Por
que milhares de brasileiros têm migrado para o Paraguai em busca do sonho de
cursar medicina
O sonho de cursar medicina, que para muitos
brasileiros parece impossível por conta do valor da mensalidade ou alta
concorrência de uma universidade pública, tem encontrado refúgio no Paraguai.
Moradores de diversos estados têm deixado suas
vidas para trás para tentar a sorte no país vizinho, e muitas vezes se
estabelecem em cidades brasileiras de fronteira, como Foz do Iguaçu, no Paraná, e Ponta Porã e Corumbá, no Mato Grosso do Sul.
A migração não acontece à toa: a mensalidade mais
barata do que cursos brasileiros é o principal atrativo – lá, é possível achar
graduações com valores iniciais a partir de R$ 900. No Brasil, os anos iniciais
giram em torno de R$ 5 mil e, ao fim da graduação, podem passar de R$ 16 mil.
Do outro lado da balança, está o desafio de se
aprender medicina em espanhol, além da incerteza se, ao retornarem para o
Brasil, os formados conseguirão passar no Exame Nacional de Revalidação de
Diplomas Médicos (Revalida) e competir no mercado nacional de igual para igual
com profissionais formados "em casa".
Mesmo assim, muitos brasileiros não têm se
intimidado.
Até julho de 2024, o Paraguai abrigava 48.196
brasileiros com visto de estudante, sendo 34.023 com residência temporária e
14.173 com residência permanente, de acordo com um relatório da Direção
Nacional de Migrações encaminhado à Embaixada do Brasil em Assunção, capital do
país.
Só em Cidade do Leste, cidade vizinha a Foz do
Iguaçu, são cerca de 30 mil estudantes conforme estimativa do Instituto de
Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (IDESF).
Sobre este tema, o g1 destaca, ponto a ponto, as características da formação em medicina
no Paraguai, relatos de estudantes e profissionais brasileiros que se mudaram
para o país em busca do curso, além da avaliação de órgãos representativos do
Brasil sobre a formação em medicina no exterior.
·
Como acessar os cursos de medicina em Cidade do
Leste?
Atualmente, há pelo 40 instituições de ensino
superior no Paraguai, de acordo com o Consulado-Geral do Brasil em Cidade do Leste,
que se conecta pela Ponte da Amizade com Foz do Iguaçu. A cidade paraguaia tem
325 mil habitantes e economia baseada no comércio.
Extraoficialmente, o consulado disse ter a notícia
da existência de cerca de 24 universidades habilitadas a oferecer cursos de
graduação em medicina no país. O Ministério da Educação e Ciência do Paraguai,
equivalente ao Ministério da Educação (MEC) do Brasil, não respondeu quantas
instituições, efetivamente, ofertam o curso no país.
Para ingressar nos cursos no Paraguai, diferentemente
do processo de vestibular brasileiro, há diferentes formas, a depender da
instituição. Uma delas, consultada pelo g1, não
exige vestibular, mas tem vagas limitadas, concedidas aos candidatos por ordem
de classificação, considerando, por exemplo, cursos de nivelamento.
Outras instituições solicitam, ainda, a
apresentação de documentação que comprove fluência em espanhol, língua oficial
do Paraguai.
"Algumas universidades que nós visitamos
tinham provas de fluência em espanhol. Teria que ter um nivelamento para que
pudesse acompanhar as aulas e alguma coisa relacionada à área de saúde. Não tão
parecido quanto o vestibular nosso, mas algo que minimamente possa comprovar
que esse aluno tem capacidades de acompanhar o curso", explicou o presidente
do IDESF, Luciano Stremel Barros.
O tempo de graduação é similar ao do Brasil: são
quatro anos de estudos e mais dois do chamado internato, que deve ser feito
preferencialmente no Paraguai, mas, a depender da instituição, pode ser
realizado no Brasil, em faculdades e universidades parceiras.
A técnica de enfermagem Vivian Campos é uma das
estudantes que tenta se formar em medicina no Paraguai. Ela, que é do Rio de Janeiro, largou a carreira militar
na Marinha do Brasil para correr atrás do sonho em 2021.
Vivian lembra que soube que era mais fácil cursar
medicina no país vizinho durante uma viagem de férias a Foz do Iguaçu. À época,
ela pegou um carro de aplicativo dirigido por uma estudante de medicina que
tinha se mudado do Acre para Cidade do Leste.
Saber que as corridas pagavam a mensalidade do
curso deixou a carioca surpresa.
"Fiquei pensativa: pô, uma faculdade de
medicina é R$ 12 mil. Como que ela faz pra pagar a faculdade com o Uber?' E aí
eu fui e perguntei se era particular, aí ela falou que fazia no Paraguai e eu
comecei a perguntar monte de coisa”, relembrou a estudante.
Foi nessa conversa que ela descobriu que as
mensalidades nos anos iniciais de medicina no Paraguai custam em média entre R$
1 mil e R$ 2 mil. Nos anos finais, o valor gira em torno de R$ 3 mil.
Cenário diferente do Brasil, onde, conforme
levantamento do g1 feito
em outubro do 2024, a mensalidade do curso de medicina mais caro do país chegava a
quase R$ 16 mil, valor suficiente para um ano inteiro de curso em
algumas instituições paraguaias.
"Eu me arrependo de não ter vindo antes, de
não saber dessa oportunidade antes. Eu vi que eu tinha sonho maior. Foi a
melhor decisão que eu tomei na minha vida", contou a jovem ao g1.
·
O que avaliar na hora de escolher a instituição de
ensino no Paraguai?
Com as várias opções de ingresso e de instituições,
é importante que os estudantes se atentem a aspectos como estrutura física para
as aulas. Outro ponto para se observar é se as faculdades estão credenciadas
Ministério da Educação e Ciência do Paraguai.
"Medicina é estudo que requer laboratórios,
que requer estruturas físicas, inclusive para que se possa aprender a medicina,
que se tenha algum trânsito com os hospitais locais, então, isso é muito
importante. Também entender como esta faculdade está em termos
infraestruturais, para atender aquilo que se espera", aconselhou o
presidente do IDESF, Luciano Barros.
Outro aspecto que deve ser avaliado, segundo a
estudante Vivian, é se a instituição é na modalidade semestral ou anual, isso
porque diferentemente do Brasil, onde majoritariamente os cursos são
distribuídas em dois períodos de seis meses, por lá, algumas instituições
aderem ao modelo anual.
Outra dica dada por ela é que os estudantes
observem se há ex-alunos brasileiros formados na instituição e que tenham
obtido o Revalida, exame necessário para atuar no Brasil.
·
Vale mais a pena morar no Brasil ou no Paraguai?
Ao escolher a instituição de ensino, chega a hora
de os estudantes decidirem se vão morar no Paraguai ou em uma cidade brasileira
da fronteira. E sobre este assunto, muitas variantes precisam ser consideradas.
Caso optem por ficar no exterior, precisarão buscar
a documentação necessária para permanecer no país, como o visto de estudante. É
este documento que permitirá a circulação, assim como possível fixação de
residência no país, explicou a estudante Vivian.
Algumas faculdades paraguaias oferecem serviços de
apoio aos estudantes que vêm de outros países, como assessoria para trâmites de
documentação e programas de integração cultural.
"A gente tem que fazer o visto, tem o visto
provisório e o visto permanente. Temos que ter a nossa cédula paraguaia, que é
como se fosse a nossa identidade. Então é todo um processo que você tem que
fazer até conseguir a sua identidade paraguaia. Aí a faculdade, quando você faz
a matrícula, ela já te dá uma lista de tudo que você tem que fazer",
explicou a estudante Vivian.
A questão habitacional é outro aspecto importante
de se observar, ponderam os acadêmicos. Uma opção é morar em Foz do Iguaçu e
cruzar diariamente a Ponte da Amizade para acessar Cidade do Leste.
Para esta escolha, é necessário avaliar as opções
imobiliárias disponíveis em Foz, que por ser turística, pode ter alugueis mais
caros. Ao mesmo tempo, os que pensam em morar em Cidade do Leste precisam
considerar a característica comercial da cidade, que utiliza o dólar no dia a
dia.
A estudante Vivian, por exemplo, optou por morar em
Foz do Iguaçu pela comodidade de viver em seu país de origem e poder atravessar
a ponte com "tempo médio". Entre a casa dela e a faculdade são 26
minutos de trajeto, tempo curto na avaliação da estudante.
"Eu moro no Centro da cidade [Foz], então eu
gasto por volta de 26 minutos até a minha faculdade. Para quem morava em cidade
grande, no Rio de Janeiro, às vezes 26 minutos eu não conseguia chegar nem em
um bairro. Aqui, 26 minutos, eu consigo estar até em outro país", brincou
a estudante.
No fim das contas, caberá ao estudante avaliar a
opção que melhor se encaixe às condições que possui, levando em conta, por
exemplo:
·
Gastos com transporte;
·
Alimentação;
·
Segurança de onde escolhe morar;
·
Preço de materiais para o curso – que assim como a
mensalidade, são mais baratos que no Brasil.
·
Como aprender medicina com aulas em espanhol?
A língua oficial do Paraguai é o espanhol, por isso
ser fluente no idioma é um facilitador. Mesmo os que não sabem, porém, também
conseguem aprender.
O médico Thallys Santana Dias, por exemplo, não
sabia a língua do país e conseguiu se formar. Depois, ele passou Revalida e
hoje atua no Brasil. Entenda o Revalida
mais abaixo.
Thallys é de Crisólita, cidade do interior de
Minas Gerais. Ele soube por um amigo, em 2014, sobre a possibilidade de estudar
medicina no Paraguai. Ao pesquisar os valores, deicidiu enfrentar o desafio,
mas ficou receoso por não saber espanhol.
A língua, porém, não foi entrave. Ele lembra que
recebeu auxílio dos professores da instituição onde estudou. Depois de formado
e revalidado, conseguiu emprego em um hospital de Foz do Iguaçu, onde atuou com
atendimento primário. Atualmente, ele trabalha em São Paulo, em uma clínica de
transplante capilar.
"Foi muito bom, porque você, além de formar
médico, você ainda aprende outra língua, uma língua estrangeira [...] O que eu
posso falar é que eu gostei bastante, não senti dificuldade alguma de trabalhar
no Brasil. Já trabalhei em Unidades de Pronto Atendimento, emergências,
Unidades de Tratamento Intensivo [...] Não senti diferença nenhuma de trabalhar
com colegas formados no Brasil", frisou Thallys.
·
Após a formação no Paraguai, o Revalida no Brasil
Passados os desafios da formação no exterior, os
brasileiros que desejam atuar no Brasil precisam passar pelo Exame Nacional de
Revalidação de Diplomas Médicos, o Revalida.
Para participar, os profissionais formados em
medicina em instituições de educação superior estrangeiras devem atender aos
seguintes requisitos, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pelo exame no Brasil:
·
Ser brasileiro(a) ou estrangeiro em situação legal
de residência no Brasil;
·
Enviar imagens do diploma (frente e verso), como solicitado pelo sistema de inscrição;
·
Ter registro no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF)
emitido pela Receita Federal do Brasil;
·
Ser portador de diploma médico expedido por
instituição de ensino superior estrangeira, reconhecida no país de origem pelo
seu ministério da educação ou órgão equivalente, autenticado pela autoridade
consular brasileira ou pelo processo de Apostilamento da Haia, regulamentado
pela Convenção de Apostila da Haia.
São duas provas no exame: uma escrita e uma prova
de habilidades clínicas. Conforme o INEP, "o exame é fundamentado na
demonstração de conhecimentos, habilidades e competências necessárias ao
exercício da medicina".
Quando um profissional do exterior é aprovado nas
duas etapas, para o INEP, "é um demonstrativo da competência técnica
(teórica e prática) do médico graduado para o exercício profissional".
No caso do médico Thallys, ele contou contou que,
após a formação no Paraguai, foi necessário mais um ano para que ele pudesse
ter o diploma revalidado. Na sequência, ele pôde adquirir a Cédula de
Identidade de Médico (CRM) para poder atuar no Brasil.
Para o Conselho Federal de Medicina (CFM), o
movimento de brasileiros buscando a formação no exterior é benéfico, desde que
as instituições ofertem bons cursos e os acadêmicos passem no Revalida.
Conforme o conselho, a média de aprovações no
Revalida de candidatos formados no Paraguai é de 16%, considerando as provas
realizadas desde 2011.
O CFM afirma que além dos egressos de cursos no
Paraguai, há uma movimentação legislativa para tentar tornar o exame
obrigatório, também, para estudantes formados no Brasil.
"O CFM apoia essa iniciativa, pois nos últimos
anos, no Brasil, houve uma proliferação de escolas médicas e muitas não formam
médicos adequadamente. É muito importante que a população brasileira tenha
médicos bem formados e para isso eles precisam ser avaliados", destacou o
conselho.
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Indígena do AC que tirou 920 pontos na redação sonha em
fazer medicina
Aulas na escola pela manhã, estudo em casa pela
tarde, assistir videoaulas e participar de aulões. Essa foi a rotina de estudos
da jovem Tayla Paulino Sales
Kaxinawá, de 18 anos, durante cinco meses de preparação para as
provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)
2024. E o esforço valeu a pena: Tayla tirou 920 pontos na redação.
Tayla
é da etnia Kaxinawá, estudava na rede pública de ensino e mora no Jordão, uma das cidades isoladas por via terrestre no Acre que possui um
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,469, um dos menores do Brasil,
segundo o IBGE.
O acesso ao município, onde vivem pouco mais de nove mil pessoas, é possível
apenas por barco ou avião de pequeno porte.
Essa foi a segunda vez que ela fez o Enem. A
primeira vez foi como treineira. Em entrevista ao g1 nesta
terça-feira (14), Tayla revelou que sonha
em cursar medicina e se especializar em pediatria para atender na rede pública
de saúde.
"É uma área que eu gosto, quero ajudar as
crianças. Meu pai trabalha na recepção do hospital e sempre que ia lá ficava
admirando os médicos no trabalho, atendendo. Achava muito legal, é inspirador.
Fui vendo e cresceu esse desejo em mim", contou.
O resultado do Enem de 2024 foi divulgado nessa segunda (13). O exame é a porta de entrada para alunos do ensino médio em universidades
públicas no Brasil. A prova é composta por 180 questões e uma redação.
No Acre, nenhum estudante tirou nota mil na redação do exame. Segundo
o Ministério da Educação (MEC), apenas 12 alunos dos quase 3,2 milhões de
participantes chegaram à nota máxima. A pontuação máxima no Acre, alcançada por
quatro alunos, foi 980 pontos.
<><> Rotina de estudos
Para se preparar para as provas do Enem 2024, Tayla
se dividiu entre as atividades do último ano do ensino médio, resumo de
conteúdos em casa pela tarde, videoaulas, leitura e participar de aulões do
pré-Enem.
Ela contou que resolveu muitas provas das edições
passadas do Enem para se preparar. "Resolvi muitas questões de 2022, 2023
e de outras edições passadas. Assistia as videoaulas e fazia os resumos. De manhã
estudava na escola e à tarde em casa com o que eu tinha", destacou.
Mesmo com a preparação, Tayla revela que ficou
surpresa ao conferir a nota. "Não esperava. Foi uma surpresa muito grande.
Tirei abaixo de 400 pontos em matemática, vou esperar para ver como vou fazer,
se vou ser aprovada no curso. Sei que agora não tem mais medicina pelo Sisu.
Não tenho outra opção, quero medicina", concluiu.
Pela primeira vez desde 2011, o curso de medicina da Universidade Federal do Acre (Ufac) não foi
incluído no Sisu. O rompimento com o sistema ocorreu em meio ao
debate sobre o oferecimento de um bônus regional de 15% na nota para estudantes
que tenham feito o ensino médio em escolas do Acre.
O bônus era oferecido pela Ufac desde 2018, mas foi declarado inconstitucional pelo STF por violar o princípio da
igualdade, em outubro do ano passado.
O argumento da universidade é que a medida atende à
necessidade de reforçar o compromisso de responsabilidade social da Ufac em
relação à formação acadêmica e intelectual da sociedade acreana. Após diversos
questionamentos na Justiça, porém, a Ufac decidiu fazer um processo seletivo
próprio para medicina usando as notas do Enem. A medida não deve afetar os
demais cursos, ao menos este ano.
Fonte: g1
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