Adelaide Emilia Rutini von
Engenschwarz nasceu em 1840, no Principado de Lipa – à época parte da
Confederação Germânica. Aos quatro anos foi morar na França, quando seu pai, o
barão von Engenschwarz, foi nomeado secretário da legação alemã em Paris.
Cantora lírica e poetisa,
Adelaide era poliglota e sabia de cor trechos de livros de autores como
Heine, Goethe e Victor Hugo. Em
1860, na França, conheceu uma família brasileira e, aos 20 anos de idade, aceitou vir para o Brasil para trabalhar como preceptora (tutora) da filha do casal, em
Sergipe. Na chegada, acabou fixando-se em Salvador, na então província da
Bahia.
Depois de casar-se com um
advogado baiano, Adelaide teve uma filha e um filho, cuidando da educação dos dois
e também de várias gerações de estudantes durante o mais de meio século em que
viveu e lecionou na Bahia.
Assim como Adelaide Emilia,
inúmeras preceptoras europeias cruzaram o Atlântico numa jornada muitas vezes
sem volta e tiveram um importante papel educacional e comportamental no Brasil
de meados do século 19 até o início do século 20.
·
Das monarquias do Velho Mundo para o Brasil Império
"Os países que mais
enviaram preceptoras para o Brasil, pela ordem, foram Alemanha, Inglaterra,
Suíça e França", diz à DW o historiador Samuel Albuquerque, autor do
livro Entre cartas e memórias:
preceptoras europeias no Brasil do século 19.
Com a intenção de dar um
padrão de comportamento europeu às suas filhas, famílias das elites açucareira,
do café e do comércio de todo o Brasil Império ofereciam salários altíssimos
para trazer da Europa preceptoras com sólida formação clássica.
"As primeiras gerações
dessas preceptoras eram quase sempre oriundas da aristocracia decadente da
Europa", explica Albuquerque. "Mas depois houve uma
profissionalização do ofício, com a criação de escolas para preceptoras."
Instruídas para atuarem na
educação doméstica das filhas – quase nunca dos meninos – das
famílias que as contratavam, as preceptoras dedicavam-se integralmente à
função, residindo no mesmo lar em que trabalhavam.
Com essa proximidade, as
jovens podiam passar a ser uma ameaça à relação do casal que as contratou. Por
isso, apesar da dominante influência cultural da França na aristocracia
brasileira de então, as preceptoras francesas eram vistas com
desconfiança.
"Havia uma certa
rejeição às francesas porque elas tinham fama de libidinosas", conta o
historiador, que é professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Para evitar problemas
conjugais, as famílias preferiam contratar mulheres mais velhas, caso da alemã
Marie Lassius. Ela trabalhou por 20 anos como preceptora no Brasil, até morrer
de febre amarela, no Rio de Janeiro, em 1879. "Ela já chega com uma certa
idade, tanto é que as pupilas dela a chamavam de vovó alemã", diz o
historiador.
Mas a oferta de jovens
dispostas a se aventurar nos trópicos era maior. E o mesmo imaginário que
estigmatizava as francesas via com bons olhos outro estigma: a da rigidez das
alemãs.
"Ter uma preceptora
alemã em casa, simbolicamente, era como um título de nobreza", compara
Albuquerque, que considera o antropólogo e sociólogo Gilberto Freyre
(1900-1987) como o primeiro estudioso a refletir sobre a importância da
presença das preceptoras europeias no Brasil.
"[...] as preceptoras
que os senhores de engenho mais ortodoxamente patriarcais da época — os que,
não enviando as filhas para internatos das cidades, desejavam instruí-las em
casa — anunciavam, nos jornais, precisarem para encarregar-se de tal ensino,
eram senhoras que soubessem iniciar as meninas no conhecimento da gramática
portuguesa, da geografia, da música, do piano; e que, também, as instruísse no
conhecimento da língua francesa: não só no traduzir como no falar dessa
língua", escreveu Freyre no livro Vida
social no Brasil de meados do século 19.
·
O legado das preceptoras europeias no Brasil
Em Salvador, Adelaide
Emilia — trisavó do autor deste texto — musicou poemas de autores como
Gonçalves Dias e participava da vida cultural da cidade. Ensinou piano ao
filho, Silvio Deolindo Fróes (1864-1948) , que se tornou um dos maiores
pianistas brasileiros na virada para o século 20, inclusive fazendo carreira na
França.
Adaptada ao Brasil, Adelaide
não quis voltar à Europa. Após a sua morte, em 1912, jornais soteropolitanos
destacaram sua integração ao país, dizendo que ela não tinha sotaque, dominava
a língua portuguesa e exaltava o Brasil.
"Esse é um caso
raríssimo", avalia Albuquerque. "Raramente elas conseguiam se adequar
ao Brasil, seja ao clima, seja à cultura."
A inadaptação podia causar o
rompimento com a família contratante, o que levava essas preceptoras a darem
aulas particulares ou em colégios para meninas. Muitas suportavam a
permanência até fazerem um pé-de-meia e retornarem à Europa.
Um caso exemplar é o da
alemã Ina von Binzer. Entre 1881 e 1884, sob o pseudônimo de Ulla von Eck, ela
enviou cartas a uma amiga contando suas impressões sobre o Brasil e as
dificuldades em se adaptar ao país.
Após sua morte, seu relato
tornou-se o livro Os meus romanos:
alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil.
·
A condessa de Barral e o legado
das preceptoras
A mais famosa preceptora foi
Luísa Margarida de Barros Portugal, a condessa de Barral. Foi ela a responsável
pela educação das princesas Isabel e Leopoldina, filhas do imperador do Brasil,
Dom Pedro 2º.
Seu título de nobreza era
francês, mas a condessa nasceu em Santo Amaro, na Bahia. "Ela nunca perdeu
o lado brasileiro dela, apesar de ter vivido e se adaptado tão bem à
França", diz Albuquerque, que também é autor do livro A carta da Condessa, sobre a condessa de
Barral.
Apesar de monarquista
convicta, a condessa era abolicionista. Ela também acreditava que a educação da
mulher era um elemento libertador, além de defender a participação feminina na
política, pensamentos que a colocavam à frente do senso comum da época.
"Em torno da princesa
Isabel gravitaram os mais importantes abolicionistas. O abolicionismo dela é um
legado, sobretudo, da condessa de Barral", diz o historiador.
Em geral, se
as preceptoras europeias tiveram um comportamento mais avançado do
que a sociedade brasileira da época, não cabia a elas muito mais do que se
adaptar às demandas das famílias patriarcais católicas a que serviam.
"Mas elas deram
ferramentas para que essas mulheres ampliassem seus horizontes", avalia
Samuel Albuquerque. Na introdução de seu livro Sobrados e Mucambos, Gilberto Freyre foi além ao
escrever que as preceptoras "exerceram uma ação revolucionária
que não deve de modo nenhum ser esquecida ou desprezada".
"É revolucionário por
preparar leitoras e escritoras", explica Albuquerque. Um exemplo são as
memórias escritas por Aurelia Rollemberg, pupila da alemã Marie Lassius, que se
tornaram um testemunho importante para historiadores. "À medida em que
formavam boas leitoras, também formavam escritoras, mesmo que não tenham sido
figuras renomadas da literatura", completa.
A vinda
das preceptoras para o Brasil começou a cessar após a proclamação da
República, e principalmente com a Primeira Guerra Mundial.
"Foi muito trabalhoso para o Estado brasileiro, na República sobretudo,
pôr limites a essa tradição de educar no lar", diz Samuel Albuquerque.
Numa realidade em que o
objetivo das famílias era preparar suas filhas para o casamento, as lições
das preceptoras serviram como uma espécie de substituto do dote,
forjando um estilo de comportamento como distinção social.
"Se a gente pensar na
trajetória da história das mulheres no Brasil, até muito recentemente, o padrão
que se cobrava de uma mulher da elite era o de uma mulher à francesa, ao estilo
europeu", diz Albuquerque.
Apesar de atuarem longe dos
olhos das classes populares, em um Brasil com uma população bem menor do que a
atual, e ainda convivendo com o flagelo da escravidão, as preceptoras fizeram
sua influência refletir na sociedade da época.
"As classes populares
se espelhavam nas elites, que se espelhavam na França. Era um jogo de
reproduções", sintetiza Albuquerque.
Fonte: DW Brasil
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