sábado, 18 de janeiro de 2025

Os nazistas não eram socialistas — eles eram hipercapitalistas

Um dos argumentos mais enfadonhos utilizados contra o socialismo é a alegação de o nazismo era de alguma forma “socialista” e, portanto, algo pelo qual a esquerda precisa responder. Os homens de Adolf Hitler direcionaram toda a economia para a guerra, colocaram o estado acima do indivíduo — e, como argumento decisivo, até se autodenominaram “nacional-socialistas“.

Podemos dar o assunto por encerrado? Não exatamente. Mesmo que outros partidos conservadores e liberais tenham, de fato, votado para dar plenos poderes a Hitler em 1933, seu regime foi caracterizado por significativas intervenções para ajudar os negócios privados. E o darwinismo social defendido pelos nazistas, que julgava aqueles “improdutivos” como mera despesa desnecessária, obedecia à lógica de julgar a vida humana pelo critério do lucro.

Em 2009, o historiador israelense Ishay Landa publicou o livro The Apprentice’s Sorcerer: Liberal Tradition and Fascism (O sacerdote do aprendiz: Tradição Liberal e Fascismo), um extenso estudo dos interesses econômicos e sociais que os nazistas realmente perseguiam. Nesta entrevista com a Jacobin, ele explica o que o termo “socialismo” significava para Hitler, como as visões políticas e econômicas do ditador estavam conectadas — e por que podemos ver os perigos do liberalismo econômico em Elon Musk na atualidade.

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·        Em seu livro, você examina as políticas econômicas e a ideologia dos nacional-socialistas na Alemanha. As políticas nazistas eram realmente socialistas?

Ishay Landa - Não, obviamente não. É verdade que os nazistas ocasionalmente usavam o termo afirmativamente. Algumas pessoas cinicamente se agarram a isso como algum tipo de evidência: “Eles eram socialistas porque se chamavam de socialistas!” Mas eles eram deveras antissocialistas, se pensarmos em qualquer sentido real do termo.

·        Então por que eles decidiram usar a palavra “socialismo”, afinal?

Ishay Landa - Temos que entender o contexto em que eles aplicaram o termo. Atualmente, os políticos de direita não usam mais esse termo. Por quê? Porque o socialismo não é mais tão popular. Mas, naquela época, os anticomunistas enfrentavam o desafio de ganhar acesso aos redutos socialistas e converter o máximo possível de eleitores da classe trabalhadora. Então, eles tinham que apresentar suas políticas de maneira que tivessem algum ponto comum com os interesses da classe trabalhadora. O truque era se beneficiar da popularidade do socialismo, que era amplamente visto como o que viria a ser uma força no futuro, mas ao mesmo tempo se distanciar o máximo possível de sua substância

·        Se os nazistas se autodenominavam socialistas apenas por razões estratégicas, como as políticas econômicas deles funcionavam na realidade?

Ishay Landa - Eles eram profundamente capitalistas. Os nazistas davam grande ênfase à propriedade privada e à livre concorrência. É verdade que eles intervieram no livre mercado, mas deve-se lembrar que foi uma época de falha sistêmica do capitalismo em escala global. Quase todos os estados intervieram no mercado na época, e o fizeram para salvar o sistema capitalista de cometer autofagia. Isso não tem nada a ver com o sentimento socialista, era pró-capitalista. De certa forma, há um paralelo aí com a forma como os grandes bancos foram resgatados pelos governos após a crise financeira de 2008. Tal comportamento, é claro, não refletia intenções socialistas de forma alguma. Foi apenas uma tentativa de estabilizar um pouco o sistema.

“Os nazistas davam grande ênfase à propriedade privada e à livre concorrência.”

·        Mas os capitalistas não prezam sempre pelo máximo de liberdade possível?

Ishay Landa - Não necessariamente. As intervenções estatais naquela época ocorreram em acordo com o sistema industrial. Os capitalistas até exigiram isso, porque as políticas de livre mercado nem sempre são do melhor interesse desse grupo. Às vezes, eles precisam do estado para socorrer o livre mercado. Então, as intervenções não foram simplesmente impostas à economia pelos fascistas — foi uma decisão consensual refletindo as exigências de muitas seções importantes do setor industrial. O objetivo era essencialmente orientar o sistema em favor das grandes empresas.

·        Como a ideologia política dos nazistas está relacionada a essa tentativa de estabilizar o sistema?

Ishay Landa - Hitler é frequentemente acusado de fazer com que suas visões políticas prevaleçam sobre interesses econômicos, uma alegação que é parcialmente verdadeira. Mas quais eram exatamente suas visões políticas? Se pensarmos nas obsessões mais radicais de Hitler — por exemplo, darwinismo social, eugenia ou antissemitismo — à primeira vista parece que elas só podem ser entendidas isoladamente de considerações econômicas. No entanto, se olharmos mais de perto cada um desses elementos, veremos que eles tinham uma base econômica indispensável.

·        Por nos dar um exemplo disso?

Ishay Landa - O darwinismo social é, na verdade, uma forma de hipercapitalismo. É do capitalismo que ele absorve esse foco de que a competição é uma luta de todos contra todos. E os nazistas argumentaram: “Bem, na natureza é assim que funciona.” Isso não é uma ruptura com o capitalismo, mas uma intensificação das visões econômicas. O capitalismo, na visão dos nazistas, é simplesmente uma parte da natureza. Então, não é apenas uma questão de dominação política, mas de naturalizar contradições econômicas. Hitler, na época, disse que “judeus” são os principais manipuladores que estão tentando pregar uma pequena peça na natureza para tornar a luta pela sobrevivência supérflua. A vontade de interferir na economia fez com que os judeus assumissem um papel de traiçoeiros, do ponto de vista nazista.

·        Mas essa visão muito positiva da livre concorrência e da luta de todos contra todos não é precisamente a marca registrada do liberalismo econômico?

Ishay Landa - Hitler não inventou nada disso, é claro; tais conceitos já eram comuns para o coletivo conservador e economicamente liberal. Podia-se ouvir declarações muito semelhantes, sobre a necessidade de competição implacável, no discurso econômico liberal da época. Que alguém como Hitler pudesse se tornar o “líder” de uma grande nação industrial era, afinal, o ápice de certas visões amplamente populares sobre economia e os devidos limites da atuação popular e política. As políticas de Hitler atendiam aos desejos de muitos industriais — e era isso que justamente o tornava tão atraente para grandes setores da burguesia e das classes tidas como educadas. Tinha-se a impressão de que os nacional-socialistas eram os libertadores da economia, livrando-a de fardos desnecessários como sensibilidade política e humanística.

·        Por meio da eugenia, por exemplo?

Ishay Landa - Exatamente. O assassinato de pessoas com deficiências físicas, mentais e psicológicas também estava diretamente ligado a preocupações econômicas — pretendia livrar a economia de pessoas que eram consideradas um fardo. A linguagem empregada pelo nazismo era bastante econômica e financeiramente voltada a esse respeito. Por exemplo, um cartaz de propaganda típico dizia: “60.000 Reichsmarks ao longo de uma vida: esse é o custo dessa pessoa portadora de uma doença hereditária para a Volksgemeinschaft [a palavra nazista para comunidade nacional]. Volksgenosse [camarada nacional], isso também vem do seu dinheiro.”

Até mesmo a Shoah está relacionada a considerações econômicas. Pois na ideologia nazista, os judeus eram vistos como o obstáculo maior. Obstáculo para o quê? Para o capitalismo, principalmente. Eles eram considerados a espinha dorsal do marxismo. Os nazistas interpretaram o marxismo como uma conspiração essencialmente judaica contra a economia capitalista — e, portanto, contra a ordem natural. Claro, a Shoah foi o resultado de muitos fatores e a culminação de várias obsessões, fobias e ódios nazistas. Mas entre todos estes, não se deve perder de vista este fator socioeconômico.

·        Mas então por que os nazistas foram capazes de chamar o marxismo de um grande mal que deve ser erradicado, enquanto usaram o socialismo como um slogan positivo para seu movimento?

Ishay Landa - O termo “socialismo” – no formato empregado por eles – não queria dizer nada que nós remotamente reconheceríamos como socialista, mas sim sua política de intervenção no livre mercado para o benefício dos capitalistas. Pelo termo “marxismo”, por outro lado, eles queriam dizer a social-democracia e a proteção dos direitos básicos dos trabalhadores. Em Mein Kampf, Hitler diz que sua visão de mundo antissemita atingiu completude no momento em que ele percebeu que os judeus eram os mentores da social-democracia. O discurso nazista era uma maneira muito conveniente — embora cínica — de manipular conceitos e atribuir a eles significados completamente novos.

“O termo ‘socialismo’ – no formato empregado por eles – não queria dizer nada que nós remotamente reconheceríamos como socialista, mas sim sua política de intervenção no livre mercado para o benefício dos capitalistas.”

·        Se isso é tão óbvio, por que houve esses debates recentes na Alemanha sobre uma suposta política socialista dos nazistas?

Ishay Landa - Bem, isso não é tão novo, e tem uma longa história. Já durante a época do fascismo, houveram tentativas de retratar os nazistas como socialistas, por exemplo, por Ludwig von Mises. Mas, de modo geral, os esforços para estabelecer uma ligação direta entre o marxismo e o nacional-socialismo vinham de uma minoria. Então, a partir da década de 1980, ocorreu um ponto de virada quando uma corrente revisionista começou a emergir nos estudos sobre o fascismo. Ela buscou vincular o fascismo muito mais fortemente com a esquerda política, com a revolução e com o anticapitalismo. Isso aconteceu em um momento em que o neoliberalismo estava começando a desmantelar o estado de bem-estar social, o que tornou esse movimento ideológico muito conveniente. Os defensores dessa política diziam: “Os nazistas, na verdade, defendiam uma forma autoritária de socialismo!” Atacar o estado de bem-estar social poderia, portanto, ser apresentado como um ato antifascista, uma resistência ao nazismo e uma limpeza de seus resíduos políticos.

·        Então, transformar nazistas em socialistas também é uma ferramenta para promover políticas contra os trabalhadores?

Ishay Landa - Isso mesmo. Quando foi que os intelectuais começaram de fato a escrever livros acusando os nazistas de terem buscado políticas econômicas socialistas? Quando foi que eles começaram a acusar os nazistas de terem ajudado as massas às custas da burguesia? Exatamente na época em que os políticos tentaram impor reformas neoliberais no mercado de trabalho. Dessa forma, a historiografia está ligada às realidades econômicas. Os formuladores de políticas usaram essas teorias para apoiar seus ataques ao estado de bem-estar social. Götz Aly, o historiador alemão, disse em uma de suas entrevistas na virada do milênio que era tarefa do governo social-democrata de Gerhard Schröder finalmente pôr fim à “Volksgemeinschaft“. Assim, ao liberalizar a economia, os últimos vestígios do nacional-socialismo seriam removidos da política alemã. Esse tipo de pensamento mostra como as tendências políticas atuais estão ligados às maneiras como percebemos o passado.

·        Mas os liberais alguma vez confrontaram o fato de que Hitler estava, em parte, promovendo o programa político deles?

Ishay Landa - Nunca houve um acerto de contas verdadeiramente eficaz e direto sobre esse legado. Nos anos do pós-guerra, houve um consenso de que o estado tinha que melhorar moderadamente a situação dos trabalhadores — mesmo dentro de uma estrutura liberal. Se houve uma admissão de culpa por parte dos liberais, foi feita com base na premissa de que as políticas nazistas não tinham sido um verdadeiro liberalismo. O liberalismo nazista — assim argumentavam os poucos acadêmicos que admitiam qualquer relação entre as duas ideologias — tinha sido malfeito, irremediavelmente antiquado e renunciado à dimensão democrática inerente ao liberalismo.

Mais tarde, no entanto, houve uma mudança radical. De repente, os liberais estavam muito mais inclinados a dizer: “O nacional-socialismo era socialista. E se você luta contra o socialismo para criar um mercado que seja o mais livre possível de qualquer interferência política, você é um bom antifascista.” Essa foi a fase muito mais duradoura e anti-“populista” do engajamento liberal com o passado.

·        Outra maneira de impor reformas economicamente liberais é vincular a liberalização social e econômica. Você acha que o liberalismo econômico sempre anda de mãos dadas com o progresso social?

Ishay Land - Acho que deveríamos fazer uma distinção entre as dimensões econômica e política do liberalismo. No começo, elas às vezes andavam de mãos dadas. Mas, em determinado momento, o aspecto econômico e político se afastaram. Os liberais então tiveram que decidir onde estavam suas prioridades. Eles são liberais econômicos que defendem a propriedade privada, a sociedade de classes e o livre mercado a todo custo, ou preferem que a democracia liberal realmente cumpra sua promessa de liberdade e autodeterminação para todas as pessoas? Essa contradição ainda não foi resolvida. E a necessidade de fazer uma escolha entre as duas opções permanece.

·        Por que não se pode ter os dois aspectos juntos?

Ishay Landa - O senso comum nos diz que o liberalismo sempre anda de mãos dadas com as liberdades políticas e individuais, o que às vezes é verdade. Mas o que é esquecido é que desde o início o liberalismo não se abriu apenas às possibilidades políticas, mas também as restringiu severamente. O que o liberalismo tinha que deixar claro desde o início era que a propriedade privada é intocável; que ela forma a base inatacável da ordem política.

Então, importantes pensadores liberais insistiram – desde John Locke – que você não pode taxar os ricos sem o consentimento deles. Se você fizer isso, você dá às vítimas dessas políticas uma boa razão para se rebelar e usar a violência contra os usurpadores. A política liberal, portanto, tinha uma opção ditatorial intrínseca desde o início. E assim se tornou um dogma presumir que a principal tarefa da política é proteger a propriedade, e seu principal pecado é ser invectiva contra ela. Mas é claro, essa é uma definição muito limitada do que a política pode ou deve fazer. E sofremos com esse confinamento até hoje. Em uma democracia ocidental típica, você pode fazer muitas coisas — desde que se abstenha de infringir a propriedade privada.

“O que o liberalismo tinha que deixar claro desde o início era que a propriedade privada é intocável; que ela forma a base inatacável da ordem política.”

·        Então há algo na estrutura básica do liberalismo econômico que realmente limita a liberdade das pessoas?

Ishay Landa - O capitalismo é essencialmente uma estrutura econômica antidemocrática: isso significa, acima de tudo, dominação sobre os trabalhadores. O capitalismo é hierárquico, não igualitário. Há também uma concentração massiva de riqueza, o que levanta uma questão crucial: como podemos redistribuí-la? O liberalismo clássico diz: “Não faça nada para mudar a situação”. Mas isso limita estritamente a esfera política e reduz enormemente suas possibilidades. Se mantivermos a economia isolada da deliberação política, a democracia será seriamente prejudicada. Então, a visão econômica liberal é dizer às massas: “Não tente ser muito lógico quando pensar em democracia! Não tente levar a democracia a sério. Isso só cria muitos problemas!”

·        E não tente melhorar a situação econômica para ninguém além da burguesia.

Ishay Landa - Exatamente. E esse continua sendo o caso até hoje. As declarações de Elon Musk fornecem ricos exemplos para o que estamos discutindo aqui, porque ele é bem franco e descarado sobre tudo isso. Ele disse recentemente que os americanos estão tentando fugir do trabalho duro e que eles deveriam seguir o exemplo dos trabalhadores chineses “que viram a noite trabalhando”. Essa é uma declaração muito clara porque, claro, ele sabe que os trabalhadores chineses não têm como resistir democraticamente às demandas de trabalho duro. Ele sugere que o sistema democrático é muito frouxo e indulgente e que precisamos de um sistema muito mais rigoroso para disciplinar os trabalhadores, para fazê-los trabalhar duro e aceitar salários baixos — um sistema como o que vemos na China.

·        Musk também anunciou recentemente que apoiará os republicanos. Isso apesar do fato de Donald Trump ainda desempenhar um papel central no partido.

Ishay Landa - Essa é uma boa indicação da opção ditatorial incorporada ao pensamento liberal. Não estou dizendo de forma alguma que todos os liberais apoiariam algo assim. Mas é muito difícil conciliar o liberalismo econômico e político. Como resultado desse enigma, alguns liberais políticos escolhem um caminho diferente economicamente, e outros oscilam entre os dois polos sem nunca realmente conseguirem resolver o conflito fundamental. Até certo ponto, pode-se argumentar que o socialismo é em si um filho do liberalismo político. Marx e Engels começaram como liberais políticos e nunca abandonaram as ideias básicas do liberalismo: liberdade e participação democrática para todos. Eles apenas desenvolveram seu conceito ainda mais porque reconheceram que, sob o capitalismo, as perspectivas para a realização de um projeto democrático genuíno eram seriamente limitadas.

 

Fonte: Entrevista com Ishay Landa, com tradução de Fernando Lunardello para Jacobin Brasil

 

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