quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Rita Coitinho: Venezuela - está puída a corda que amarra o gigante

Ninguém duvida da qualidade da formação dos quadros profissionais da política externa do Brasil, especialmente em temas como direito internacional e história. Mas os fatos mostram que conhecer história nem sempre coincide com a mobilização do conhecimento para a construção da estratégia política. A condução da política externa brasileira no tema da Venezuela é, sem sombra de dúvida, um exemplo do que acontece quando se opta por virar as costas ao acúmulo histórico. O Brasil, pela primeira vez desde a aberrante posição assumida em 1965 por Castelo Branco (que levou o país a participar da ignominiosa invasão da República Dominicana, atendendo a uma vontade dos Estados Unidos), decidiu ignorar solenemente um princípio caro à política latino-americana em relação à Venezuela: o princípio da não-ingerência em assuntos internos.

A obra de Gordon Connel-Smith sobre o sistema interamericano, a que já me referi outra vez nessa seção de colunas (CONNEL-SMITH, Gordon. El Sistema Interamericano. Fondo do Cultura Económica: México D.F., 1982), reconstitui a história do “sistema interamericano”, composto pela Organização dos Estados Americanos e outras instituições a ela articuladas, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ao longo dos anos, como mostra o estudo, o sistema de conferências proposto pelos EUA, que surgiu como consequência prática da Doutrina Monroe, foi ganhando amarras jurídicas construídas pela engenhosidade dos juristas latino-americanos, com destaque para os mexicanos, que enxergavam a criação dessas amarras ao intervencionismo dos EUA como condição para a sobrevivência de seu país, que sofrera duras perdas territoriais no século XIX para seu vizinho mais forte.

Smith compara a ação das diplomacias latino-americanas ao Ariel de Rodó, enquanto os Estados Unidos seriam o Calibã. Na obra do Uruguaio José Enrique Rodó, Ariel é um personagem que representa o que há de positivo na natureza humana (a beleza, o espírito, o cosmopolitismo) e Calibã é a alegoria do utilitarismo, tão forte nos Estados Unidos, expressão de um pensamento mesquinho, muitas vezes agressivo, responsável pela redução das capacidades criativas da mente humana.

Enquanto Calibã buscou estabelecer um sistema de conferências a fim de consolidar seu controle sobre as políticas nacionais dos países do continente, Ariel procurou utilizar o mecanismo a seu favor. Assim é que na constituição do sistema interamericano, na medida em que esses países se consolidavam internamente, foram nascendo iniciativas que procuravam imprimir algum tipo de controle ao expansionismo e ao intervencionismo dos EUA.

Após uma “primeira fase” em que as conferências serviam como espaço no qual as nações latino-americanas buscavam obter ajuda econômica dos EUA, iniciou-se um segundo momento, a partir da administração de Franklin D. Roosevelt, que, premido pelas necessidades impostas pela nova divisão do mundo do pós-Segunda Guerra, aceitou as demandas latino-americanas de firmar um pacto de não-intervenção.

O que o governo Roosevelt fazia era renunciar à intervenção armada unilateral – prática adotada livremente pelos EUA até então. Mas, aos olhos dos negociadores dos países latino-americanos, a não-intervenção implicava muito mais do que a mera abstenção de enviar mariners norte-americanos: significava avançar em um sistema jurídico que impusesse amarras a qualquer tipo de intervenção em assuntos internos, tanto militar quanto política. Nesse sentido, a constituição da OEA, num primeiro momento, obedeceu muito mais aos interesses dos latino-americanos do que propriamente aos desejos dos EUA. O papel do México na Nona Conferência Internacional de Estados Americanos (Bogotá, 1948), onde foi criada a OEA, merece destaque. A Constituição da OEA foi em grande medida orientada pelo documento proposto pela delegação mexicana que tinha como principal meta impedir o estabelecimento de um Conselho Interamericano de Defesa proposto pelos EUA, que buscavam um instrumento de legitimação de ações hemisféricas intervencionistas, já preparando-se para os desafios de enfrentamento à influência da URSS. Nesse sentido, a existência das Nações Unidas e o papel da OEA, criada como uma agência regional vinculada ao programa das Nações Unidas, foi um forte golpe à essência isolacionista da ideia de “hemisfério ocidental” que era até então propugnada pelos EUA.

O fato é que os EUA saíram da Segunda Guerra como uma das “superpotências” e como o mais forte das duas. Isso tornou ainda mais evidente o desequilíbrio de poder no sistema interamericano, mesmo com as amarras criadas juridicamente. Os EUA aceitavam compromissos e formavam alianças fora do hemisfério, e a existência do Conselho de Segurança da ONU e a condição de membro permanente dos EUA sublinhavam a diferença nos assuntos internacionais entre os EUA e os países da América Latina.

Com o recrudescimento das hostilidades da Guerra Fria, os EUA passaram a comprometer-se com outras regiões do mundo, passando a dar pouca importância à América Latina no que se refere à ajuda econômica. O interesse dos EUA no continente nessa etapa restringia-se a evitar o espraiamento do “comunismo”. O país norte-americano assume então uma política agressiva e retoma sua diretriz intervencionista, derrubando o governo de Jacobo Árbenz na Guatemala e, a partir de 1959, passando a preocupar-se com a contenção da revolução cubana e dos seus possíveis reflexos no continente. Nesse contexto, a ajuda econômica passou a ser condicionada ao apoio político. Os latino-americanos voltaram a ter em seu horizonte a possibilidade de intervenção dos EUA, algo muito mais tangível na realidade continental do que o comunismo internacional. A intervenção na República Dominicana, em 1965, é um exemplo. Articulada como uma “intervenção coletiva” do sistema interamericano, a ação promovida pelos EUA para derrubar o governo nacionalista, considerado “pró-soviético”, contou com os militares brasileiros, logo após o golpe militar que pôs fim a um governo eleito que levava adiante uma política externa universalista que afastava o Brasil da lógica da Guerra Fria.

Esse é o contexto em que as diplomacias dos países latino-americanos, sempre conduzidas por governos de corte autonomista, buscaram criar “salvaguardas jurídicas” a fim de reduzir a legitimidade das intervenções unilaterais dos EUA. Foi o meio encontrado pelos latino-americanos para fazer frente ao poder enorme da maior potência mundial. Dentre as diversas amarras que se buscou criar – às quais os EUA buscam escapar por meio de ações “coletivas”, como o foi a invasão à República Dominicana – os princípios de não-intervenção e não-ingerência em assuntos internos são o principal mecanismo. Na alegoria de Gordon Connel-Smith, por meio desses princípios, “como anões de Lilliput, [os países latino-americanos] trataram de atar ao Gulliver que representa os EUA como uma enorme massa de nós jurídicos”.

E esses nós, embora não tenham sido capazes de frear completamente o intervencionismo dos EUA, trazem-lhe problemas. Não foi à toa que os EUA impediram a criação de uma Corte de Justiça Interamericana e criaram problemas até mesmo para a criação da Corte interamericana de Direitos Humanos. Não foi por menos que buscaram por todos os meios uma condenação a Cuba no âmbito da OEA – o que levou à exclusão da Ilha do sistema depois de uma batalha diplomática intensa em que o Brasil levava uma excelente posição, sempre argumentando pela não-ingerência. Com o passar dos anos e o fim da Guerra Fria, o tema da ingerência dos EUA nas políticas internas dos países do continente segue sendo a principal fonte de problemas.

Considerado como pedra angular nas relações exteriores dos países latino- americanos, esse tema sempre retorna ao debate hemisférico quando instituem-se governos que de algum modo contrariam os interesses dos EUA. Em 2002, quando participaram da armação que resultou no sequestro de Hugo Chávez e na tentativa de tomada de poder na Venezuela – interrompida pela imediata reação popular e das forças armadas do país sul-americano -, os EUA ao mesmo tempo em que apressaram-se em reconhecer o governo golpista, jamais assumiram sua participação. O Brasil, na época, buscou uma solução de mediação, formando o grupo de amigos da Venezuela a fim de prestar apoio a uma solução negociada.

Muito diferente é a posição que o Brasil assumiu nos episódios recentes. De “mediador” de um acordo entre governo e oposição venezuelanos, o governo do Brasil passou a reivindicar o papel de juiz eleitoral. Com isso, não apenas põe em questão a vitória do PSUV no processo eleitoral, como atreve-se a duvidar do poder judiciário do país vizinho. O que o Brasil propõe? Impor uma justiça eleitoral estrangeira? Capturar para si o tribunal eleitoral da Venezuela? Nada disso é proposto, é claro, porque não seria factível. Mas, então, qual é a saída?

O Brasil coloca-se numa posição dificílima e indefensável. A única defesa possível da posição brasileira parte do princípio de que não-ingerência em assuntos internos é página virada da diplomacia latino-americana. E, se assim é, nada mais pode impedir que em um futuro muito próximo as próprias eleições brasileiras sejam questionadas, assim como sua justiça eleitoral – tal qual fazem certos partidos nacionais que estão, por sinal, engendrados nas investigações sobre a tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023. Se não se pode atribuir a frágil posição brasileira ao desconhecimento das origens históricas da adesão inegociável dos países latino-americanos aos princípios de não-intervenção e não-ingerência, a que se pode atribuir? Deixo a resposta ao arguto leitor.

 

¨      Novo mandato de Maduro sinaliza vitória do mundo multipolar e anti-imperialista, opinam analistas

O terceiro mandato do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, que tomou posse na última sexta-feira (10), prova que o projeto anti-imperialista e de soberania nacional dos governos bolivarianos ganhou fôlego, segundo estudiosos ouvidos pela Sputnik Brasil.

Ao podcast Mundioka, o professor de história e diretor da Associação Cultural José Martí do Rio de Janeiro, Luiz Eduardo Mergulhão, declarou que a vitória de Maduro é também dos movimentos sociais e setores de esquerda comprometidos com uma mudança revolucionária, principalmente com a resistência anti-imperialista.

Segundo ele, após anos de cerco e tentativa de boicote pelos governos de Donald Trump e Joe Biden, a Venezuela respira e espera que o processo revolucionário não apenas resista, como também siga em frente.

"O crescimento produtivo, a produção econômica, o PIB [produto interno bruto], ele está crescendo", afirmou. "Se combinar transformação econômica, maior presença do Estado, maior presença da população organizada, eu acho que a gente pode ter uma surpresa bem positiva para a Venezuela construindo um novo modelo de sociedade."

Mergulhão acrescentou que Maduro demonstra um movimento de aprofundamento do diálogo com a parte da oposição não violenta e não vinculada aos EUA, e do projeto da Revolução Bolivariana do poder comunal.

"O poder comunal é aquele exercido pelas comunidades. Então, mais do que nunca, é necessário que esse poder comunal seja aprofundado. É preciso, fundamentalmente, neste mundo multipolar, que a Venezuela avance nessa construção política e econômica do chamado socialismo no século XXI", comentou o historiador.

A estabilização econômica e social no país deve permitir o avanço dos processos anunciados por Maduro para transformações até 2030, como diversificação econômica, expansão da doutrina bolivariana e combate à crise climática.

Outro entrevistado do programa, o professor Roberto Santana Santos, da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), engrossou o coro sobre a importância da Venezuela no processo geopolítico da região.

Doutor em políticas públicas e mestre em história política, Santos afirmou que a Revolução Bolivariana é um marco histórico divisor de águas do século XXI.

"Ele inaugura toda essa sucessão de governos progressistas, mais ou menos à esquerda, desde o comecinho do século, e se mantém como, de todos esses governos, aquele que tem uma proposta mais radicalizada, que tem uma proposta realmente revolucionária, de superação do capitalismo, de construção de outras formas de sociabilidade. E, com isso, ele pauta, em parte, a região tanto para aqueles que o apoiam quanto para aqueles que são seus detratores", defendeu Santos.

O professor acrescentou que a crise de desabastecimento de alimentos foi sanada no país, e o desemprego e a inflação, anteriormente na casa dos 300%, 400%, vêm caindo.

"A Venezuela, nos últimos dois anos, foi o país latino-americano que mais cresceu", argumentou, ao atribuir o crescimento ao incremento de parcerias comerciais para burlar as sanções, como China, Rússia, Irã e Turquia.

Santos também mencionou que a vitória de Maduro lança luz sobre a debilidade da oposição no país, "fragmentada e sem musculatura social", que responde a uma burguesia interna que passou o século XX apenas exportando petróleo e concentrando riqueza.

As lideranças da oposição são efêmeras, agregou, devido a essa debilidade econômica e política, além das lutas internas entre eles, que impedem uma unidade e uma ação contundente contra o governo bolivariano.

"Essa oposição vive de apoios internacionais, principalmente dos Estados Unidos, e isso causa […] rachas e dissensões justamente porque eles brigam para ser o principal interlocutor dos Estados Unidos dentro da Venezuela", defendeu.

A estatização do petróleo, há cerca de 25 anos, mudou esse panorama ao repartir com a população os recursos por meio de projetos sociais e obras de infraestrutura, entre outros. Trata-se de uma burguesia que está presente no comércio, na venda de bens duráveis, mas não é produtiva, frisou.

"Por isso que eles recorrem sistematicamente à violência, a atentados terroristas, a pedidos de intervenção militar estrangeira no próprio país e, rapidamente, suas alianças internas são desfeitas conforme o ciclo eleitoral termina e não conseguem apresentar força para disputar politicamente o país."

<><> Venezuela e BRICS

A entrada da Venezuela no BRICS, na opinião dos entrevistados, torna-se premente para fortalecer o mundo multipolar, e a Rússia e a China devem pressionar o grupo para que isso ocorra.

"A entrada da Venezuela pode ser adiada, mas será detida, porque há uma necessidade por parte da China, da Rússia, da própria articulação do BRICS de contar com a Venezuela no BRICS. Isso vai ser feito com ou sem o apoio do Brasil", disse Santos ao recordar que o Brasil foi contra a entrada da Venezuela no grupo na Cúpula de Kazan, em 2024.

Para Mergulhão, as relações que estão sendo costuradas pelos três países prometem abalar a estrutura mundial, "porque é um novo campo de relações, de países que se propõem a construir relações externas, relações econômicas muito diferenciadas das tradicionalmente defendidas pelos Estados Unidos e pela União Europeia".

A Venezuela tem a primeira reserva de petróleo a nível mundial e representa em torno de 24% das reservas da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), tipo de riqueza de grande valia para os Estados Unidos, ponderaram os entrevistados.

"A Chevron, uma importante petroleira americana, tem autorização para atuar na Venezuela. [Tem] autorização tanto do governo venezuelano quanto do governo americano. Os Estados Unidos continuam comprando petróleo venezuelano", lembrou Santos.

A demonstração do futuro presidente dos EUA, Donald Trump, de enfraquecer as uniões do Sul Global pode fazer com que o Brasil se reaproxime da Venezuela, após as relações ficarem abaladas com as eleições no país bolivariano.

"A presença e ofensiva do Trump vai obrigar esses setores, esses governos progressistas, com todas as suas diferenças, a tentar aprofundar essa integração."

Santos vai além e defende que, para o Brasil alcançar a tão almejada liderança regional, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva deve se aproximar de aliados como a Venezuela, com visão regional semelhante.

 

Fonte: Opera Mundi/Sputnik Brasil

 

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