntos internos e destinos da economia
africana. Bom lembrar que a França mantém domínio sobre as políticas monetárias
de 14 países africanos pela via de operações de senhoriagem e de obrigação de
depósitos em Paris de 50% das reservas internacionais desses países. As
revoltas, lastreadas por bandeiras russas e chinesas, no Mali, Niger e
Burkina-Faso não ocorreram “do nada”.
O caminho chinês pela África vem desde o apoio
aberto do país à descolonização do continente e a rapidez com que vários países
da região reconheceram a República Popular da China em detrimento de Taiwan
muito antes da admissão de sua admissão na ONU em 1971. Os países africanos
foram essenciais em um momento de amplo isolamento internacional chinês. Salto
de qualidade nesta relação foi dado nos marcos da fundação do Fórum de
Cooperação China-África (FOCAP, sigla em inglês). Desde então a China tem-se
engajado de forma profunda na mudança da geografia econômica do continente, a
começar pelo seu compromisso de impulsionar a industrialização africana a
partir, inicialmente, de maciços investimentos em infraestruturas.
A China tem sido fundamental para a construção das
necessárias infraestruturas no continente de forma a viabilizar uma verdadeira
unificação do mercado interno africano e, consequentemente, de uma futura
divisão social do trabalho – ambas fundamentais ao desenvolvimento econômico.
Desde então a China tem impactado positivamente a produção de bens e serviços
no continente, apesar de alguns países ainda enfrentarem desafios de governança
interna.
Evidente que a China investiu muito no continente
para expandir o alcance de seu soft power, influência diplomática e
iniciativas de infraestrutura para consolidar seus interesses e sua presença.
No entanto, bom salientar que a China não impôs seu modelo de governança a
nenhum dos países da África com os quais mantém um relacionamento ativo.
Por meio desse processo, a China se tornou o maior
parceiro comercial da África, respondendo por mais de US$ 282 bilhões em
comércio em 2022. Aproximadamente, 16% do total de importações manufaturados
pela África vieram da China em 2018, uma mudança em um continente que dependia
tanto da Europa. Vinte e cinco zonas de cooperação econômica e comercial foram
criadas com a China em dezesseis países africanos. Essas zonas, registradas no
Ministério do Comércio da China, atraíram 623 empresas com um investimento
total de US$ 7,35 bilhões até o final de 2020.
Essas zonas de cooperação impulsionaram a
industrialização local em vários setores, incluindo recursos naturais,
agricultura, manufatura, comércio e logística. Um terço das empresas chinesas
concentrou-se na indústria, um quarto em serviços e cerca de um quinto em
comércio, construção e imóveis. Com essas iniciativas, a presença chinesa cresceu
para aproximadamente 12% da produção industrial da África, cerca de US$ 500
bilhões por ano. Quanto ao setor de infraestrutura, as empresas chinesas
reivindicam quase 50% do mercado de construção contratado na África.
Porém, muitas questões nesta relação ainda demandam
mais profundidade de explicação. Um exemplo é a chamada “debt trap”
(“armadilha da dívida”) tão propalada pelos governos e acadêmicos, de direita e
de esquerda, no ocidente no sentido de desqualificar a presença chinesa no
continente e seu papel em sua “segunda independência”.
Tanto a China quanto a África foram literalmente
arrastadas pela ordem estabelecida pela Revolução Industrial pela força das
armas, violência colonial e uma guerra pela liberação do tráfico de drogas
(Guerras do Ópio – 1839-1842). Podemos dizer ainda que a diferença entre o
Terceiro Reich e as potências coloniais que assaltaram a África e a Ásia está
na geografia: Adolf Hitler fez na Europa o que os europeus já faziam em escala
industrial em suas colônias. Trata-se de uma risca de giz no chão para dividir
o colonialismo europeu e as formas de relacionamento estabelecidas entre a
China e o continente africano, principalmente desde 2000.
Como já posto um novo despertar anticolonial
africano está ocorrendo. Mais, sob os auspícios de uma crescente presença
econômica chinesa na região. Narrativas ocidentais de “neocolonialismo” e “debt
trap” são frequentes e se transformaram em senso comum nas discussões sobre
o tema. O que não se percebe é que até a disposição das infraestruturas
construídas pelos chineses na África não obedece à lógica de “corredores de
exportação” e se assemelham mais a investimentos voltados a unificar mercados
internos e inaugurar formas superiores de divisão social do trabalho.
Os esquemas dos investimentos em infraestruturas
chinesas na África cada vez mais obedecem a uma lógica de conexão com a
formação de indústrias. Não se trata de uma benevolência chinesa; algo que não
existe no mundo real. Trata-se de crescentes exigências por parte de seus parceiros
africanos a necessidade de relacionar investimentos em infraestruturas com
industrialização, instalação de zonas econômicas especiais e agregar valor de
matérias-primas na própria África. Vejamos alguns exemplos.
O caso da ferrovia Addis Ababa-Djibouti. Em 2016, o
governo chinês orientar suas empresas públicas e não públicas a instalarem
plantas industriais e zonas econômicas especiais em torno desta ferrovia.
Parques industriais foram instalados em Hawassa, Dire Dawa, Kombolcha e Adama.
As periferias próximas da referida capital etíope estão repletas de instalações
industriais chinesas.
Acordos semelhantes foram assinados com o Quênia no
sentido de transformar o entorno da ferrovia Mombasa-Nairobi em um grande
cluster industrial. A tendência deste tipo de operação é a de se espraiar. Isso
por conta de uma moção conjunta dos líderes africanos à China em 2022 no
sentido de ampliar as relações econômicas no rumo da industrialização do
continente. A resposta chinesa veio em 2023 com o lançamento da Iniciativa Para
a Industrialização Africana com resultados já claros e demarcatórios em relação
ao que colonialismo europeu.
O caso do Zimbábue, um dos países mais sancionados
do mundo, é paradigmático das relações internacionais de novo tipo que a China
tem desenvolvido. O país asiático anunciou investimentos da ordem de US$ 2,7
bilhões em uma planta industrial de exploração e processamento de lítio. Bom
lembrar que, num gesto de afirmação nacional de independência, em 2022 o
Zimbábue proibiu a exportação de lítio in natura o que levou o governo chinês a
se adaptar a novas regras impostas pela referida nação africana.
Por fim, algumas palavras sobre o mito do “debt
trap”. A nosso ver existem três problemas com essa narrativa. O primeiro
problema é que esse mito pressupõe que a China tem amplos poderes para impor,
de forma unilateral, a forma de funcionamento dos projetos envolvendo os
projetos da Iniciativa do Cinturão e da Rota com intenção de obrigar os
signatários a aceitarem esses empréstimos predatórios. Na realidade, o
financiamento chinês para o desenvolvimento é, em grande parte, orientado por
acordos bilaterais; convergindo a uma constatação que relaciona a adaptação
chinesa a projetos nacionais autônomos. Na verdade, os projetos de
infraestrutura são determinados pelo país beneficiário, não pela China, com
base em seus próprios interesses econômicos e políticos.
O segundo problema está na suposição na suposição
de que é um princípio político chinês conceder empréstimos predatórios com
termos e condições onerosos aos países receptores. Na realidade, a China
costuma conceder empréstimos a taxas de juros mais baixas do que as praticadas
por instituições como o FMI e o Banco Mundial. E a tendência, empiricamente
comprovada é a de que, de forma repetida, a China se dispõe a reestruturar os
termos dos empréstimos.
O fato é que em agosto de 2022, o governo chinês
anunciou que estava perdoando 23 empréstimos sem juros em 17 países africanos.
Antes disso, entre 2000 e 2019, a China também havia reestruturado um total de
US$ 15 bilhões em dívidas e perdoado US$ 3,4 bilhões em empréstimos concedidos
a países africanos.
A terceira questão reside no fato de a China nunca
ter confiscado um ativo de um país em razão do não pagamento de suas dívidas.
Casos propalados como os ocorridos no Sri Lanka, Zâmbia e Quênia – três países
que entraram em default – já foram devidamente desmentidos por uma série de
artigos e pesquisas notadamente as capitaneadas pela professora Deborah
Brautgam.
Encerramos dizendo que sim, as relações entre a
China e a África estão longe de serem um mar de rosas onde inexiste a
contradição. Mas como nos ensina a própria filosofia fina alemã, a contradição
move o processo. No caso, as duas partes ao conseguirem saltar de um
desequilíbrio a outro em suas relações poderão legar ao mundo o que já dito
aqui. Relações internacionais de novo tipo.
Fonte: Por Elias Jabbour,
em A Terra é Redonda
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