Parentes de
acusados pela morte de Rubens Paiva acumulam milhões de seguidores nas redes
A Agência
Pública analisou parentescos dos militares denunciados pela morte de
Rubens Paiva e encontrou três parentes que fazem sucesso nas redes sociais e
acumulam milhões de seguidores. Nenhum deles trata de política ou faz menção
aos antepassados em suas contas – a não ser quando provocados por seguidores –,
e a associação a essas pessoas chega a ser motivo de vergonha.
A mais famosa é
Alexandra Burnier, mais conhecida como Lelê Burnier, que tem mais de 4 milhões
de seguidores no Instagram e Tiktok. Ela ganhou fama postando vídeos de “get
ready with me”, ou “arrume-se comigo”, em que mostra como escolhe roupas e
acessórios para ir a eventos – as peças geralmente são de grife.
Com o sucesso do
filme “Ainda Estou Aqui”, internautas repararam que ela tem o mesmo sobrenome
do Brigadeiro João Paulo Burnier, um dos envolvidos na morte de Paiva. Burnier
comandava o quartel da 3ª Zona Aérea da Aeronáutica, para onde ele foi levado
em 20 de janeiro de 1971 e sofreu as primeiras torturas. Além de Paiva,
Burnier também é relacionado a outros episódios de assassinato, como o de
Stuart Angel, e a pelo menos duas tentativas de golpe.
Burnier é
considerado um dos militares mais linha-dura do regime. Ele foi descrito pelo
Brigadeiro Eduardo Gomes, em uma carta endereçada ao ex-presidente Ernesto Geisel,
como “um insano mental inspirado por instintos perversos sanguinários, sob o
pretexto de proteger o Brasil do perigo comunista”.
O militar era o
chefe do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA), que
integrava o sistema de repressão do regime. Uma das cenas do filme mostra
agentes da CISA invadindo a casa da família Paiva no Dia de São Sebastião,
feriado no Rio de Janeiro. O ex-deputado foi levado num carro enquanto outros
agentes permaneceram na casa até o dia seguinte, quando Eunice
Paiva e
a filha Eliana, então com 15 anos, também foram presas.
Paiva permaneceu
algumas horas no quartel comandado por Burnier, sendo interrogado e torturado.
Depois foi enviado a uma unidade do Exército, onde sofreu as últimas violências
que levaram à sua morte.
Uma mulher que
esteve presa no local ouviu que Paiva, enquanto agonizava, repetia várias vezes
o seu próprio nome, soletrando o sobrenome do meio, Beyrodt, de acordo com o
relato de Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado, no livro que deu origem
ao filme. Um médico que o atendeu e constatou ruptura do fígado também contou
que Paiva disse apenas duas palavras antes de morrer: Rubens Paiva. Apesar do
esforço para ser identificado, o corpo de Paiva nunca foi localizado.
Apenas em 2014, a
Comissão da Verdade do governo federal, que analisou crimes da ditadura, traçou
uma linha
do tempo sobre
o que aconteceu com o ex-deputado federal e apontou os autores de seu
assassinato e desaparecimento.
Burnier também foi
um dos líderes da revolta de Aragarças, contra o então presidente Juscelino
Kubitschek. Em dezembro de 1959, homens da Aeronáutica sequestraram quatro
aviões (sendo um comercial, da Panair, que levava passageiros do Rio a
Manaus) e pretendiam bombardear os palácios das Laranjeiras e do Catete,
no Rio. A revolta não recebeu apoio e foi sufocada em 36 horas. Este foi,
aliás, o primeiro
caso de sequestro de
avião do Brasil. Burnier se exilou na Bolívia até 1961. Quando voltou ao país,
não recebeu nenhuma punição.
Burnier também foi
apontado como autor do plano que pretendia estourar bombas em diversos lugares
do Rio de Janeiro, inclusive no Gasômetro de São Cristóvão na hora
do rush e na Represa de Ribeirão das Lajes – o que poderia causar
dezenas de milhares de mortos e destruir parte do abastecimento de água da
cidade. Os ataques serviriam para encobrir sequestros e assassinatos de 40
autoridades, como Kubitschek e Carlos Lacerda. Tudo isso seria atribuído a
movimentos de esquerda como justificativa para endurecer o regime.
O plano não foi
para frente porque foi denunciado pelo capitão Sérgio Ribeiro Miranda de
Carvalho, que se recusou a cumprir as ordens, ecuja versão foi corroborada por
outras 37 testemunhas. Nada aconteceu a Burnier, mas sim a Carvalho, que foi
processado e depois do AI-5, reformado.
Burnier ainda é
lembrado por outra morte emblemática: a de Stuart Angel Jones, que foi morto
dentro da Base Aérea do Galeão, que estava sob seu comando, poucos meses depois
de Paiva. Stuart Angel foi amarrado com a boca no escapamento de um jipe e
arrastado pelo pátio da unidade militar. Sua mãe, Zuzu Angel, passou os
próximos anos denunciando a morte do filho – cujo corpo também nunca foi
encontrado. Ela morreu em um acidente de trânsito em 1976, meses depois de
denunciar que estava recebendo ameaças de morte. Há relatos de que seu carro
foi fechado por outro e forçado a sair da pista.
Lelê Burnier nunca
havia falado sobre o parente militar até ser questionada por centenas de
seguidores quando o filme de Walter Salles estourou nos cinemas, nos últimos
meses de 2024. Usuários pesquisaram o parentesco, que foi confirmado
pela Agência Pública – e foram tirar satisfação nos perfis da
influenciadora, pedindo para ela “fazer um get ready with me para ir assistir
‘Ainda estou aqui’”.
Após alguns dias,
Lelê falou sobre o parentesco em um comentário. “Não tenho contato com meu pai
nem com a minha família por parte de pai. Meus pais são separados desde que eu
tinha um ano de idade, e minha mãe, meus avós e meu padrasto me criaram. As
únicas coisas que meu pai já pagou para mim foram meu colégio e minha
faculdade, nem presente de aniversário eu ganhava. Essa é a única e última vez
que eu falo sobre isso”, ela disse. A Pública também a procurou, que
não respondeu até a publicação desta reportagem.
Denunciados pela
morte de Paiva recebem aposentadorias altas do Exército
Outra
influenciadora que foi questionada por ter o mesmo sobrenome de um denunciado
pela morte de Rubens Paiva é Raquel Belham, que tem cerca de 500 mil seguidores
e faz vídeos sobre a própria vida. O parentesco dela é distante: o general José
Antônio Nogueira Belham era primo da sua avó. Ainda assim, recebeu uma série de
ataques.
Ela gravou um vídeo
em resposta. “A gente divide o mesmo sobrenome, apenas isso. Ele é uma
ramificação da minha árvore genealógica, ele não faz parte dos meus
ascendentes, não faz parte do meu núcleo familiar. Nunca tive contato, nunca
encontrei”, disse.
“Eu sempre soube,
vocês me contaram como se fosse uma novidade. Vieram me contar: ‘Olha, você não
sabe quem é da sua família’. Gente, eu sei. Eu só não tenho contato, nunca
encontrei. Não tenho o que fazer em relação a isso”, continuou. “Eu não tenho
responsabilidade sobre os atos dos meus irmãos, eu vou ter sobre o primo da
minha avó?.”
À Pública,
Raquel agradeceu o contato, mas disse que não tem o que comentar.
O general Belham é
um dos poucos denunciados pela morte de Paiva que ainda estão vivos – três dos
cinco já faleceram. Ele recebe R$ 35,9 milpor mês e tem a patente de marechal,
uma honraria dada a oficiais do Exército que tiveram atuação considerada
excepcional. Na época do crime, ele era comandante do Destacamento de Operações
e Informações (DOI) do 1º Exército, onde Paiva teria morrido.
Em 2003, a esposa
de Belham foi assessora
parlamentar do
ex-presidente Jair Bolsonaro enquanto era deputado federal. Bolsonaro tem um
longo histórico com a família Paiva: ele passou a infância em Eldorado, cidade
onde os Paiva tinham fazendas. Jaime Paiva, avô de Rubens, era dono de muitas
terras e foi prefeito duas vezes. Segundo a BBC, Bolsonaro
costumava roubar mexerica dos pomares de Jaime, que se incomodava e colocou um
vigia e um cachorro de guarda para guardar as árvores.
Mais tarde, já na
política, Bolsonaro declarou que Rubens Paiva não morreu em sessão de tortura e
chegou a cuspir no busto inaugurado em sua homenagem na Câmara Federal. “Rubens
Paiva teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!”, ele disse na
ocasião.
Os irmãos Jacy e
Jurandyr Ochsendorf e Souza, que atuavam no DOI-CODI e também foram denunciados
pelo Ministério Público Federal (MPF) pela morte de Paiva, também têm
descendentes influentes nas redes. Jacy ainda está vivo e recebe R$ 23,4 mil
como major reformado.
O advogado
criminalista Alex Sandro Ochsendorf, especialista em crimes militares, é de um
ramo da família derivado do avô dos denunciados. Ele tem mais de 100 mil
seguidores no Instagram e comenta casos jurídicos da Baixada Santista.
“Nunca tive contato
com os irmãos Jacy e Jurandyr, em verdade consegui contato com filhos e netos
deles, mas apenas pelas mídias sociais”, afirma. “Jacy e Jurandyr são cariocas.
Na parte paulista da família não se comenta muito, alguns sequer sabem desse
episódio.”
Como advogado,
porém, ele tem uma opinião sobre o caso Rubens Paiva. E é a de que seus
parentes e os outros denunciados ainda poderiam ser responsabilizados. “A
anistia de 1979 abrange os crimes cometidos entre 1961 e 1979, logo, tiveram a
interpretação de que essa lei beneficiaria torturadores do regime militar.
Particularmente eu discordo, porque a lei não fala expressamente os crimes de
homicídio e tortura. Pela Constituição, tortura é um crime imprescritível”.
“Além disso, o
Estado declarou que Rubens Paiva foi morto e o crime de ocultação de cadáver é
permanente, ou seja, os responsáveis pelo desaparecimento do corpo de Rubens
Paiva ainda hoje podem ser responsabilizados”, continua.
Processo sobre o
caso foi retomado no STF
O processo da
denúncia contra cinco militares pela morte de Rubens Paiva foi oferecido em
2014 e estava sem movimentação desde 2018, mas foi retomado em novembro
do ano passado, mesmo mês em que o filme estreou nos cinemas. A ação corre no
Supremo Tribunal Federal (STF). A defesa dos acusados afirma que os crimes
seriam abarcados pela Lei da Anistia e o MPF argumenta que, por serem crimes
contra a imunidade, não poderiam ser anistiados.
“O Estado e a
sociedade devem debater sobre as responsabilidades políticas e históricas dos
torturadores e das instituições oficialmente envolvidas nas práticas
criminosas”, afirma Ricardo Oliveira, professor de Sociologia da Universidade
Federal do Paraná.
Especialista em
genealogia, ele também defende que é importante entender como o passado se
reflete no presente. “As vidas cotidianas das famílias, os espaços sociais,
residências, parques, piscinas, boas comidas, bons empregos, boas carreiras,
bons soldos, boas pensões militares para filhas, boas vidas em um lado, e do
outro lado a violência, tortura, destruição e morte de pessoas, violências
contra trabalhadores e opositores. De que maneira os privilégios obtidos pela
tortura e crimes contra os direitos humanos podem ser usufruídos sem críticas e
sem exposição?”, pergunta.
Fonte: Por
Amanda Audi, da Agencia Pública
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