Rita
Coitinho: Venezuela - está puída a corda que amarra o gigante
Ninguém duvida da qualidade da formação dos quadros profissionais da
política externa do Brasil, especialmente em temas como direito internacional e
história. Mas os fatos mostram que conhecer história nem sempre coincide com a
mobilização do conhecimento para a construção da estratégia política. A condução
da política externa brasileira no tema da Venezuela é, sem sombra de dúvida, um
exemplo do que acontece quando se opta por virar as costas ao acúmulo
histórico. O Brasil, pela primeira vez desde a aberrante posição assumida em
1965 por Castelo Branco (que levou o país a participar da ignominiosa invasão
da República Dominicana, atendendo a uma vontade dos Estados Unidos), decidiu
ignorar solenemente um princípio caro à política latino-americana em relação à
Venezuela: o princípio da não-ingerência em assuntos internos.
A obra de Gordon Connel-Smith sobre o sistema interamericano, a que já
me referi outra vez nessa seção de colunas (CONNEL-SMITH, Gordon. El Sistema Interamericano. Fondo
do Cultura Económica: México D.F., 1982), reconstitui a história do “sistema
interamericano”, composto pela Organização dos Estados Americanos e outras
instituições a ela articuladas, como a Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Ao longo dos anos, como mostra o estudo, o sistema de conferências
proposto pelos EUA, que surgiu como consequência prática da Doutrina Monroe,
foi ganhando amarras jurídicas construídas pela engenhosidade dos juristas
latino-americanos, com destaque para os mexicanos, que enxergavam a criação
dessas amarras ao intervencionismo dos EUA como condição para a sobrevivência
de seu país, que sofrera duras perdas territoriais no século XIX para seu
vizinho mais forte.
Smith compara a ação das diplomacias latino-americanas ao Ariel de Rodó,
enquanto os Estados Unidos seriam o Calibã. Na obra do Uruguaio José Enrique
Rodó, Ariel é um personagem que representa o que há de positivo na natureza
humana (a beleza, o espírito, o cosmopolitismo) e Calibã é a alegoria do
utilitarismo, tão forte nos Estados Unidos, expressão de um pensamento
mesquinho, muitas vezes agressivo, responsável pela redução das capacidades
criativas da mente humana.
Enquanto Calibã buscou estabelecer um sistema de conferências a fim de
consolidar seu controle sobre as políticas nacionais dos países do continente,
Ariel procurou utilizar o mecanismo a seu favor. Assim é que na constituição do
sistema interamericano, na medida em que esses países se consolidavam
internamente, foram nascendo iniciativas que procuravam imprimir algum tipo de
controle ao expansionismo e ao intervencionismo dos EUA.
Após uma “primeira fase” em que as conferências serviam como espaço no
qual as nações latino-americanas buscavam obter ajuda econômica dos EUA,
iniciou-se um segundo momento, a partir da administração de Franklin D.
Roosevelt, que, premido pelas necessidades impostas pela nova divisão do mundo
do pós-Segunda Guerra, aceitou as demandas latino-americanas de firmar um pacto
de não-intervenção.
O que o governo Roosevelt fazia era renunciar à intervenção armada
unilateral – prática adotada livremente pelos EUA até então. Mas, aos olhos dos
negociadores dos países latino-americanos, a não-intervenção implicava muito
mais do que a mera abstenção de enviar mariners norte-americanos: significava
avançar em um sistema jurídico que impusesse amarras a qualquer tipo de
intervenção em assuntos internos, tanto militar quanto política. Nesse sentido,
a constituição da OEA, num primeiro momento, obedeceu muito mais aos interesses
dos latino-americanos do que propriamente aos desejos dos EUA. O papel do
México na Nona Conferência Internacional de Estados Americanos (Bogotá, 1948),
onde foi criada a OEA, merece destaque. A Constituição da OEA foi em grande
medida orientada pelo documento proposto pela delegação mexicana que tinha como
principal meta impedir o estabelecimento de um Conselho Interamericano de
Defesa proposto pelos EUA, que buscavam um instrumento de legitimação de ações
hemisféricas intervencionistas, já preparando-se para os desafios de
enfrentamento à influência da URSS. Nesse sentido, a existência das Nações
Unidas e o papel da OEA, criada como uma agência regional vinculada ao programa
das Nações Unidas, foi um forte golpe à essência isolacionista da ideia de
“hemisfério ocidental” que era até então propugnada pelos EUA.
O fato é que os EUA saíram da Segunda Guerra como uma das
“superpotências” e como o mais forte das duas. Isso tornou ainda mais evidente
o desequilíbrio de poder no sistema interamericano, mesmo com as amarras
criadas juridicamente. Os EUA aceitavam compromissos e formavam alianças fora
do hemisfério, e a existência do Conselho de Segurança da ONU e a condição de
membro permanente dos EUA sublinhavam a diferença nos assuntos internacionais
entre os EUA e os países da América Latina.
Com o recrudescimento das hostilidades da Guerra Fria, os EUA passaram a
comprometer-se com outras regiões do mundo, passando a dar pouca importância à
América Latina no que se refere à ajuda econômica. O interesse dos EUA no
continente nessa etapa restringia-se a evitar o espraiamento do “comunismo”. O
país norte-americano assume então uma política agressiva e retoma sua diretriz
intervencionista, derrubando o governo de Jacobo Árbenz na Guatemala e, a
partir de 1959, passando a preocupar-se com a contenção da revolução cubana e
dos seus possíveis reflexos no continente. Nesse contexto, a ajuda econômica
passou a ser condicionada ao apoio político. Os latino-americanos voltaram a
ter em seu horizonte a possibilidade de intervenção dos EUA, algo muito mais
tangível na realidade continental do que o comunismo internacional. A
intervenção na República Dominicana, em 1965, é um exemplo. Articulada como uma
“intervenção coletiva” do sistema interamericano, a ação promovida pelos EUA
para derrubar o governo nacionalista, considerado “pró-soviético”, contou com
os militares brasileiros, logo após o golpe militar que pôs fim a um governo
eleito que levava adiante uma política externa universalista que afastava o
Brasil da lógica da Guerra Fria.
Esse é o contexto em que as diplomacias dos países latino-americanos,
sempre conduzidas por governos de corte autonomista, buscaram criar
“salvaguardas jurídicas” a fim de reduzir a legitimidade das intervenções
unilaterais dos EUA. Foi o meio encontrado pelos latino-americanos para fazer
frente ao poder enorme da maior potência mundial. Dentre as diversas amarras
que se buscou criar – às quais os EUA buscam escapar por meio de ações
“coletivas”, como o foi a invasão à República Dominicana – os princípios de
não-intervenção e não-ingerência em assuntos internos são o principal mecanismo.
Na alegoria de Gordon Connel-Smith, por meio desses princípios, “como anões de
Lilliput, [os países latino-americanos] trataram de atar ao Gulliver que
representa os EUA como uma enorme massa de nós jurídicos”.
E esses nós, embora não tenham sido capazes de frear completamente o
intervencionismo dos EUA, trazem-lhe problemas. Não foi à toa que os EUA
impediram a criação de uma Corte de Justiça Interamericana e criaram problemas
até mesmo para a criação da Corte interamericana de Direitos Humanos. Não foi por
menos que buscaram por todos os meios uma condenação a Cuba no âmbito da OEA –
o que levou à exclusão da Ilha do sistema depois de uma batalha diplomática
intensa em que o Brasil levava uma excelente posição, sempre argumentando pela
não-ingerência. Com o passar dos anos e o fim da Guerra Fria, o tema da
ingerência dos EUA nas políticas internas dos países do continente segue sendo
a principal fonte de problemas.
Considerado como pedra angular nas relações exteriores dos países
latino- americanos, esse tema sempre retorna ao debate hemisférico quando
instituem-se governos que de algum modo contrariam os interesses dos EUA. Em
2002, quando participaram da armação que resultou no sequestro de Hugo Chávez e
na tentativa de tomada de poder na Venezuela – interrompida pela imediata
reação popular e das forças armadas do país sul-americano -, os EUA ao mesmo
tempo em que apressaram-se em reconhecer o governo golpista, jamais assumiram
sua participação. O Brasil, na época, buscou uma solução de mediação, formando o
grupo de amigos da Venezuela a fim de prestar apoio a uma solução negociada.
Muito diferente é a posição que o Brasil assumiu nos episódios recentes.
De “mediador” de um acordo entre governo e oposição venezuelanos, o governo do
Brasil passou a reivindicar o papel de juiz eleitoral. Com isso, não apenas põe
em questão a vitória do PSUV no processo eleitoral, como atreve-se a duvidar do
poder judiciário do país vizinho. O que o Brasil propõe? Impor uma justiça
eleitoral estrangeira? Capturar para si o tribunal eleitoral da Venezuela? Nada
disso é proposto, é claro, porque não seria factível. Mas, então, qual é a
saída?
O Brasil coloca-se numa posição dificílima e indefensável. A única
defesa possível da posição brasileira parte do princípio de que não-ingerência
em assuntos internos é página virada da diplomacia latino-americana. E, se
assim é, nada mais pode impedir que em um futuro muito próximo as próprias
eleições brasileiras sejam questionadas, assim como sua justiça eleitoral – tal
qual fazem certos partidos nacionais que estão, por sinal, engendrados nas
investigações sobre a tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023. Se
não se pode atribuir a frágil posição brasileira ao desconhecimento das origens
históricas da adesão inegociável dos países latino-americanos aos princípios de
não-intervenção e não-ingerência, a que se pode atribuir? Deixo a resposta ao
arguto leitor.
¨ Novo mandato de Maduro sinaliza vitória do mundo
multipolar e anti-imperialista, opinam analistas
O terceiro mandato
do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, que tomou posse na última
sexta-feira (10), prova que o projeto anti-imperialista e de soberania nacional
dos governos bolivarianos ganhou fôlego, segundo estudiosos ouvidos pela
Sputnik Brasil.
Ao podcast
Mundioka, o professor de história e diretor da Associação Cultural José Martí
do Rio de Janeiro, Luiz Eduardo Mergulhão, declarou que a vitória de Maduro é também dos movimentos sociais e
setores de esquerda comprometidos com uma mudança revolucionária,
principalmente com a resistência anti-imperialista.
Segundo ele, após
anos de cerco e tentativa de boicote pelos
governos de Donald Trump e Joe Biden, a Venezuela respira e espera que o
processo revolucionário não apenas resista, como também siga em frente.
"O crescimento
produtivo, a produção econômica, o PIB [produto interno bruto], ele está
crescendo", afirmou. "Se combinar transformação econômica, maior
presença do Estado, maior presença da população organizada, eu acho que a gente
pode ter uma surpresa bem positiva para a Venezuela construindo um novo modelo
de sociedade."
Mergulhão
acrescentou que Maduro demonstra um movimento de aprofundamento do diálogo com
a parte da oposição não violenta e não vinculada aos EUA, e do projeto da
Revolução Bolivariana do poder comunal.
"O poder
comunal é aquele exercido pelas comunidades. Então, mais do que nunca, é
necessário que esse poder comunal seja aprofundado. É preciso,
fundamentalmente, neste mundo multipolar, que a Venezuela avance nessa
construção política e econômica do chamado socialismo no século XXI",
comentou o historiador.
A estabilização
econômica e social no país deve permitir o avanço dos processos anunciados por
Maduro para transformações até 2030, como diversificação econômica, expansão da
doutrina bolivariana e combate à crise climática.
Outro entrevistado
do programa, o professor Roberto Santana Santos, da Faculdade de Educação
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), engrossou o coro sobre a
importância da Venezuela no processo geopolítico da região.
Doutor em políticas
públicas e mestre em história política, Santos afirmou que a Revolução
Bolivariana é um marco histórico divisor de águas do século XXI.
"Ele inaugura
toda essa sucessão de governos progressistas, mais ou menos à esquerda, desde o
comecinho do século, e se mantém como, de todos esses governos, aquele que tem
uma proposta mais radicalizada, que tem uma proposta realmente revolucionária,
de superação do capitalismo, de construção de outras formas de sociabilidade.
E, com isso, ele pauta, em parte, a região tanto para aqueles que o apoiam
quanto para aqueles que são seus detratores", defendeu Santos.
O professor
acrescentou que a crise de desabastecimento de alimentos foi sanada no país, e
o desemprego e a inflação, anteriormente na casa dos 300%, 400%, vêm caindo.
"A Venezuela,
nos últimos dois anos, foi o país latino-americano que mais cresceu",
argumentou, ao atribuir o crescimento ao incremento de parcerias comerciais
para burlar as sanções, como China, Rússia, Irã e Turquia.
Santos também
mencionou que a vitória de Maduro lança luz sobre a debilidade da oposição
no país, "fragmentada e sem musculatura social", que responde a uma
burguesia interna que passou o século XX apenas exportando petróleo e
concentrando riqueza.
As lideranças da
oposição são efêmeras, agregou, devido a essa debilidade econômica e política,
além das lutas internas entre eles, que impedem uma unidade e uma
ação contundente contra o governo bolivariano.
"Essa oposição
vive de apoios internacionais, principalmente dos Estados Unidos, e isso causa
[…] rachas e dissensões justamente porque eles brigam para ser o principal
interlocutor dos Estados Unidos dentro da Venezuela", defendeu.
A estatização
do petróleo, há cerca de 25 anos, mudou esse panorama ao repartir com a
população os recursos por meio de projetos sociais e obras de infraestrutura,
entre outros. Trata-se de uma burguesia que está presente no comércio, na venda
de bens duráveis, mas não é produtiva, frisou.
"Por isso que
eles recorrem sistematicamente à violência, a atentados terroristas, a pedidos
de intervenção militar estrangeira no próprio país e, rapidamente, suas
alianças internas são desfeitas conforme o ciclo eleitoral termina e não
conseguem apresentar força para disputar politicamente o país."
<><> Venezuela
e BRICS
A entrada da
Venezuela no BRICS, na opinião dos entrevistados, torna-se premente para
fortalecer o mundo multipolar, e a Rússia e a China devem pressionar
o grupo para que isso ocorra.
"A entrada da
Venezuela pode ser adiada, mas será detida, porque há uma necessidade por parte
da China, da Rússia, da própria articulação do BRICS de contar com a Venezuela
no BRICS. Isso vai ser feito com ou sem o apoio do Brasil", disse Santos
ao recordar que o Brasil foi contra a entrada da Venezuela no grupo na Cúpula
de Kazan, em 2024.
Para Mergulhão, as
relações que estão sendo costuradas pelos três países prometem abalar a
estrutura mundial, "porque é um novo campo de relações, de países que se
propõem a construir relações externas, relações econômicas muito diferenciadas
das tradicionalmente defendidas pelos Estados Unidos e pela União
Europeia".
A Venezuela tem
a primeira reserva de petróleo a nível mundial e representa em torno
de 24% das reservas da Organização dos Países Exportadores de
Petróleo (OPEP), tipo de riqueza de grande valia para os Estados Unidos, ponderaram os
entrevistados.
"A Chevron,
uma importante petroleira americana, tem autorização para atuar na Venezuela.
[Tem] autorização tanto do governo venezuelano quanto do governo americano. Os
Estados Unidos continuam comprando petróleo venezuelano", lembrou Santos.
A demonstração do
futuro presidente dos EUA, Donald Trump, de enfraquecer as uniões do Sul
Global pode fazer com que o Brasil se reaproxime da Venezuela, após as relações
ficarem abaladas com as eleições no país bolivariano.
"A presença e
ofensiva do Trump vai obrigar esses setores, esses governos progressistas, com
todas as suas diferenças, a tentar aprofundar essa integração."
Santos vai além e
defende que, para o Brasil alcançar a tão almejada liderança regional, o
governo de Luiz Inácio Lula da Silva deve se aproximar de aliados como a
Venezuela, com visão regional semelhante.
Fonte: Opera Mundi/Sputnik
Brasil
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