Indígenas
protestam contra lei que inviabiliza educação presencial nas aldeias do Pará
Uma lei aprovada no fim do
ano passado no Pará está gerando intensos protestos de lideranças indígenas de
diferentes etnias e regiões do estado. Eles acusam o governo de desmantelar o
sistema de educação indígena. Os manifestantes ocupam, desde terça-feira (14),
a sede da Secretaria de Estado de Educação (Seduc), em Belém, pedindo a revogação imediata da Lei
10.820/2024.
A Polícia Militar foi
acionada para tentar dispersar os manifestantes, cortou energia e água do
prédio, jogou spray de pimenta nos banheiros e impediu a entrada da imprensa,
de representantes do Ministério Público Federal (MPF) e da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB), mas os indígenas continuam no local, depois de forçarem o
portão e ocuparem as estruturas da Seduc.
Há cerca de 300 indígenas no
local, incluindo caciques das etnias Munduruku, Wai Wai, Tembé, Arapiun e
Tupinambá, que afirmam representar os mais de 55 povos indígenas presentes no
território paraense.
Depois que eles entraram, o
portão foi novamente fechado e ninguém mais conseguiu entrar. As lideranças
dizem que só negociam com a governadora em exercício, Hana Ghassan (MDB) – o
governador Helder Barbalho (também do MDB) está em viagem ao exterior –,
ou com o titular da Seduc, Rossieli Soares, que teriam autonomia para revogar a
lei. Ao fim do terceiro dia de protesto, Soares foi à secretaria no fim da
tarde de quinta-feira, mas até o fechamento desta reportagem não havia ocorrido
diálogo.
“A energia cortaram, a água
[cortaram] e jogaram spray de pimenta. Estamos em cárcere privado. Tem criança,
tem idoso, tem cacique que vieram de muito longe. E nós não vamos sair daqui,
porque não saímos do nosso território para ficar de blá-blá-blá”, disse
Alessandra Korap, liderança Munduruku, no primeiro dia de ocupação. Em apoio à
demanda indígena, o Sindicato dos Trabalhadores de Educação Pública do Pará
(Sintepp) decidiu entrar em greve geral, com início em 23 de janeiro.
A lei, aprovada em 19 de
dezembro, no fim do ano legislativo, em votação fechada – e marcada pela
repressão da Polícia Militar, que usou balas de borracha e spray de pimenta
contra os professores estaduais – , altera o plano de gratificações do Sistema
Modular de Ensino (Some) e de sua versão para os povos indígenas (Somei).
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Redução
de gratificações inviabiliza ensino presencial; governo quer educação à
distância
A medida reduz as
gratificações fixas de R$ 7 mil para valores que podem variar entre R$ 1 mil e
R$ 7 mil, de acordo com quatro níveis de complexidade que variam de acordo com
cada território onde o Some é implementado. A mudança, porém, não foi
regulamentada, e os critérios para estabelecer os graus de complexidade e a
gratificação correspondente permanecem incertos.
Para os indígenas e
sindicalistas, isso, na prática, pode inviabilizar a educação indígena nas
aldeias e em locais mais remotos. O recurso é necessário para a logística de
viagens dos professores às comunidades indígenas, do campo ou ribeirinhas. É
com ele que os professores pagam deslocamento, hospedagem, alimentação,
combustível e até confecção de materiais pedagógicos.
Em substituição, o governo
do estado já implementa na rede de ensino o Centro de Mídias da Educação Paraense
(Cemep), modalidade de ensino à distância que funciona com uma televisão e um
modem da empresa Starlink. Cada aula, transmitida a partir da sede da Seduc, em
Belém, é acessada simultaneamente por até 80 salas de aula em diferentes
municípios do estado. Nesses locais fica apenas um professor mediador, de
qualquer disciplina, para reunir dúvidas dos alunos.
Os indígenas argumentam que
o sistema é incompatível com várias aldeias, muitas das quais não possuem
energia elétrica e dependem de geradores a diesel para necessidades do dia a
dia. “Os alunos estão sendo abandonados, os professores também. Aula online não
serve pra gente porque muitos alunos não falam português. Isso é violação de
direito, é violação da nossa cultura”, disse Alessandra em um vídeo publicado
nas redes sociais.
O Some funciona no Pará há
mais de 40 anos. Foi concebido para que o ensino médio chegasse às localidades
mais remotas do estado, como zonas rurais, ribeirinhas, aldeias indígenas e
territórios quilombolas, onde o Executivo estadual tinha dificuldade em manter
um professor fixo.
O programa é organizado em
módulos de três meses, com os professores visitando comunidades
preestabelecidas semanalmente. Cada módulo funciona como um intensivo de uma
disciplina, que terá todo o seu conteúdo ministrado durante os três meses. Ao
fim de cada módulo, os professores atendem outras comunidades.
A logística dessas
viagens normalmente envolve custos altos, motivo pelo qual os professores do
Some recebem, além do salário, as gratificações. Mas, apesar de ser um modelo
preferido pelas comunidades, a situação também é precária, como observou
reportagem da Agência Pública. Como o projeto não possui uma estrutura
própria de escolas, os professores usam as salas de aula de escolas municipais
de nível fundamental, não raro em péssimas condições de conservação.
Escola moderna vira
sauna
No Pará, um dos
municípios pioneiros na implementação do Some foi Igarapé-Miri, maior produtor
de açaí do estado e do Brasil (em 2022 foi responsável por 21,7% da produção
nacional, totalizando 422,7 mil toneladas). Em novembro de 2024, a reportagem
da Pública esteve no município para visitar escolas onde o Some
funciona.
A primeira parada foi no rio
Anapu, na Vila Menino Deus, distante mais de uma hora em lancha rápida da sede
do município. Lá as aulas de ensino médio ocorrem na Escola Municipal de Ensino
Fundamental Dom Antônio Macedo Costa.
Entregue em 2023, a escola
conta com infraestrutura impecável: prédios novos, quadra esportiva, refeitório
amplo e centrais de ar condicionado em todas as salas. Porém, a energia
elétrica monofásica transformou a escola em um elefante branco, já que a
energia fraca não dá conta dos aparelhos. As salas que deveriam ser
climatizadas se transformam em saunas. Uma professora, que não quis se
identificar, relatou ter presenciado, em duas oportunidades, alunos desmaiarem
em sala de aula por causa do calor.
No dia em que a reportagem
esteve no local, a maior parte das atividades de aula aconteceu no refeitório,
que fica em um pátio amplo e um pouco mais arejado. Pelas condições de aula,
porém, o regime de estudo é alterado, com alunos entrando no prédio às 13h e
sendo liberados por volta das 15h30 para concluírem as atividades em casa.
O bigode ralo e alguns
precoces cabelos brancos contrastam com a aparência jovial do estudante Nilmar
Lima Barbosa. Ele tem 19 anos e voltou a estudar em 2024, após um ano afastado
da escola (ele já havia passado um ano sem estudar em 2021 por causa da
pandemia).
Seus dedos e unhas têm
marcas da tinta arroxeada do açaí que coleta durante uma jornada de cinco horas
pela manhã, antes de ir para a escola. A atividade é o sustento de sua família,
como a de muitas outras da região, e um dos motivos de ter interrompido os
estudos.
Ele voltou à escola por
incentivo da mãe, mas relata que não tem sido fácil. “Tem que se empenhar muito
para aprender. Em sala de aula já é complicado, por causa do calor. A gente
passa três horas dentro da sala e já sai lavado [de suor]. Mas é pior estudar
em casa com material, por não ter a explicação que o professor passa na sala de
aula”, conta.
Mesmo assim, ele não pensa
em desistir e tem planos para o futuro. Após concluir o ensino médio, ele sonha
em estudar agronomia, para juntar o conhecimento científico ao que adquiriu
empiricamente na lida nos açaizais.
Mais próxima do centro da
cidade, a Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental Bom Jesus I é uma
típica edificação ribeirinha: construída toda em madeira sobre um palafita no
rio Caji, possui salas de aula sem divisórias completas, o que permite que o
som de uma aula seja ouvido por uma ou mais turmas. Como não dispõem de
hospedagem, os professores vinculados ao Some costumam utilizar as dependências
da escola para a estadia durante as semanas do módulo.
Por se tratar de uma escola
na beira do rio, nos primeiros meses do ano, considerados os de inverno na
Amazônia, o local costuma sofrer com alagamentos e aparecimento de cobras e de
outros animais silvestres.
“Essa escola já teve sua
estrutura inteira reprovada pelo Corpo de Bombeiros, e a prefeitura municipal
sabe, mas não tomou providências. É um desafio a gente não surtar diante de
tantos obstáculos. Porque é uma odisseia para chegar lá, outra odisseia
permanecer. E, por fim, ensinar algo aos alunos. O que sobra de sanidade, a
gente guarda para exercer nossa função”, se queixa um professor que já
ministrou módulos nessa escola e pediu anonimato.
Mesmo nessas condições, a
escola Bom Jesus I está incluída no edital para contratação de professores em
cadastro de reserva para inclusão no sistema de educação à distância do Cemep.
“A escola não tem nem condições de receber alunos com aula presencial, imagina
com Cemep”, provoca o mesmo professor.
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No
ensino à distância, alunos não conseguem mostrar exercícios
Apesar da resistência da
categoria contra a implantação do Cemep, o sistema já vigora em várias escolas
do Pará. A reportagem visitou a Escola Emaús, situada na comunidade Novo
Paraíso, também em Igarapé-Miri. Composta por um pavilhão com três salas de
aula, um banheiro (que dispõe apenas de um vaso sanitário e não tem pia para
higiene das mãos), leva em sua fachada a inscrição “Patrimônio da Assembleia de
Deus”. Uma das salas de aula está cedida para o funcionamento do Cemep,
atendendo o segundo ano do ensino médio.
Durante a visita da
reportagem, oito alunos assistiam a uma aula de matemática em uma televisão de
60 polegadas. A transmissão é garantida a partir de um modem da Starlink
instalado na escola. O mediador responsável por manter a dinâmica em sala era o
professor Roberto de Cássio Viana, que assumiu a função em 30 de setembro e,
originalmente, atua nas disciplinas de estudos amazônicos, história e
geografia.
“Minha função como mediador
é chegar antes do horário, ligar equipamentos, receber os alunos, fazer a
chamada e aguardar o momento da aula. Como sou pedagogo, tenho conhecimento
básico das áreas”, disse. As aulas vão das 13h30 às 17h.
Com mais de 20 anos de
magistério, Viana conta que estava se adaptando ao novo formato, iniciado havia
pouco mais de três meses, quando a reportagem esteve no local. Alguns hábitos,
porém, fazem falta. “É uma adaptação. A gente chega aqui para dar aula, né? Tem
hora que a gente fica meio se segurando, mas não pode intervir, porque a aula é
do professor. Eu sou mediador”, explica.
Como mediador, ele é
responsável por reunir dúvidas e enviar para o professor de cada disciplina
após as aulas e garantir que os alunos não se distraiam com os aparelhos
celulares, já que se permite que acessem a mesma rede que transmite as aulas.
Segundo o professor, no Cemep, até mesmo as aulas de educação física são
transmitidas a partir da sede da Seduc, em Belém.
Durante a aula de
matemática, o professor passou aos alunos uma equação e deu um tempo para
resolução do problema. Para mostrar os resultados, cada mediador pede a vez na
transmissão, e um aluno pode mostrar seu resultado: com os cadernos na mão,
eles levam a folha junto à câmera para o professor avaliar se está correto ou
não.
Mas com mais de 80 salas de
aula conectadas, era inexequível, pelo tempo de aula, que todas as classes
tivessem alunos interagindo com o professor responsável pela transmissão. Em
pelo menos uma ocasião, foi possível notar que o professor não conseguiu
visualizar o resultado demonstrado pela resolução ruim de imagem. Com meia hora
de aula, uma tela preta: o sistema caiu e demorou 20 minutos para a reconexão.
“Por incrível que pareça, isso não acontece com frequência”, disse, no entanto,
o mediador.
Apesar dos problemas do
Some, os moradores de Igarapé-Miri ainda preferem o ensino à distância. É o que
ficou evidente em uma sessão realizada na Câmara Municipal da cidade para
discutir a permanência do sistema nas zonas ribeirinhas do município. A sessão
contou com a adesão de pais de alunos e professores do sistema, com direito à fala.
Chamou atenção o depoimento
de Soraia Souza, moradora da Vila Boa União desde a infância. Hoje com 50 anos,
ela conta ter interrompido os estudos aos 12 anos de idade devido à extinção da
escola na localidade. Ela só conseguiu voltar à escola nove anos depois, com a
implantação do Some. Foi quando conseguiu concluir os ensinos fundamental e
médio. E logo partiu para fazer faculdade de pedagogia.
Hoje diretora da Escola
Municipal Neusa Rodrigues, que atende do maternal ao 5º ano, Soraia critica a
ideia de substituir o regime presencial por educação à distância nos moldes do
Cemep. “A realidade do interior é diferente. Temos muitos problemas de energia,
às vezes passamos dois, três dias sem. Quando o tempo começa a fechar, o sinal
de internet vai embora. Não acredito que assistir aula pela televisão daria
certo aqui”, diz.
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Secretaria
nega mudanças
Em nota enviada à
reportagem, a Seduc negou que o Some será encerrado. “As áreas que já contam
com este sistema de ensino continuarão sendo atendidas por ele, no mesmo
formato, e a continuidade do programa está garantida, conforme artigo 46 e
anexo V, da Lei 10.820, de 19/12/2024. A lei criou uma gratificação de até R$ 7
mil, adicional ao salário inicial do professor pago pelo governo do Pará, que
hoje é de R$ 8.289,89, além de mais R$ 1,5 mil de vale-alimentação”, disse a
secretaria por meio de nota.
O Sintepp e representantes
contestam essa afirmação da Seduc. Em nota publicada em suas redes sociais, o
sindicato afirma que o texto da lei condiciona o pagamento da gratificação de
acordo com quatro níveis de complexidade, que variam de acordo com cada unidade
e têm critérios ainda a serem regulamentados pela Seduc.
Segundo o Sintepp, a nova
lei exclui direitos como o pagamento dessas gratificações nas férias de janeiro
e julho e em licenças superiores a 30 dias. “Não há regulamentação da lei
aprovada. Não sabemos de nada do que iremos receber, pois a portaria de lotação
de 2025 não foi divulgada pra nós, nem como será o nível de complexidade das
localidades”, afirma um professor que pediu para não ser identificado.
A Seduc disse ainda que
“também não é verdade que o ensino médio presencial será substituído por
educação à distância”. Na nota, a secretaria disse que não foi feito nenhum
pedido oficial de reunião”. Depois da invasão, a Seduc fez um pedido para que
as lideranças indicassem uma comissão, o que até o momento não aconteceu”,
continuou.
A reportagem questionou
ainda de onde partiu a ordem para que a imprensa não acessasse o prédio, mas
não obteve resposta.
Em entrevistas a emissoras
de televisão, o secretário Rossieli Soares afirmou que o movimento se tornou
“político” e que o governo negocia com entidades indígenas. As lideranças da
ocupação, porém, negam. “Queremos dizer ao secretário que não existe uma comissão
negociando conosco. Se ele diz que há uma negociação, até agora ninguém veio
sentar com a gente. Queremos a presença de quem tem autonomia para que possamos
sair daqui com uma portaria assinada e publicada no Diário Oficial”, disse o cacique Dada Borari.
“Estão tentando nos vencer no cansaço. Mal
sabem eles que nossos antepassados estão aqui nos dando força. Mal sabem eles
que a gente luta há mais de 500 anos e não vamos descansar. Portanto, saiam dos
seus gabinetes e venham conversar com o povo”, disse Auricélia Arapiun.
O MPF e o Ministério Público
do Estado do Pará (MPPA) movem ação na Justiça Federal para que cada um dos
povos e comunidades tradicionais do Pará seja consultado de forma livre, prévia
e informada, conforme estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), antes de qualquer tomada de decisão do Estado.
Até que essa consulta
ocorra, o poder público deveria interromper qualquer medida de mudança do
formato da educação indígena e deve garantir a manutenção da educação
presencial, defendem o MPF e o MPPA na ação.
Fonte: Por Alan Bordallo, da Agencia Pública
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