José Luís Fiori:
América do Sul – um continente partido e tutelado
A história
sul-americana foi sempre condicionada por uma geografia extremamente difícil,
por uma economia fragmentada e voltada para fora, e por uma submissão uma
geografia extremamente difícil, por uma economia quase permanente à tutela
militar da Inglaterra, no século XIX, e dos Estados Unidos, no século XX. E é
possível afirmar, de alguma forma, que até hoje o continente se debate com
esses constrangimentos originários e estruturais.
Uma geografia
partida
O continente sul-americano
está situada entre o Mar do Caribe, ao norte; o Oceano Atlântico, ao leste,
nordeste e sudeste; e o Oceano Pacífico, a oeste. Sua superfície, de 17.819.100
km2, ocupa 12% da Terra e possui 6% da população mundial. Está separado da
América Central pelo Istmo do Panamá; e da Antártida, pelo Estreito de Drake, e
tem uma extensão de 7.500 km desde o Mar do Caribe até o Cabo Horn, no extremo
sul. Cerca de quatro quintos do continente ficam abaixo da Linha do Equador,
que corta Peru, Colômbia, Brasil e o país que leva o nome de Equador.
A América do Sul
possui três grandes bacias hidrográficas: do Rio Orinoco, do Rio Amazonas e do
Rio da Prata, e seus rios interiores possuem enorme potencial para navegação e
aproveitamento de energia hidráulica. Os três sistemas drenam em conjunto uma
área de 9.583.000 km2.
No entanto, o mais
importante, do ponto de vista geopolítico, é que se trata de um espaço
geográfico inteiramente segmentado por grandes barreiras naturais que
dificultam enormemente sua integração física, como é o caso da Amazônia e da
Cordilheira dos Andes, que tem 8 mil Km de extensão e atinge 6.700m de
altitude, oferecendo apenas alguns pontos de passagem naturais. Na região da
Floresta Amazônica, predominam as terras úmidas; na região central do continente,
áreas alagadas, como o Pantanal brasileiro e o Chaco boliviano; mais ao sul, há
planícies e cerrados; e na costa leste, a floresta original cedeu lugar a
agricultura, urbanização e indústria.
O litoral atlântico
é baixo e possui uma larga plataforma marítima, ao contrário do litoral do
Pacífico, que possui grandes profundidades e onde não existem plataformas
continentais. Nos Pampas de Argentina, Uruguai, Paraguai e sul do Brasil,
encontram-se as terras mais férteis do continente e algumas das melhores do
mundo. Existem, ainda, algumas pequenas áreas com bons solos nos vales andinos
e na zona central do Chile, na planície equatoriana de Guayas e no vale
colombiano de Cauca, além das terras roxas, no lado brasileiro da bacia do
Paraná.
Por outro lado, as
terras da bacia Amazônica e a maior parte das planícies tropicais são muito
pobres e de baixa fertilidade, o que explica o fato de que a população das
terras tropicais da Venezuela, Guiana e Suriname viva quase toda a poucos
quilômetros da costa. A combinação de montanhas e florestas tropicais também
limita enormemente as possibilidades de integração econômica dentro do arco de
países que se estende da Guiana Francesa até a Bolívia.
No caso do Peru,
por exemplo, existe uma clara divisão econômica e social em seu território,
entre as zonas costeiras, onde se concentra a atividade extrativa e de
exportação, e um interior extremamente isolado e atrasado economicamente. O
Chile, por sua vez, possui um clima temperado e terras produtivas, mas é um dos
países mais isolados do mundo, o que dificulta sua integração econômica com os
demais países do “cone sul” – Argentina, Uruguai e Brasil – e o transforma
obrigatoriamente numa economia aberta a exportadores, voltada quase
exclusivamente para os EUA e os países asiáticos do Pacífico.
O mesmo se pode
dizer dos demais países sul-americanos. Sua inserção na divisão internacional
do trabalho, na condição de exportadores de commodities, reforçou sua ocupação
econômica e demográfica inicial, dispersa e voltada para o litoral, sempre em
busca dos mercados centrais, e com escasso interesse nos mercados regionais.
Até o final do século XX, o Atlântico foi mais importante do que o Pacífico
para o comércio de largo curso da América do Sul, e a presença de importantes
bacias hidrográficas articuladas ao litoral atlântico, além da maior
proximidade da Europa e dos EUA, desfavoreceu o lado pacífico do continente nos
dois primeiros séculos de sua história independente.
Este panorama
econômico vem mudando no século XXI, com o aumento da importância da bacia do
Pacífico, graças ao deslocamento do centro mais dinâmico da economia mundial
para o Leste e Sudeste Asiático, e à transformação da China no novo dínamo da
economia sul-americana. A “virada” ao Pacífico, entretanto, representa ao mesmo
tempo um desafio e uma ameaça. Desafio pela dimensão financeira do projeto de
integração bioceânica, e ameaça porque o desenvolvimento deste projeto só se
viabilizará com a participação da China, que está sendo definida pelos Estados
Unidos, neste momento geopolítico do mundo, como seu grande competidor
estratégico que deve ser cercado e bloqueado em todos os pontos do sistema
econômico mundial.
·
Uma
história tutelada
Do ponto de vista
geopolítico, entretanto, a América do Sul viveu quase toda a sua história
independente sob a tutela anglosaxônica: primeiro da Grã-Bretanha, até o fim do
século XIX, e depois dos Estados Unidos, até o início do século XXI. Além
disso, durante o século XIX, foi uma zona de experimentação do “imperialismo de
livre comércio” da Grã-Bretanha, e no século XX em particular, depois da 2ª
Guerra Mundial, transformou-se num aliado incondicional da política externa
norte-americana, que promoveu ativamente a redemocratização e o desenvolvimento
do continente na década de 1950.
Nos anos 1960,
entretanto, depois da vitória da Revolução Cubana, os Estados Unidos apoiaram
os golpes de Estado e a formação de governos militares em quase todo o
continente sul-americano. E após o golpe que derrubou o presidente Salvador
Allende no Chile, em 1973, incentivaram a mudança da política econômica dos
governos sul-americanos, que abandonaram – em sua maioria – seu
“desenvolvimentismo” do pós-guerra.
No início dos anos
1980, a política do “dólar forte” do governo americano provocou um forte
desequilíbrio dos balanços de pagamento na América Latina e deu origem à “crise
da dívida externa” que atingiu toda a região, liquidando definitivamente o
modelo desenvolvimentista brasileiro que havia sido o mais bem-sucedido da
região.
A crise se
prolongou por toda a década, mas ao mesmo tempo conviveu com o fim das
ditaduras militares e com o início dos movimentos de redemocratização de quase
todos os países do continente. Mais uma vez, entretanto, os novos governos
democráticos sul-americanos aderiram em conjunto ao projeto da “globalização
liberal” liderado pelos Estados Unidos, e às políticas neoliberais do chamado
“Consenso de Washington”, que produziram sucessivas crises cambiais – no
México, em 1994; na Argentina, em 1999; e no Brasil, em 2001 –, antes de serem
abandonados e substituídos por governos que tentaram levar à frente, durante
uma década, uma agenda experimental antineoliberal, sem deixar de alinhar-se à
estratégia geopolítica global de combate ao terrorismo comandada pelos
norte-americanos.
Relembrando a
história: depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, em Washington e New
York, a política externa norte-americana mudou de rumo, relegando ao segundo
plano as questões econômicas e priorizando o combate global ao terrorismo.
Nesse novo contexto, o governo republicano de George W. Bush manteve seu apoio
ao projeto da ALCA de integração econômica da América do Sul, proposto na
década de 90 pela administração Clinton, mas já sem o entusiasmo das
administrações democratas. Até porque a resistência sul-americana e, em
particular, a oposição do Brasil e da Argentina após 2002, esvaziaram e logo
engavetaram a proposta norte-americana em 2005.
Os EUA mudaram,
então, seu projeto inicial e passaram a negociar tratados comerciais bilaterais
com alguns países do continente. Assim, depois do fracasso das políticas
neoliberais do Consenso de Washington, do abandono do projeto da ALCA e da
desastrosa intervenção norte-americana a favor do golpe militar da Venezuela,
em 2003, os Estados Unidos mudaram sua posição no que se referia aos assuntos
continentais, atraídos cada vez mais pelos novos desafios que vinham da Ásia e
do Oriente Médio, e do avanço da OTAN na direção da Europa do Leste.
Essa tendência se
fortaleceu na segunda década do século XXI, quando o esfacelamento da “ordem
mundial” estabelecida depois da Guerra Fria e a mudança do foco geopolítico
mundial reduziram a quase nada a atenção americana em relação à América do Sul,
o que não impediu que eles apoiassem os golpes de Estado de Honduras, Paraguai
e Brasil durante o governo democrata de Barack Obama.
Na terceira década
do século, entretanto, depois da catástrofe da pandemia de Covid-19 e frente ao
desafio das guerras da Ucrânia e de Gaza, e mais ainda, face ao deslocamento do
eixo dinâmico da economia mundial na direção da Ásia e da China, em particular,
a América do Sul reduziu ainda mais sua importância geopolítica e geoeconômica
no sistema internacional, dividindo-se de cima abaixo frente ao conflito entre
Estados Unidos e Venezuela, e desintegrando-se como um ator geopolítico global.
As vezes de forma
mais lenta, às vezes mais acelerada, algumas mudanças vêm acontecendo no
panorama geopolítico e geoeconômico da América do Sul. Em algumas mudanças vêm
acontecendo no panorama alguns casos, reforçando velhos caminhos e “vocações”
do continente; em outros, abrindo novas perspectivas e oportunidades que
poderão ou não ser aproveitadas pelos 12 países que convivem lado a lado dentro
desse território recortado por tantas barreiras geográficas, e tão próximo dos
Estados Unidos. Destacamos em seguida quatro mudanças que deverão pesar
decisivamente sobre o futuro continental.
·
O
aumento da assimetria sul-americana
Em 1950, os dois
países mais ricos da América do Sul – Brasil e Argentina – tinham mais ou menos
o mesmo PIB, apesar de que os argentinos tivessem uma renda per capita,
homogeneidade social, nível educacional e qualidade de vida extraordinariamente
superiores em relação aos brasileiros. Hoje, setenta anos depois, a situação
mudou radicalmente: se o PIB dos dois países girava em torno de US$ 80 bilhões
em 1950, 70 anos depois, o PIB brasileiro multiplicou 23 vezes e é hoje de
cerca de US$ 2,17 trilhões, enquanto o argentino multiplicou-se apenas oito
vezes no mesmo período, sendo hoje de 640 bilhões de dólares.
Uma assimetria
entre os dois países que tende a aumentar exponencialmente nos próximos anos, e
muito mais ainda entre o Brasil e os demais países sul-americanos. Hoje, o
Brasil já possui metade da população e do produto sul-americano, e é o único país
da região que tem alguma presença no tabuleiro geopolítico internacional.
Depois do Golpe de
Estado de 2016, entretanto, e até 2022, dois sucessivos governos de direita
alteraram radicalmente a política externa, afastando o Brasil de todas as
iniciativas integracionistas na América do Sul, ao mesmo tempo que se alinhava
aos Estados Unidos e à OTAN, frente aos conflitos internacionais fora do
continente. Em 2023, entretanto, o país retomou o rumo anterior de sua política
externa e vem assumindo posições cada vez mais ativas no campo internacional,
no grupo do BRICS, na presidência rotativa do G20 e na liderança mundial da
luta pela sustentabilidade e controle das mudanças climáticas.
No seu próprio
continente, entretanto, o Brasil vem encontrando grandes resistências, que
muito têm a ver com o aumento da assimetria regional, em que o Brasil aparece
hoje como uma espécie de “elefante no meio da sala”.
·
A
expansão da presença chinesa
A segunda grande
transformação da América do Sul, nas primeiras décadas do século XXI, foram o
surgimento e a expansão acelerada do papel da China no desenvolvimento
econômico do continente. Em apenas três décadas, o fluxo comercial entre
América do Sul e China cresceu de US$ 15 bilhões em 2001, para cerca de US$ 300
bilhões em 2019. E o fluxo dos investimentos diretos chineses na região cresceu
e se manteve em torno de US$ 10 bilhões anuais, em média, entre 2011 e 2018.
Brasil, Peru e Argentina receberam a maior parcela desses investimentos até
2022, ficando o Brasil com 22% deste total, incluindo a fabricação de veículos
elétricos, aquisição de ativos de lítio, expansão da Huawei e de outras
empresas chinesas de data centers, computação em nuvem e tecnologia 5G, e em
grande quantidade de infraestrutura elétrica.
Nas duas primeiras
décadas do século XXI, a China também dobrou sua participação nas importações
realizadas pelos países sul-americanos, cujo valor bruto cresceu mais de 700%,
enquanto as exportações brasileiras para a América do Sul, por exemplo, no
mesmo período, cresceram menos de 40% do crescimento chinês. Mesmo durante a
crise econômica de 2008, a participação brasileira no mercado argentino recuou
de 42% para 31,5%, enquanto a participação chinesa subiu de 21,5% para 30,5%. E
o mesmo aconteceu na Venezuela, onde a participação chinesa subiu de 4,4% em
2008, para 11,5% nos quatro primeiros meses de 2009.
Hoje, a China é o
maior parceiro comercial do Brasil, do Chile e do Peru no continente
sul-americano, e está entre os três maiores parceiros comerciais de todos os
países do continente. Só no caso brasileiro, 30,6% de suas exportações em 2023
foram para a China, que foi ao mesmo tempo o maior fornecedor de bens
importados pelo Brasil. E oito países sul-americanos já fazem parte da
iniciativa da Belt and Road chinesa: Argentina, Peru, Bolívia, Chile,
Guiana, Suriname, Uruguai e Venezuela.
Na linguagem
estruturalista clássica, pode-se afirmar que nesse período a China se
transformou no novo “centro cíclico principal” da economia sul-americana. E
hoje, como no passado, o principal interesse dos chineses na América do Sul
segue sendo seus recursos naturais e minerais, apesar de também estarem
participando das grandes licitações governamentais da região. E o cenário para
os próximos anos promete uma oferta excedente de produtos e capitais chineses,
que deve derrubar barreiras e constituir um imenso desafio competitivo para os
capitais norteamericanos e brasileiros.
·
A
nova estratégia norte-americana de “polarização mundial”
A terceira grande
mudança aconteceu no campo das relações da América do Sul com os Estados
Unidos, que nunca abandonaram sua Doutrina Monroe, formulada em 1823 com o
objetivo de combater e expulsar a influência europeia do continente
sul-americano. A diferença é que, no século XIX, esse discurso era contrário aos
interesses das potências coloniais europeias, e favorável à independência de
suas colônias sul-americanas.
Na primeira metade
do século XX, entretanto, a mesma doutrina legitimou a intervenção
norte-americana na América Central e Caribe, para mudar governos e regimes que
eles consideravam contrários aos seus interesses. E na segunda metade do
século, ela voltou a ser utilizada para “proteger” os países da América do Sul,
só que agora contra a “ameaça comunista”, que justificou o apoio
norte-americano a uma sucessão de golpes e regimes militares que liquidaram a
democracia no continente, destruindo ao mesmo tempo sua soberania e seus
projetos autônomos de futuro.
No início do século
XXI, durante a sua “guerra global ao terrorismo”, os Estados Unidos reduziram
seu grau de envolvimento político com os assuntos sul-americanos. Um “déficit
de atenção” que durou até o “desembarque” econômico dos chineses na América do
Sul na segunda década do século, e até o início do conflito entre os Estados
Unidos e a Rússia, na Ucrânia, após o golpe de Estado de 2014.
Desde então, os
Estados Unidos vêm se propondo “repolarizar o mundo” no estilo da Guerra Fria
do século XX, de maneira que os demais países do sistema internacional, e
também da América do Sul, teriam que se posicionar de um lado ou de outro da
“linha vermelha” estabelecida por eles e seus aliado europeus.
·
O
declínio do projeto de integração sul-americano
A maioria dos
países sul-americanos superou o impacto da crise de 2008 mais rapidamente do
que no resto do mundo, graças à grande demanda de seus produtos de exportação
por parte das economias asiáticas, da China em particular, que sustentaram as
quantidades e os preços das commodities sul-americanas num nível extremamente
elevado.
Mas este sucesso de
curto prazo provocou um efeito inesperado em toda a América do Sul, ao
aprofundar, de forma paradoxal, as velhas dificuldades enfrentadas desde sempre
pelo projeto de integração econômica da América do Sul. Basta dizer que, na
América do Norte, o comércio intrarregional é da ordem de 40% do seu comércio
global; na Ásia, de 58%; e na Europa, de 68%; enquanto na América do Sul, mal
chega aos 18%.
·
Os
caminhos do futuro
Dividida em blocos,
e com a maior parte dos países separados ou distantes do Brasil, por conta do
contencioso venezuelano, a América do Sul deverá se manter na sua condição
tradicional de periferia econômica do sistema internacional, mesmo
diversificando e ampliando seus mercados na direção da Ásia. Para não ser
assim, o Brasil terá que assumir a “liderança material” do continente,
construindo uma estrutura produtiva que combine indústrias de alto valor
agregado e tecnologias de ponta, com a produção de alimentos e commodities de
alta produtividade, mantendo sua condição de grande produtor de energia tradicional
e “energia limpa”.
Neste caso, o
Brasil poderá mudar o rumo da região, transformando-se na sua “locomotiva
econômica”, por cima das divergências políticas e ideológicas que hoje dividem
e imobilizam um continente que – sem o Brasil – não tem a menor relevância
geopolítica dentro do Sistema Mundial.
Neste ponto,
entretanto, não há como enganar-se: o Brasil enfrentará nos próximos anos uma
concorrência acirrada e um boicote explicito do governo de Donald Trump que
considera que a única relevância da América do Sul é pertencer ao “quintal dos
Estados Unidos”.
Fonte: Jornal GGN
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