Rudá Ricci:
Democracia Brasileira – de negócio em negócio
Soube do livro
de Leonardo Weller e Fernando Limongi, Democracia
negociada, pelo podcast Fórum de Teresina. A maneira de chegar ao
livro já diz muito porque não foi nas prateleiras de uma livraria ou indicação
de acadêmicos que cheguei até ele.
O livro trata do
período que vai do final da ditadura
militar à queda
de Dilma Rousseff. É uma obra de historiografia, embora um dos autores
seja um conhecido cientista político.
O livro
de Limongi e Weller se constitui numa ilustração da
encruzilhada que vive a sociologia brasileira. Até o final do século passado,
grande parte da produção sociológica voltava-se para a leitura dos pares, do
reconhecimento técnico e capacidade teórica do autor. Já no século 21, ficou
patente que ser reconhecido pelos pares não bastava. De certa maneira, porque a
carreira meteórica acadêmica e a produção em série em revistas especializadas
banalizaram as pesquisas e alteraram as ambições na carreira.
A partir daí,
muitos sociólogos passaram a escrever de maneira mais palatável, cortar os
excessos em citações (o que, pela ética acadêmica, é demonstração de
humildade), a adotar títulos e capas chamativas para se conectar com o grande
público, para além dos muros das universidades e think tanks muito
especializados.
Democracia
Negociada é um livro que fica no meio do caminho entre a sociologia do
passado e a do presente. O primeiro capítulo é quase um texto paradidático, não
trazendo nada de novo à ampla bibliografia que retratou e teorizou o fim
da ditadura militar. Os resumos ao final de cada capítulo reforçam o didatismo
perseguido pelos autores. Mas, na medida em que o livro avança na cronologia,
fica mais denso, embora evite o tempo todo a teorização.
Acaba por dar a
impressão que se trata de uma produção que se limita
ao mainstream das produções sobre a recente história
política do Brasil.
O livro não faz
referências às teorias contemporâneas e, em alguns momentos (como no capítulo
5) esta ausência é sentida. Ao menos uma rápida citação das tipologias de
partidos, como catch-all ou cartel, auxiliariam o leitor a
compreender a dinâmica atual do PT, por exemplo.
Contudo, os
registros que apresentam e a organização de uma certa linha interpretativa da
política nacional dos últimos 40 anos ajudam, e muito, a entendermos algumas
das confusões de interpretação que povoam as redes sociais de tempos em tempos.
A primeira tese
importante dos autores sobre o sistema político brasileiro que, sustentam, foi
uma sucessão de arranjos consensuais entre as elites a partir do fim da
ditadura militar até a segunda década do século 21. Em outras palavras, “apesar
de o Brasil ser desigual e violento, consumido por uma longa lista de
injustiças sociais, o embate aberto não pautou a arena política responsável por
organizar e gerir o Estado na Nova
República”.
Segundo a avaliação dos autores, este foi justamente o auge da democracia
nacional: anos 1990 a 2010.
Também ressaltam o
que muitos relutam em
admitir: DEM, PL, PSL e PP foram os verdadeiros
herdeiros da ditadura militar, além de “boa parcela conservadora do
próprio MDB”. Formaram o Centrão no interior da Assembleia
Constituinte de 1987. O Centrão, portanto, sempre foi um “Arenão”.
Por seu turno,
a Constituinte de 87 só superou impasses porque um colegiado de
líderes do “Arenão” e do PMDB negociaram acordos que mantiveram um
enorme poder do presidente da República – introduzido no regime
militar – e esboçou um estado de bem-estar social, ainda que genérico.
A Nova
República foi, assim, um arranjo conciliador que não rompeu totalmente com
a herança autoritária da ditadura militar e que, eu acrescentaria,
tem em Lula um dos seus
fiéis garantidores.
O livro retrata os
jogos entre PFL e PMDB, e a ofensiva destrutiva
do PFL na Constituinte. Cita um caso que acompanhei de perto: o
embate na Subcomissão de Reforma Agrária. Edson Lobão resistiu
ao anteprojeto redigido pelo relator Oswaldo Lima Filho (ex-ministro
de João Goulart). Acabou por aprovar um substitutivo que inverteu a lógica
da reforma agrária. O livro não cita, mas houve até “sumiço” de constituinte
progressista, substituído por um outro, conservador, para obter maioria da
direita na subcomissão.
Os autores destacam
todo o imbróglio para elaborar a redação sobre a superação do famigerado
decreto-lei, tão empregado pelos ditadores militares. A saída foi um achado
da Constituição italiana de 1947: a medida provisória (MP).
Ao analisarem o
período FHC, os autores sugerem que o fim da inflação fortaleceu o PSDB e
o empurrou para o centro-direita, dado o apoio que passaram a receber de
políticos conservadores. Fortaleceu a aliança PSDB-PFL, uma coligação que
passou a representar “o establishment político
da redemocratização” e, ainda, acabou por dar início à lenta caminhada
do PT rumo ao centro.
Weller e Limongi avaliam
que desde 1994, o PMDB se tornou uma “federação de partidos
estaduais”, presente no jogo das definições políticas nacionais, mas sem
condições de apresentar um nome popular e apoiado por todos seus caciques.
Para mim, os dois
últimos capítulos são os mais instigantes e provocadores. São os capítulos
dedicados aos governos do PT. Os autores destacam o papel de Zé
Dirceu em toda mudança no final do primeiro governo Lula e o
conflito com o governo Dilma.
Começa destacando
que1994 é o início da ascensão de Zé Dirceu, responsável pelas mais
profundas mudanças na lógica petista. A guinada ao centro começou com a
ampliação do arco de alianças, como sabido. Em 1998,
o PT apoiou Garotinho ao governo do RJ, à revelia do
diretório estadual do partido, uma prática intervencionista que se repetiria ao
longo do país. O apoio, segundo os autores, causou estragos no PT RJ,
algo que até hoje não parece ter sido superado.
O segundo movimento
nítido ao centro foi a inclusão de José Alencar na chapa
de Lula em 2002. Dirceu afirmou que esta inclusão provocou uma
“guerra total” no interior do partido.
Os autores
apresentam outro fator nesta mudança de rumos do PT a partir do
governo Lula: o que Lazzarini denominou de “capitalismo de
laços” ou a inserção de petistas no mundo corporativo estatal via fundos de
pensão.
A ascensão
de Dilma Rousseff é descrita neste livro como poucas vezes li com
tanta clareza. Do PDT foi para o governo gaúcho do PT e,
na Casa Civil do governo Lula, enfrentou a política de
austeridade (próxima do que Haddad tenta emplacar atualmente) com a
frase “gasto público é vida”.
Como ministra
da Casa Civil, após queda de Zé Dirceu e Palocci em
meio aos ataques e acusações relativos ao mensalão e crise econômica, Dilma
liderou a expansão fiscal. Jorge Zelada, lembram os autores, comandava
a Diretoria Internacional da Petrobrás por indicação de Eduardo
Cunha, dentro da acomodação do PMDB que o
governo Lula procurava sustentar. Esta seria a diretoria-chave da
acusação de esquemas de corrupção e alvo da Operação Lava Jato.
Temer foi
outro personagem importante, dentre outros fatores, por comandar
o PMDB e catapultar Eduardo Cunha à política nacional para
enfrentar seu desafeto, Renan Calheiros.
O percurso
de Dilma de ministra à Presidente é retratado como de permanente
conflito com Zé Dirceu. O mesmo conflito se deu com Temer, em que o
líder peemedebista dançou um bolero desajeitado até se tornar companheiro de
chapa na reeleição da ex-ministra.
Aliás, uma citação
de Luiz Felipe de Alencastro sugere que já se previa o desastre. O
historiador afirmava que a presidente seria uma pessoa sem voo próprio na
esfera nacional tendo um vice experiente no comando da máquina partidária
do PMDB.
O fato é
que Dilma eleita Presidente foi todo o tempo obstinada na luta contra
qualquer foco de corrupção que afastou gradativamente Lula de seu
círculo político e a isolou dos acordos de garantia de governabilidade.
Vários ministros
de Lula foram perdendo seus cargos na gestão Dilma, muitos, por
denúncias de corrupção divulgadas pela grande imprensa: Wagner
Rossi (PMDB, Agricultura), Alfredo Nascimento (PR,
Transporte), Palocci (Casa Civil, PT), Alfonso
Florence (MDA, PT), Orlando Silva (Esportes, PcdoB)
e Carlos Lupi (Trabalho, PDT).
Emplacou uma faxina
na Petrobrás, afetando diretamente a liderança e a “reserva de mercado”
de Eduardo Cunha. Além de paladina da
anticorrupção, Dilma emplacou no seu governo expoentes petistas sem
as bençãos do comando central do partido: escolheu Gleisi
Hoffman para a Casa Civil e Ideli Salvatti para Relações
Institucionais.
2013 foi o ano da
virada. E não exatamente em função das manifestações
de junho.
Este foi o ano em que começou a tramitar a PEC do orçamento
impositivo, obrigando o governo a liberar as emedas parlamentares,
enfraquecendo o Executivo.
Foi o ano em que a
economia dava sinais de caminhar para a recessão, levando o governo a congelar
preços administrados, como o da energia.
Foi o ano em
que Lula, segundo relato publicado no livro, se queixou mais
frequentemente do estilo de governar de Dilma.
Foi o ano em que um
ministro passou a ser odiado pelos partidos aliados, incluindo o PT: José
Eduardo Martins Cardozo, ministro da Justiça que apoiava a ofensiva
do Ministério Público.
O segundo mandato
de Dilma radicalizou nas arestas já existentes no primeiro mandato. A
indicação de Levy foi o desastre maior. Levy era diretor
do Bradesco, cargo que assumiu depois de trabalhar no FMI e
integrar o governo FHC e o primeiro governo Lula, na Secretaria
do Tesouro, quando foi apelidado de “Levy mãos de tesoura”.
Tudo piorou com a
prisão de Delcídio do Amaral em meio à ofensiva da Lava Jato.
Líder do governo no Senado, a prisão indicava que ninguém
no Congresso Nacional tinha segurança naquele momento.
Em outra
frente, Sérgio
Moro avançava
sobre Lula, o que “acelerou uma aproximação entre Dilma e Lula” que gerou
o convite para Lula assumir a Casa Civil. Com Lula proibido
pelo STF de assumir o
cargo, PMDB e PSDB decidiram pelo impeachment de Dilma
Rousseff. Segundo os autores, a percepção dos dois partidos é que “enquanto o
PT ocupasse o poder, não havia meio de parar o Ministério Público Federal. A
única saída seria substituir Dilma por Temer”.
Weller e Limongi sustentam
que “o acerto entre os caciques do PSDB e PMDB, movido pelo medo
da Lava Jato, foi o grande divisor de águas na consecução
do impeachment”.
“Sob fogo pesado
da Lava
Jato,
o PMDB deixou oficialmente o governo em abril, levando consigo demais
partidos da base. O PSD foi o último a sair, com Kassab pedindo
demissão da pasta das Cidades literalmente na antevéspera da votação
do impeachment na Câmara”, sustentam.
Como se percebe,
para os autores, o impeachment teve como fatores principais a crise
econômica e as investigações da Lava Jato, que se associaram ao claro
objetivo de Dilma Rousseff em protagonizar a “faxina ética” na
política nacional. O que diz muito sobre a política nacional e sobre nós,
brasileiros.
¨ O que muda nas nossas análises com a extrema-direita.
Por Jung Mo Sung
Com o segundo
mandato de Trump e
esse avanço
da extrema-direita em
várias partes do mundo, vale a pena pensarmos o uso desse conceito
“extrema-direita”. Após a derrocada do bloco comunista, muitos ideólogos do
bloco ocidental pensaram que com a vitória, para uns a vitória final do
capitalismo, não faria mais sentido usar o conceito
de “esquerda e direita”. Afinal, não haveria mais alternativa.
Entretanto, Norberto
Bobbio,
um pensador liberal, publicou um texto que se tornou clássico, Direita
e esquerda: razões e significados de uma distinção política (Ed. Unesp,
1995). Após afirmar que “não houve apenas esquerda comunista, houve também, e
há ainda, uma esquerda no interior do horizonte capitalista” (p. 10), ele disse
que ser esquerda é ser uma pessoa ou movimento “cujo empenho político seja
movido por um profundo sentimento de insatisfação e de sofrimento perante as
iniquidades das sociedades contemporâneas” (p. 24). E, para ele, a direita é
aquele setor da sociedade que “considera que as desigualdades entre os homens
são não apenas inelináveis (ou são elimináveis apenas com o sufocamento da
liberdade) como são também úteis, na medida em que promovem a incessante luta
pelo melhoramento da sociedade" (p. 20).
É nessa
diferenciação ético-filosófico-política que Bobbio recuperou essa
diferenciação entre a esquerda e a direita. Esta diferença trabalha com uma
metáfora de linha em que teríamos um centro, a esquerda e a direita; razão pela
qual se fala também de centro-esquerda e o centro-direita; e, por fim, a extrema-esquerda e a extrema-direita.
Uma alternativa a
essa estrutura de classificação de esquerda e direita poderia ser, como foi
muito usado também no passado, a diferença entre
os progressistas e conservadores. Para uns, a noção de progresso
(sem separar o progresso tecnológico e as mudanças sociais) seria um caminho do
melhoramento da sociedade e civilização; enquanto que conservadores,
reconhecendo a importância da evolução tecnológica, defendem valores sociais e
morais tradicionais. O problema da defesa da noção de “progresso” e dos
progressistas é que há progressos tecnológicos e mudanças sociais modernas que
desumanizam e ferem os direitos dos que não conseguem acompanhar o ritmo do
progresso. Isto é, não temos claro que classificação é o mais apropriado para o
nosso tempo.
Assim, mantendo a
questão da justiça social como o critério de discernimento, voltemos ao tema
da esquerda/direita e extrema-direita. A pergunta é: a diferença
entre a direita e a extrema-direita é só uma questão “quantitativa”, isto é, um
movimento à direção da ponta extrema dentro da mesma linha, ou se há uma
mudança “qualitativa” que mostra que a extrema-direita está fora desta
linha esquerda/direita, que vem do mundo moderno.
Como
disse Bobbio, a “tradicional
direita”
defendia os seus valores e suas propostas políticas afirmando que eles promovem
melhor “a incessante luta pelo melhoramento da sociedade”. Nessa noção de
melhoramento da sociedade todos seres humanos eram reconhecidos como iguais,
pelos menos diante da lei. Com a declaração da ONU sobre os direitos
humanos universais e
o aumento do consenso internacional em torno dessa declaração, ocorreu um
deslocamento dessa linha no campo político: não somente os cidadãos de um determinado
país seriam iguais frente às leis desse país, mas os direitos
humanos passaram a ser direitos de todas pessoas. Por exemplo, mesmo que a
legislação de um determinado país não reconhecesse os direitos de pessoas
homossexuais de formarem uma família, muitos movimentos sociais defenderam e
até exigiram mudanças legais em nome dos direitos humanos. Ou então,
defender o direito de viver dos pobres, os que não são consumidores e,
portanto, sem direito de comprar os bens no mercado, de viver e, por isso, pedir/exigir
programas sociais.
<<< Essa
nova e forte aliança entre
a) os
neoliberais, que defendem o mercado livre (livre de intervenções do Estado
com seus programas sociais),
b) os
“conservadores” (os que, em nome da religião ou da tradição moral, são contra
mudanças que geram igualdade de todos seres humanos) e
c) autoritários
ou neofascistas (que são contra a democracia, isto é, igualdade de todos no
campo social e político) mudou ou está mudando o tabuleiro onde se jogam as
relações de poder no mundo. E o “manual” de como jogar nesse tabuleiro não pode
ser o antigo, seja o da teoria de classes, seja o de identidade (gênero, raça,
sexualidade, etnia...) que foi sendo gestado nos últimos decênios.
A extrema-direita
não admite a existência dos direitos humanos, nega civilidade nos debates
políticos ou nas redes sociais, assim como inverte os ensinamentos fundamentais
nos livros sagrados (por ex., Bíblia ou Sutra de Buda). Assim, eu penso
que devemos reconhecer que, com a extrema-direita, o jogo mudou, pois há uma
diferença fundamental entre a direita tradicional e
a extrema-direita. Isso complexifica as nossas análises e lutas.
Fonte: IHU
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