Lula 3: ‘É como uma final em que você joga contra um time
mais forte lutando para vencer por 1-0’
O atual governo federal obteve resultados exitosos nos
primeiros dois anos, principalmente nas áreas econômica e social, avalia o
pesquisador e professor Moysés Pinto Neto. Queda de desemprego, redução de
pobreza, aumento da escolarização, redução da informalidade, balança comercial
favorável e inclusive números fiscais dentro ou muito próximos da meta estão
entre as realizações. Além disso, o governo avançou com o Bolsa Família,
implementou o “Pé de meia” e reforça a noção de que o Brasil tem um mercado
interno com mais potencial. “Essa transferência direta de renda sustenta Lula
de modo muito sólido, apesar de toda pressão contrária, uma vez que está na
memória do povo, é validada pela experiência”.
Contudo, em meio às transformações na última década,
com forte politização da direita, toda essa concretude não é suficiente. Claro,
necessita garantir e intensificar o programa de governo, mas também precisa
produzir ideias capazes de mobilizar e criar subjetividade.
Essa rearticulação teria que vir de duas frentes. De um
lado, partidos de esquerda e movimentos sociais teriam que se entender para promover
uma reviravolta de ocupação das ruas, tornando a esquerda mais visível e
combativa. “Não existe equilíbrio na balança se você não coloca peso do seu
lado. Hoje, nosso lado está muito burocratizado ou preocupado com redes
sociais. Houve alguns momentos positivos, como a campanha “Criança Não é Mãe”,
mas foi praticamente um episódio isolado”.
Outra prioridade deveria ser a rearticulação política.
Para o professor, o governo não vai entregar nada de muito interessante, porque
o ambiente é altamente defensivo. “É como uma final em que você joga contra um
time mais forte lutando para vencer por 1 a 0. Há uma confluência brutal de
forças de extrema-direita, e de uma direita que insiste em minimizar a
existência desta, na sociedade brasileira”. Se o governo e a esquerda não forem
eficientes neste sentido, as próximas eleições podem até ser salvas pelo
carisma do Lula, mas, em seguida, talvez “vivamos um ciclo infernal em que a
esquerda será a terceira força nacional – depois da extrema-direita e do
Picaretão (Centrão)”, avalia.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Moysés Pinto Neto analisa as expectativas,
as realizações e a percepção de Lula 3. “Haveremos de encontrar outros modos de
conviver fora do Estado, ou seremos engolidos, provavelmente, pelas máfias
brasileiras que são o espelho interno das mundiais, e nem planeta mais haverá
para a gente e nossos filhos”, alerta.
Moysés da Fontoura Pinto Neto é doutor em Filosofia
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com
período-sanduíche no Centre for Research in Modern European Philosophy, no
Reino Unido. É editor do canal Transe e fundador da plataforma educacional
Alternativa Hub.
<><> Confira a entrevista.
·
No
início do governo Lula 3, havia o entendimento que os desafios mais urgentes
eram econômicos e sociais. Essa expectativa foi cumprida nos primeiros dois
anos?
Moysés Pinto Neto – Há uma clara prioridade dessas
agendas no governo Lula. No entanto, ainda não há um consenso sobre exatamente
em que elas deveriam consistir. Sem dúvida, o fato de boa parte da esquerda,
inclusive o PT e setores do governo, ter ideias mais próximas do
desenvolvimentismo, faz com que a economia sempre esteja sob tensão em torno do
que efetivamente se deseja.
Por que, no fim das contas, os objetos estão sendo
cumpridos em relação a qual modelo? Hoje, o poder parece estar mais próximo do
lado de Haddad, que poderíamos nominar como social-liberal, algo menos rompedor
do neoliberalismo, mais alinhado ao discurso ortodoxo. Haddad, no entanto, tem
ideias para além do establishment: nas suas ações, ele promoveu a reforma
tributária – longe da ideal, sem dúvida, mas ainda assim importante – e tem
colocado na pauta tributação dos ricos e, junto ou em função da pressão do
Lula, os conflitos distributivos no Orçamento. É pouco, mas é muito, ainda mais
na posição em que ele está.
Sob o prisma social, o governo faz o que prometeu – e é
isso que o mantém de pé. Avançou com o Bolsa Família, reativou programas
anteriores abandonados, acolheu a ideia do “Pé de meia” e reforça a noção de
que o Brasil tem um mercado interno com mais potencial que os ideólogos de
mercado propõem, arrochando a renda dos pobres e inibindo o crescimento
econômico. Essa transferência direta de renda sustenta Lula de modo muito
sólido, apesar de toda pressão contrária, uma vez que está na memória do povo,
é validada pela experiência.
·
Sobre a meta de reconstrução do país, ela foi
satisfatória até aqui?
Moysés Pinto Neto – Sem dúvida, não. Mas também sem dúvida
não apenas por erros do governo. Há muito a ser feito e a conjuntura parece
cada vez pior. A organização política, desde 2013, não foi reconstruída, os
partidos de esquerda parecem incapazes de promover atos substantivos e as ruas
oscilam entre a desocupação e a ocupação pelos fascistas. Se o governo está em
ampla minoria em termos da política institucional, no Congresso, e em relação
aos canais mais fortes de pressão – como mídia, agro, Forças Armadas, Faria
Lima – como não poderia ser diferente para um governo de esquerda (embora não
seja um governo de esquerda), somente uma forte pressão vinda diretamente da
sociedade civil poderia produzir mais legitimidade política, como mostrou o
próprio Bolsonaro, quando sua popularidade despencava na pandemia, sempre
reaquecendo seu movimento, e mantendo-se com isso vivo. O governo Lula confia
demais na institucionalidade e convida as lideranças sociais para integrá-la,
enfraquecendo um campo autônomo que poderia servir como válvula de pressão
social. O resultado disso nós já vimos.
·
Que espaço sociopolítico a direita e a
extrema-direita têm conquistado durante a gestão Lula III?
Moysés Pinto Neto – Em termos sociais, a
extrema-direita parece ter batido no teto. Mas o preocupante é que vem se
segurando por ali. O principal mecanismo de produção de subjetividade de
extrema-direita são as plataformas digitais. A lógica do algoritmo hoje é uma
ferramenta que, sozinha, controla mais que qualquer outra formação social. Os
brasileiros são um povo extremamente conectado e, hoje, estão com a vida
completamente entrelaçada nas redes.
Sabemos que estas favorecem a extrema-direita, não
apenas por alianças explícitas – como Musk e Zuckerberg com Trump, agora –, mas
pela sua própria estrutura, que envolve a economia da atenção, a captura de
dados e a circulação de conteúdo maximizada pela audiência sem preocupação com
sua consistência. Muitos filósofos e psicanalistas do século XX analisaram as
massas a partir do influxo dos novos meios de comunicação. Hoje, elas migraram
para as plataformas e funcionam por segmentação. A extrema-direita já capturou
quem são seus segmentos e está em ação. O caso do Pablo Marçal é o exemplo mais
escrachado disso.
·
Como as oposições ao governo têm se
movimentado e de que maneira têm ampliado seu capital político?
Moysés Pinto Neto – A oposição teve um breve recuo
diante do 8/1, mas depois de um ano com pé atrás pisou brutalmente no
acelerador a partir da entrada de Tarcísio de Freitas na disputa. A mídia
paulista, em especial a Folha, vem realizando uma cobertura tendenciosa e
virulenta da política, não raro inclusive minimizando o golpismo dos
bolsonaristas, inclusive no 8/1. Isso ocorre porque ela ecoa o descontentamento
das elites contra o governo Lula, em especial do mercado financeiro, que gostaria
que a agenda Temer/Meirelles e Bolsonaro/Guedes não fosse interrompida.
Em meio a tantas transformações nos últimos dez anos,
houve uma forte politização da direita. Hoje, não bastam apenas resultados. É
preciso entregar ideias – mas não quaisquer ideias, as ideias deles. Não basta
o governo Lula apresentar resultados positivos de crescimento, queda de
desemprego, redução de pobreza, aumento da escolarização, queda da
informalidade, balança comercial favorável e inclusive números fiscais dentro
ou muito próximos da meta. É preciso que o programa não seja interrompido. Ou
seja, esses operadores não estão mais dispostos a negociar, como fizeram no
período 2002-2014.
De outro lado, a radicalização é ainda maior entre
setores do agronegócio, por exemplo, cujo programa envolve a desregulação e a
liberalização, inclusive em relação a questões ambientais. Esses segmentos
funcionam por irradiação: eles construíram um ecossistema social para suas
ideias que hoje controla vários estados do país, no Sul, Centro-Oeste e no
Norte, sobretudo. Isso torna a movimentação da oposição muito agressiva e
tensiona o governo todo tempo, tornando-o fraco.
·
Em quais áreas o governo está bem? Em
quais precisa melhorar ou mudar?
Moysés Pinto Neto – Na parte econômica e social, o
governo vai bem. Precisa de um projeto mais claro e estruturante de educação,
não pautado pelo mercado e pelas ideologias modernizadoras rasas como um pires
(por exemplo: há cinco anos, você tinha dez mil coaches da educação do
Instituto sei-lá-o-quê dizendo que quem não se adaptasse ao metaverso estaria
fora; hoje, discute-se no mundo todo eliminar as telas do ensino), e na saúde.
São áreas determinantes. A primeira, talvez não renda tantos votos quanto se
imagina, mas é o que a longo prazo faz diferença.
Já a saúde é determinante do ponto de vista do
interesse da população, mas não conseguimos ainda encontrar um governo que
consiga corresponder e engajar nesse sentido. Para piorar, a saúde é o
principal desejo do Picaretão (Centrão), que usa o ministério para manobrar o
clientelismo e com isso se perpetuar eleitoralmente. E que, aliás, curiosamente
consegue bastante espaço na mídia para realizar essa pressão.
O governo precisa melhorar também em algumas promessas
fundamentais, como a demarcação de terras indígenas e a transição ambiental,
que andam muito devagar para o tamanho da urgência do problema.
·
Como avalia a gestão do governo Lula de agora
em relação ao seus outros dois mandatos?
Moysés Pinto Neto – Não há como comparar, porque são
cenários completamente distintos. Governar no século XXI tornou-se uma
atividade muito difícil. Lula vem tentando manter a fórmula dos governos
anteriores e, talvez, esse seja justamente o erro. Não há mais equilíbrio
possível. Mas tampouco tenho a resposta de como será possível sair desse
imbróglio.
·
Quais as prioridades e os desafios para a
segunda parte do governo Lula 3?
Moysés Pinto Neto – A prioridade deveria ser a
rearticulação política. A divisão do governo em frações incongruentes já se
mostrou improdutiva. O governo não vai entregar nada de muito interessante,
porque o ambiente é altamente defensivo. É como uma final em que você joga
contra um time mais forte lutando para vencer por 1-0. Há uma confluência
brutal de forças de extrema-direita, e de uma direita que insiste em minimizar
a existência desta, na sociedade brasileiros. O combo Boi-Bala-Bíblia hoje
controla o país. Assim, só uma rearticulação política possibilitaria caminhar
um pouco além – ou, muito provavelmente, o que vai ocorrer é que talvez sejamos
salvos pela memória e pelo carisma de Lula nas próximas eleições, mas em
seguida vivamos um ciclo infernal em que a esquerda será a terceira força
nacional – depois da extrema-direita e do Picaretão (Centrão).
Para mim, essa rearticulação teria que vir de duas
frentes. De um lado, partidos de esquerda e movimentos sociais teriam que se
entender para promover uma reviravolta de ocupação das ruas, tornando a
esquerda mais visível e combativa. Não existe equilíbrio na balança se você não
coloca peso do seu lado. Hoje, nosso lado está muito burocratizado ou
preocupado com redes sociais. Houve alguns momentos positivos, como a campanha
“Criança Não é Mãe”, mas foi praticamente um episódio isolado.
Claro, vivemos também intoxicados pela lógica do
algoritmo, trabalhando como nunca, exaustos e competitivos. Sair às ruas hoje
não é a mesma coisa que 2013. Mesmo assim, não vejo outro caminho. E pior: os
bolsonaristas, mesmo em menor número, ainda saem. Nós temos muito mais razões
para sair.
A questão é: como engajar as pessoas para que haja
protestos contra o Orçamento Secreto, por exemplo? Se nem o Fim do Mundo as
comove mais, como ocorreu com Porto Alegre que viveu, em meia década, enchente
e pandemia, e segue tudo igual, já não sei se não vale a frase do Kafka: Há
esperança, mas não para nós.
Mas voltemos à objetividade aqui: a outra frente teria
que vir do governo, no sentido de tornar mais dura a negociação. Lula tem no
seu ministério hoje partidos que votam constantemente contra o governo. Ele
precisa retomar o poder da caneta. Deixar até, se for o caso, o Legislativo
judicializar. Mas numa negociação você precisa usar seus poderes, não apenas
ficar lá na “atitude de diálogo” e ser tratorado (metáfora hoje cada vez mais
literal) pelos adversários. Precisa cair o Padilha e entrar um negociador mais
duro, alguém que seja capaz de efetivamente barganhar com o poder que dispõe o
Executivo – que, sem dúvida, já foi maior, mas ainda é grande.
·
Tem outro ponto relevante a considerar sobre
as políticas do atual governo federal?
Moysés Pinto Neto – Depois de ler o que escrevi, penso:
que triste isso tudo, não? Porque o governo Lula subiu à rampa com chaves
cosmopolíticas: um cacique, uma mulher, um animal, um trabalhador nordestino
imigrante, uma pessoa com deficiência, um menino negro. Algum esquerdista da
velha guarda dirá: “veja só, o identitarismo!”, mas não é nada disso. Vivemos o
colapso do nosso modo de produção no planeta Terra, e não é só o capitalismo
que está em jogo, é o próprio postulado moderno de que a Terra é uma fonte de recursos
que serve para abastecer o almoxarifado da empresa humana. Quais são as lógicas
que se contrapõem a isso?
Quando Lula se aproxima dos povos originários, com o
cacique Raoni e a ministra Sonia Guajajara, quando chama Anielle Franco, Marina
Silva e Silvio Almeida para os ministérios, a gente tem um flerte com outros
futuros – outras paisagens que não seja o fazendão greco-goiano e seus
habitantes cafonas, parvos, perversos. Há outros modos de relação com o cosmos
que não passam pela “excepcionalidade humana” e sua obsessão pelo crescimento,
pela acumulação de bens, pela transformação do mato em asfalto. Ok, sabíamos
que era um governo de coalizão e que a margem de manobra é pequena. Lideranças
que víamos como conservadoras há dez anos – como Gleisi e Tebet, ambas ligadas
ao agronegócio – são hoje comemoradas. Enfim, que triste, não? Haveremos de
encontrar outros modos de conviver fora do Estado, ou seremos engolidos,
provavelmente, pelas máfias brasileiras que são o espelho interno das mundiais,
e nem planeta mais haverá para a gente e nossos filhos.
Fonte: Entrevista com Moysés Pinto Neto, em IHU
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