quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Fernando Nogueira da Costa: Exploração do trabalho na era digital

Karl Marx argumentava, talvez inadequadamente diante a evolução posterior do sistema capitalista, o trabalho improdutivo – contratado por capital improdutivo em atividades sem gerar mercadorias tangíveis e, em consequência, sem participar do processo de produção de mais-valia –, ao contrário do trabalho produtivo, não gerar riqueza real para a sociedade. Ele sim extrairia riqueza da “verdadeira” classe trabalhadora.

Ele via essa distinção como parte da exploração inerente ao sistema capitalista. Nele, a classe dominante se apropriaria do trabalho excedente dos trabalhadores produtivos por meio de diversas atividades consideradas improdutivas.

Naturalmente, veio à minha mente a seguinte questão: como se sustenta sua Teoria do Valor-Trabalho diante a 4ª. Revolução Tecnológica? Agora, os robôs, a automação e as plataformas não estão dando adeus ao proletariado industrial?

Para responder, Luiz Gonzaga Belluzzo, meu professor no mestrado da Unicamp, sugeriu-me reler os Grundrisse por meio do Apêndice 2, “Conhecimento, Tecnologia e o Intelecto Geral em seu Fragmento sobre Máquinas”, do livro Reading Marx in The Information Age. Explora a relevância das ideias de Marx na Era Digital.

O estudioso marxista Christian Fuchs auxilia os leitores a entenderem se a obra de Karl Marx é adequada à Era da informação. Para ele, o “Fragmento sobre Máquinas” antecipou o papel crucial do conhecimento, da ciência e da tecnologia na produção, particularmente na Era Digital, onde plataformas como Google, Facebook, YouTube etc. dependem do trabalho digital dos usuários.

O autor usa o conceito de Marx de trabalho produtivo, porque o trabalho dos usuários nessas plataformas, embora não assalariado, contribui para a acumulação de capital. Os usuários geram dados vendidos como mercadoria para anunciantes, tornando-se parte do trabalho produtivo na economia digital.

Christian Fuchs discute como os custos de transporte, incluindo o transporte de ideologias comercializadas através da mídia, são parte do processo de produção. A mídia comercial “transporta” ideologias para os consumidores, e nas mídias sociais, o trabalho dos usuários sustenta a entrega direcionada de anúncios.

Ele analisa a seção “Capital e o Desenvolvimento das Forças Produtivas da Sociedade” dos Grundrisse. Nesta seção, Marx descreve a tecnologia como capital constante fixo, representando o “intelecto geral” da sociedade. Teria, então, antecipado a importância crescente da ciência e do conhecimento na produção, mais tarde chamada de “revolução científica e tecnológica” da Era Digital.

Uma divisão internacional do trabalho digital envolve trabalhadores em diferentes partes do mundo. A produção de dispositivos digitais, a criação de conteúdo e a coleta de dados são parte dessa divisão internacional do trabalho digital.

Conclui os Grundrisse de Marx serem fundamentais para entender o trabalho digital e o capitalismo digital. Destaca o papel do trabalho do usuário na economia digital, o conceito de “intelecto geral” e a relevância da teoria do valor de Marx.

A questão de se a Teoria do valor-trabalho de Marx ainda se aplica na Era Digital, especialmente considerando o trabalho digital não remunerado por assalariamento, realizado por trabalhadores autônomos, é complexa e central para o debate sobre a obra marxista. Embora Christian Fuchs defenda a continuidade de sua relevância, a resposta não é um “sim” categórico. Há nuances nessa relação.

Esse autor argumenta o trabalho digital, mesmo não remunerado, ser produtivo no sentido marxista, pois contribui para a acumulação de capital por empresas como Facebook e Google. A criação de dados e conteúdos pelos usuários se torna uma mercadoria vendida a anunciantes, gerando valor e lucro para essas plataformas.

Isso o sugere a lógica da exploração do trabalho como fonte de valor continuar operante, mesmo em contextos digitais e com formas de trabalho não tradicionais. Apesar disso, o próprio autor reconhece a relevância do debate em torno da validade da teoria do valor-trabalho na era digital, pois autores com argumentos racionais questionam sua aplicabilidade.

Entre eles, está a dificuldade de mensuração do valor em atividades imateriais e a crescente importância do trabalho cooperativo, de natureza colaborativa, e do conhecimento social. Problematizam a centralidade do tempo de trabalho individual como medida de valor. Essa contraposição destaca a necessidade de um debate aprofundado sobre como (e se) a teoria do valor-trabalho é possível de ser adaptada ou reinterpretada para abarcar as complexidades do trabalho digital.

O conceito de trabalho imaterial tem sido alvo de críticas especialmente por adeptos da tradição marxista. Uma das principais críticas reside na acusação desse conceito incorrer em um idealismo filosófico.

Opondo-se a uma ontologia dualista de separação do mundo em substâncias material e imaterial, os críticos defendem todo trabalho, incluindo o digital, possuir uma base material ao depender de corpos, infraestruturas físicas e consumo de energia. A ênfase na imaterialidade obscureceria a materialidade do trabalho e das relações de produção.

Outra crítica aponta para o risco de determinismo tecnológico presente na noção de trabalho imaterial. Ao enfatizar a importância do intelecto geral e da tecnologia, o conceito levaria a uma visão com superestimativa do papel das forças produtivas na superação do capitalismo com uma re-evolução sistêmica e negligenciaria a importância da ação política consciente e das lutas sociais.

A crítica marxista dogmática defende a transição utópica para o comunismo não ser um resultado automático do desenvolvimento tecnológico, mas sim exigir a organização e a luta dos trabalhadores. Além disso, os marxistas criticam a noção de trabalho imaterial por se concentrar em trabalhadores privilegiados do setor de alta tecnologia e ignorar a exploração de trabalhadores em condições precárias, como trabalhadores domésticos e até mesmo trabalhadores escravizados.

Imaginam a revolução vir da superexploração ao invés da organização política. A crítica visa ampliar a compreensão do trabalho na Era Digital para além de uma perspectiva restrita aos países desenvolvidos e ao trabalho intelectualizado.

A questão inicial era se a lei do valor se torna inaplicável em face do trabalho imaterial. Os marxistas dizem a dificuldade em mensurar o valor do trabalho imaterial não implicar na sua inexistência ou irrelevância. A lógica da exploração, da extração de valor a partir do trabalho, permanece operante, mesmo quando os mecanismos de mensuração precisam ser repensados.

Christian Fuchs reconhece a importância dessas críticas. Ele defende uma concepção materialista do trabalho cultural e digital, capaz de reconhecer a necessidade de infraestruturas e de trabalho físico, a exploração presente em diferentes setores da produção digital e a importância da luta política para a superação da exploração.

A proposta de Christian Fuchs busca integrar as dimensões materiais e imateriais do trabalho na Era Digital, sem negligenciar as relações de poder e exploração por ainda permearem a produção e a circulação de informação. No entanto, não escapa da crítica de haver determinismo histórico na obra de Marx.

O determinismo aparece por um argumento de tipo negativo – no proletariado se concentra a máxima alienação, miséria e degradação. Portanto, fazer a revolução seria a única saída possível, para quem não tem nada a perder. É o caso hoje?

Mas aparece também por um argumento de tipo positivo. Apenas o proletariado era, para Marx, inteiramente ligado à organização da produção moderna. Portanto, era o único organizado para iniciar uma possível sociedade futura. Sem sindicatos?

Afinal, não houve o “adeus ao proletariado” nas complexas relações entre trabalho, tecnologia e capital no século XXI?

A ideia do “adeus ao proletariado”, popularizada por André Gorz, refere-se à tese de as transformações tecnológicas, especialmente a automação e a digitalização, reduzirem ou eliminarem o papel central da classe trabalhadora (proletariado) na produção capitalista. Contudo, no século XXI, a análise das relações entre trabalho digital, tecnologia e capital revela esse “adeus” ainda não ter ocorrido plenamente. O proletariado não desapareceu, mas passou por transformações profundas.

O trabalho digital e a automação reconfiguraram as relações capitalistas, mas o sistema, em última instância, ainda depende da exploração do trabalho humano, seja ele digital, manual ou intermediário. Quem viver verá até quando…

 

¨      Governo Lula e a espada de Dâmocles do mercado. Por Luís Nassif

Como temos alertado há tempos, o atual modelo monetário-fiscal é insustentável. O país está em contagem regressiva para a volta, ao país, do grande estadista Sr. Crise, o único capaz de romper o nó górdio do modelo.

Trata-se de aritmética simples.

A falta de qualquer instrumento de regulação do mercado de câmbio permitiu a formação de um cartel capaz de jogar o governo no corner. Antes disso, o terrorismo midiático em relação à gastança, e um pânico em relação ao estouro modesto do teto da meta inflacionária, levou o Copom (Comitê de Política Monetária) a aumentar a taxa Selic em um ponto e anunciar mais dois aumentos, o que elevará a taxa real para perto de 10%.

A estabilização da dívida/PIB é o principal indicador de solvência do país. Quando a taxa real é semelhante ao crescimento do PIB, a receita cresce compensando a rolagem da dívida. Quando o custo real da dívida é superior ao crescimento do PIB (e das receitas fiscais), exige-se um superávit maior para meramente equilibrar a relação dívida/PIB.

Quando o custo real da dívida é MUITO maior que o crescimento esperado do PIB, o superávit fiscal tem que alcançar níveis inimagináveis. Hoje em dia, nem 3% de superávit primário conseguiria estabilizar o crescimento da dívida. Ou seja, não há quadratura do círculo possível.

Ontem, o Departamento Econômico de um grande banco comercial trouxe o seguinte diagnóstico:

“O arcabouço fiscal perdeu credibilidade como âncora para a evolução das contas públicas e, mesmo se cumprido estritamente, não é capaz de gerar trajetórias fiscais sustentáveis no médio prazo, a menos que haja uma alta ainda mais significativa das receitas (…) Uma melhora sustentada das condições financeiras só ocorreria com uma perspectiva de trajetória mais equilibrada da dívida à frente, dizem os analistas”.

Há dois caminhos óbvios. O primeiro, é abrir espaço para medidas administrativas que reduzem o custo do carregamento da dívida. O segundo é reduzir incentivos fiscais a setores e aumentar a tributação dos setores mais rentáveis.

Mas a proposta é sempre no campo das despesas:  “Uma iniciativa viável nessa direção seria a redução, já para 2025, do limite superior do crescimento real anual das despesas primárias, de 2,5% para 1,5%, acompanhada de medidas complementares que dêem consistência e credibilidade ao anúncio. (…) No cenário base, mesmo sob o cumprimento das regras do arcabouço, a dívida pública crescerá, em média, 4 pp do PIB por ano, alcançando 85% do PIB em 2026”.

A economia está totalmente vulnerável aos movimentos especulativos do mercado. Dias atrás, um dos principais operadores do mercado – André Esteves, do BTG – previu um dólar a 7 reais. E a pressão cambial se dá através de operações no mercado futuro, onde não entram dólares. Uma ação eficaz de agências reguladoras, estrategicamente elaborada, poderia colocar um fim nessa esbórnia.

Em um modelo totalmente fincado em expectativas, e com a cartelização no processo de formação de expectativas pela parceria mídia-mercado, cria-se o quadro da profecia autorrealizada.

Nos próximos meses, os efeitos da alta do câmbio se refletirão na inflação. Criada a primeira onda, o mercado agitará o câmbio e aumentará a grita contra a gastança, exigindo mais juros, mais Selic.

Com parte relevante do orçamento nas mãos do Congresso, com o lobby de grupos empresariais para manter privilégios fiscais, com o custo do dinheiro escalando e abortando o crescimento do PIB, qual a conclusão lógica? Ampliação do desgaste político do governo e aceleração da contagem regressiva para uma nova crise.

A dúvida relevante é a seguinte: o governo está preparando uma estratégia para esse momento? A estratégia deveria ter duas vertentes. Uma, o lançamento de um Plano de Metas que consolide as duas principais passagens para o futuro: os planos da transição energética e na NIB (Nova Indústria Brasil). Outra, a montagem de estratégias para enfrentar o furacão que se aproxima.

Há um país novo sendo construído, sim, com institutos de pesquisa, investimentos em novas tecnologias, startups, uma estrutura potente de pesquisa e inovação, sistemas robustos de apoio às pequenas e microempresas.

Falta o maestro pegar a batuta e começar a virada.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Jornal GGN

 

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