Golpes em
redes sociais levam a prisão por tráfico de imigrantes nos EUA
Quando Justin Persinger
conheceu uma mulher em um supermercado na cidade de San Antonio, no Texas,
Estados Unidos (EUA), ele estava sem dinheiro e dormindo no sofá da casa de um
amigo. Depois do flerte, a moça perguntou se ele estaria interessado em ganhar
um dinheiro extra buscando algumas pessoas na fronteira com o México, na cidade
de Eagle Pass.
A mulher ofereceu cerca de
mil dólares e ele concordou, na esperança de que isso aumentaria suas chances
de sair com ela. Além do mais, um dinheiro extra nunca faz mal. Mas quando
Persinger dirigiu duas horas e meia até a fronteira, um policial escondido nas
proximidades o prendeu. O relato é dos advogados do rapaz.
Persinger está entre os
milhares de estadunidenses acusados de tráfico de pessoas desde que o Texas
iniciou a Operação Lone Star (em inglês, Estrela
Solitária), para controlar sua fronteira com o México, há quase quatro anos.
Embora políticos digam que estão concentrando os esforços nos cartéis mexicanos
que comandam o tráfico de drogas, a maioria das pessoas acusadas no Texas
são cidadãos dos EUA — e as prisões por tráfico aumentaram cerca de 1.150%
depois que o estado iniciou sua repressão na fronteira.
As pessoas detidas
geralmente são atraídas por anúncios de teor vago em redes sociais como TikTok,
Instagram e Snapchat. Os posts buscam motoristas e oferecem pagamento. As
informações são de oito advogados de defesa, três promotores e quatro pessoas
presas por tráfico de pessoas ouvidas pela reportagem do Texas Tribune.
Quem responde aos anúncios
recebe instruções pelo WhatsApp de alguém que não se identifica nem informa que
esta pessoa vai cometer um crime. Ela é instruída a dirigir até pontos
específicos no lado texano da fronteira EUA-México, pegar um grupo de
desconhecidos e levá-los até cidades grandes do estado, como Houston, San
Antonio e Dallas.
As pessoas são orientadas a
enviar mensagens para o desconhecido ao longo do caminho, a fim de confirmar
pontos importantes na jornada — como a chegada ao destino inicial ou mesmo
avisar quando imigrantes entram no veículo.
“Em serviços como o Uber e o
Lyft, cidadãos comuns dirigem carros. Então não é nada fora do comum alguém
solicitar um motorista”, disse Mary Pietrazek, advogada de defesa de San
Antonio que representou quase 500 pessoas presas sob a lei estadual de tráfico
de pessoas.
A lei de tráfico de pessoas
do Texas está em vigor há 25 anos, mas, na última década, a Assembleia
Legislativa do estado a ampliou e tornou a punição mais extrema. Pessoas
condenadas enfrentam, em média, 15 meses de prisão. No ano
passado, os legisladores estaduais impuseram uma sentença mínima obrigatória de
dez anos para qualquer condenado.
A lei gerou preocupações
entre advogados e defensores dos direitos dos imigrantes. Eles dizem que a
legislação sobrecarregou os sistemas de justiça locais, envolveu pessoas que
estão longe de serem criminosos convictos e se transformou em um estatuto
vagamente inconstitucional que dá à polícia estadual licença para buscar
imigrantes indocumentados.
“O sistema de fiscalização da imigração do estado está tentando criminalizar muitos
aspectos de nossas vidas”, disse Priscilla Olivarez, do Immigrant Legal
Resource Center, que, junto com outras organizações, publicou um artigo
afirmando que a lei estadual de tráfico está “alimentando uma crise de
encarceramento em massa”.
A lei foi usada para
fundamentar 1,4 mil prisões por tráfico de pessoas em 2020, um ano antes de o
governador republicano Greg Abbott lançar a Operação Lone Star, em 2021. Em
2022, o número saltou para 17,5 mil.
Análise do Texas Tribune das
prisões feitas pelo Departamento de Segurança Pública do estado — cujos
policiais têm invadido a fronteira atuando na Operação Lone Star — mostra
que cerca de metade das pessoas presas por tráfico nos últimos três anos
tinham menos de 27 anos. Adolescentes com menos de 18 anos representaram
aproximadamente 6% das prisões a cada ano.
Os advogados dizem que
algumas pessoas estavam um pouco céticas quanto à tarefa que lhes era pedida,
mas não entendiam completamente que estavam sendo requisitadas para
traficar pessoas, já que não estariam transportando ninguém através da
fronteira.
Persinger tinha 33 anos
quando chegou ao Texas, em 2023, durante uma viagem de costa a costa, entre os
estados da Carolina do Norte e Califórnia, onde morava na época. Seu pai
acabara de morrer e lhe deixou alguns pertences — incluindo um carro. Músico
que sempre teve dificuldades para ganhar dinheiro, ele se encontrou com um
amigo em San Antonio, onde os dois iriam gravar algumas canções. Ele disse que
planejava ficar cerca de um mês na cidade.
Quando conheceu a mulher na
loja, Persinger ficou surpreso com o flerte. E quando ela ofereceu o bico de
motorista — que incluía dinheiro para gasolina — ele não desconfiou. Ele conta
que já tinha pegado caronas pelo país e podia se identificar com alguém que
precisasse do favor. Persinger se recusou a compartilhar certos detalhes do
encontro porque temia retaliação da mulher que “arruinou” sua vida, segundo seu
advogado.
“Eu não sabia o que era
‘crise da fronteira’ até eu estar prestes a ir a julgamento”, disse ele, na
Cadeia do Condado de Maverick.
·
“Cadê
meus motoristas?”: Criminosos recrutam nas redes sociais
Dois homens vestidos com
roupas camufladas, no banco de trás de um SUV, aparecem em uma postagem no
stories do Instagram. A legenda diz:
“A estrada tá verde
foda-se o [trabalho de] 9-5
e vem trabalhar
pagamento garantido
carona garantida.”
Outra postagem mostra uma
pilha de dinheiro com a legenda: “Cadê meus motoristas?”. Uma terceira traz um
print de um mapa e diz: “Quem estiver a fim de ganhar 10k [10 mil dólares] às 6
da manhã, me liga. É garantido”.
Foi uma postagem semelhante
a essas — compartilhada com o Texas Tribune por um advogado — que chegou a
Nathan Perrow via redes sociais.
Meses após se formar no
ensino médio em 2021, Perrow recebeu a mensagem pelo Snapchat, perguntando se
poderia dar uma carona para uma pessoa e seus amigos por 1,2 mil dólares. Eles
também pagariam o combustível para ir e voltar da fronteira.
“Não pensei nada disso”,
disse Perrow, em Houston, em depoimento a uma comissão da Câmara do Texas,
durante uma audiência sobre as mudanças propostas na lei de tráfico. “Eu só
achei que ia dar uma carona e receber o pagamento.”
Mas quando ele chegou ao
destino que lhe foi dado, na cidade de Del Rio, não encontrou ninguém e viu as
sirenes da polícia atrás dele. Perrow foi acusado seis vezes por tráfico
de pessoas, porque os policiais encontraram seis imigrantes perto do local onde
ele foi parado. “Nunca interagi com eles, mas eles estavam lá”, disse
Perrow aos legisladores.
O Texas Tribune não
conseguiu falar com Perrow para comentar a reportagem.
A viagem parece simples, mas
é preciso passar pelos pontos de controle da Patrulha de Fronteira dos EUA em
todas as principais rodovias do estado e por vários agentes de segurança do
país, que vigiam veículos suspeitos. Depois dos pontos de controle e mais para
o interior, a fiscalização da imigração diminui.
“O que é anunciado [nas redes sociais] não
parece particularmente ruim — é pegar e levar alguém para outro lugar”, analisa
Jack Winfrey, advogado do escritório da Defensoria Pública da cidade de Rio
Grande.
Sylvia Delgado, que
representou 171 pessoas acusadas de tráfico de pessoas, diz que a maioria de
seus clientes conta uma variação da mesma história. Eles estavam
procurando uma maneira de ganhar dinheiro quando receberam uma solicitação no
WhatsApp do tipo: “Quer ganhar uma grana dando uma carona para alguém? É
só ligar para este número e nós vamos te passar para alguém que precisa de
transporte”.
“Geralmente é assim que
acontece. [O anúncio] Não diz, ‘Isso é ilegal, então tome cuidado,’” conta
Delgado.
Pietrazek, a advogada de San
Antonio, relata que já teve clientes que primeiro receberam dinheiro para a
gasolina — até 300 dólares enviados por aplicativos, com a promessa de
pagamento pelo trabalho assim que concluído.
“Provavelmente as pessoas
percebem quando [os imigrantes] entram no carro, com cheiro de mato e lama nas
botas, sem falar inglês”, disse ela.
·
Como
o Texas aumentou as penas
Em 1999, os legisladores
queriam ir atrás dos “coiotes” — termo usado para se referir a traficantes de
pessoas, que exploram imigrantes, extorquindo dinheiro e muitas vezes
colocando-os em risco de morrer durante longas jornadas por áreas acidentadas e
isoladas, lembra Norma Chávez, deputada estadual democrata de El Paso que
escreveu o texto, apelidado de “Projeto de Lei Coiote”.
A lei foi aprovada sem muita
oposição. Com pena de até dois anos de prisão, ela instituiu como crime
estadual o transporte de alguém por dinheiro, escondendo a pessoa das
autoridades e “criando uma probabilidade substancial” de que ela pudesse
se ferir.
“Reconheci que também
precisávamos ir atrás de quem usa isso para lucrar. Eu estava à frente do meu
tempo”, disse Chávez em entrevista recente.
Mas a migração no mundo
estava começando a mudar.
O governo federal
intensificou os esforços de segurança nacional após os ataques terroristas de
11 de setembro de 2001 — incluindo ao longo da fronteira EUA-México, de acordo
com Guadalupe Correa-Cabrera, professora da Universidade George Mason, que
estuda o tráfico de pessoas. O governo dobrou os esforços de fiscalização,
adicionando milhares de novos agentes da Patrulha de Fronteira, investindo
pesado em tecnologia de vigilância e começando a construção de um muro que
ainda está incompleto.
A repressão não impediu que
migrantes fugindo da pobreza, da violência ou da repressão política tentassem
cruzar a fronteira. Mas, à medida em que a travessia se tornou mais
difícil, o tráfico de pessoas se transformou em um império bilionário global
que se tornou fonte de lucro para organizações criminosas, diz Correa-Cabrera.
À medida em que o tráfico se
tornou maior e mais lucrativo, os legisladores do Texas elevaram a punição do
crime para até 10 anos de prisão, em 2011. Quatro anos depois, para até 20
anos, se a vítima corresse o risco de se ferir ou fosse menor de 18 anos. A
pena pode chegar a 99 anos, se a pessoa se ferir ou se tornar vítima de
agressão sexual.
Em 2021, três meses após Joe
Biden assumir o cargo, o governador do Texas, Greg Abbott, lançou a Operação
Lone Star, repressão na fronteira que já custou aos contribuintes mais de 11
bilhões de dólares até hoje.
A polícia do Texas começou a
superar as autoridades federais no número de prisões e processos por tráfico de
pessoas. Agentes federais acusaram 5.046 pessoas sob a lei nacional em 2021 —
3.471 no Texas. No mesmo ano, a polícia do Texas prendeu 7.755 pessoas sob a
lei estadual.
A diferença aumentou. Entre
outubro de 2022 e outubro de 2023, as autoridades federais acusaram 2.745
pessoas de tráfico de pessoas no Texas. Já as autoridades estaduais fizeram
cerca de 17.592 prisões.
A revisão mais recente da
lei estadual, aprovada pela Assembleia Legislativa há um ano, é talvez a mais
ampla. Ela não menciona o status de imigração do passageiro — o que significa
que a polícia pode legalmente parar, interrogar e prender alguém suspeito
de esconder um passageiro, mesmo que seja um cidadão dos EUA.
Kelli Childress, Defensora
Pública da cidade de El Paso, cujo escritório tem quase 400 casos de tráfico de
pessoas, coloca o seguinte cenário: se ela der uma carona para seu pai, em um
carro com vidros escuros, e ela dirigisse para longe de um policial, poderia
ser presa sob suspeita de traficar seu próprio pai.
Os promotores da fronteira
dizem que os casos já estão lotando suas agendas nos tribunais e que a sentença
mínima obrigatória significa que mais réus devem ir a júri. Poucos casos
apresentados sob a nova lei, que entrou em vigor em fevereiro de 2024, chegaram
a uma conclusão final.
O número de crimes estaduais
registrados nos condados que fazem fronteira com o México aumentou 286% desde
2020, de 7.350 para 28.366 no ano passado, de acordo com a Unidade de
Processamento da Fronteira, um coletivo de 17 escritórios de promotores. A
maioria desses casos são de tráfico de pessoas, diz Tonya Spaeth Ahlschwede,
presidente da unidade.
·
Preso
perto da fronteira
Persinger parou o Hyundai de
seu pai, ainda com placas da Carolina do Norte, na Rota 57, fora da cidade de
Eagle Pass, em uma noite de maio de 2023. A cerca de 400 metros de distância,
um policial estava em um carro com todas as luzes apagadas, observando o
veículo em uma área “conhecida por um alto volume de tráfico de pessoas”, segundo
o relato do oficial.
Após ver várias pessoas
saírem do mato e entrarem no Hyundai, o policial parou Persinger. Um “imigrante
indocumentado” correu imediatamente e foi seguido por mais dois, apesar das
ordens do policial para “parar e mostrar as mãos”, de acordo com o agente.
Persinger permaneceu parado
no banco do motorista. Ele concordou em conversar com o policial, contando
sobre a mulher que conheceu no supermercado e o dinheiro oferecido para buscar
quatro pessoas. Mais tarde, ele mostrou as instruções em seu telefone.
O policial prendeu
Persinger. Ele já havia sido preso antes, por crimes de menor potencial
ofensivo, como embriaguez pública, deitar na calçada e beber na rua [ato
proibido nos EUA].
“Eu estava como os
motoristas de Uber, táxis, carros privados — coisas desse tipo,” escreveu
Persinger para o Tribune. “Nunca pensei que poderia acabar nessa situação por
supostamente dar uma carona para algumas pessoas de um lugar para outro.”
Diretora da Lone Star
Defenders, que supervisiona nomeações de defesa para prisões da Operação Lone
Star, Amrutha Jindal diz que o caso de Persinger destaca alguns dos piores
aspectos das prisões de tráfico de pessoas do estado: a polícia está prendendo
pessoas de baixo risco e não parece interessada em investigar os criminosos
maiores, conectados aos cartéis.
“Não faz sentido. É chocante
que essas pessoas recebam uma sentença de dez anos— e a maioria desses jovens
não tem ideia”, disse Jindal.
Segundo os advogados de
Persinger, o policial que prendeu o rapaz disse que nunca ligou para nenhum dos
números que estavam no telefone de Persinger para obter instruções. O oficial
também não fez uma busca nos nomes das pessoas associadas aos números de
telefone.
No depoimento, o policial
não disse que Persinger tentou esconder as pessoas no carro.
O júri considerou Persinger
culpado. Os promotores queriam uma sentença de dez anos de prisão. Como
ele foi acusado antes da implementação da sentença mínima de dez anos, seus
advogados pediram três anos. Ele foi condenado a quatro.
Fonte: Por Alejandro
Serrano/Texas Tribune/Agencia Pública
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