A 'ciência do
impossível' que revoluciona o mundo, mas é ousada demais para sua época
A primeira
tentativa dos pesquisadores James Watson
e Francis Crick de tentar descobrir a estrutura do DNA, as moléculas
com informações genéticas dos seres vivos, foi um desastre.
O modelo estava
errado, e o chefe do laboratório de Cambridge onde eles pesquisavam, Lawrence
Bragg, disse em 1952 para a dupla parar de trabalhar com DNA.
Mas, no começo do
ano seguinte, quando o pesquisador americano Linus Pauling começou a investigar
o assunto, o surgimento de concorrência fez Bragg decidir dar mais uma chance à
dupla, como conta Mathew Cobb, no livro Life's Greatest Secret: The Race
to Crack the Genetic Code (O Grande Segredo da Vida: A Corrida para
Desvendar o Código Genético, em tradução livre).
Em 1953, Watson e
Crick tiveram contato com fotografias que seriam
parte da pesquisa de outra cientista — Rosalind Franklin — e, rapidamente,
desvendaram o mistério.
Em 1962, nove anos
depois, eles receberam o prêmio Nobel de
Medicina.
Seu trabalho em
biologia molecular transformou a genética, a compreensão científica sobre evolução e hereditariedade e foi a base
para o desenvolvimento da biotecnologia moderna.
Há muitos momentos
como esse na história da ciência, explica Sérgio Ferreira, diretor-executivo do
Ciência Pioneira, instituição de fomento à pesquisa que busca por jovens
cientistas com projetos ousados e transformadores como esse.
"São grandes
descobertas que permitem saltos e revoluções no conhecimento e redefinem nosso
entendimento sobre o mundo", diz ele.
"É o que a
gente chama de cientistas maverick." Ou seja, ousados como o
personagem de Tom Cruise no filme Top Gun, que tem esse
apelido.
"São
cientistas que questionam a ciência estabelecida e se arriscam em desafios
tecnológicos ou teóricos que pareciam impossíveis."
É o que também se
chama ciência de fronteira, pesquisas que se dedicam a expandir os limites do
conhecimento e muitas vezes convergem diferentes áreas — como a biologia
sintética, que combina princípios da biologia, da química e da engenharia.
O instituto Ciência
Pioneira tem editais que oferecerem bolsas para jovens pesquisadores que tenham
projetos de pesquisa ousados e inovadores — especialmente os que estão na
fronteira entre biologia e exatas como matemática e física.
Entre os pesquisadores
ligados ao instituto, está o biólogo Ivan Domith, que investiga possíveis usos
de ácidos clorogênicos (compostos naturais do café) na área de saúde.
Também há bolsistas
como a física Alice Marques, que estuda mecânica quântica
(a física de partículas subatômicas).
O edital mais
recente, lançado em julho, vai dar uma bolsa de R$ 160 mil por ano por três
anos para quinze jovens pesquisadores que completaram o doutorado há no máximo
cinco anos. Os escolhidos serão divulgados em abril.
·
Descobertas
que revolucionam o mundo
O exemplo mais
emblemático de salto científico do século 20 foi a teoria da relatividade geral de
Albert Einstein,
publicada em 1905, que mudou completamente a física ao mostrar que o espaço e o
tempo estão interligados e são relativos.
A virada do século,
aliás, foi cheia destes momentos na ciência: a descoberta da
radioatividade por Marie Curie em 1898; o descobrimento do campo magnético
rotativo por Nikola Tesla em 1882; a descoberta do elétron em 1897 por
Joseph John Thomson.
Nenhum desses
trabalhos surgiu no vácuo: a ciência sempre avança com base no conhecimento
coletivo produzido por pesquisadores que vieram antes.
"Mas os
grandes avanços acontecem quando pequenos grupos de cientistas corajosos
desafiam dogmas, lançam novos campos de estudo e exploram territórios
desconhecidos", diz Ferreira.
Como hoje todas
essas descobertas estão muito estabelecidas, é fácil esquecer que, quando são
feitas, o reconhecimento dos cientistas não costuma ser imediato.
Justamente porque
geram avanços grandes ou rompem com paradigmas da ciência,
pesquisas maverick acabam rejeitadas, ignoradas, e até mesmo
ridicularizadas por muito tempo até serem reconhecidas.
Em 1917, por
exemplo, a microbiologista americana Alice Catherine Evans propôs que o leite deveria ser pasteurizado (fervido
rapidamente a altíssimas temperaturas e, depois, resfriado) para evitar
contaminação por doenças.
Suas ideias foram
rejeitadas, porque ela não tinha um doutorado e por ser mulher.
Demoraram 13 anos
para que a pasteurização fosse introduzida nos Estados Unidos, em 1930, o que
rapidamente diminuiu os índices de contaminação por brucelose, uma doença
bacteriana que na época era muito transmitida através do leite.
Embora todos
consigam perceber o valor desse tipo de trabalho em retrospectiva, nem sempre é
possível prever o resultado quando um cientista propõe um trabalho ousado —
especialmente quando a pesquisa ocorre no campo da ciência de base, aquela que
não tem uma aplicação prática ou um produto final evidentes.
Foi o
desenvolvimento da matemática teórica, por exemplo, que possibilitou os
cálculos que levaram o homem à
Lua.
·
Mais
incentivo para mais descobertas
A ousadia e, muitas
vezes, a dificuldade de se enxergar um resultado prático a partir do trabalho,
dificultam o financiamento de projetos, afirma Ferreira.
"Esse
cientista maverick é movido muito mais pela curiosidade do que pelo
resultado imediato das pesquisas", diz ele.
Isso gera um ciclo
vicioso: muitos pesquisadores promissores acabam indo para áreas que já são
muito estudadas e onde já sabem que vão encontrar financiamento em vez de se
dedicar aos projetos que realmente queriam, diz Ferreira.
Historicamente,
muitos exemplos de grandes descobertas que demoraram para ser reconhecidas
vieram de cientistas que pesquisavam em universidades ou instituições estatais.
Um exemplo é o do
pesquisador do paleontólogo Robert Thomas Bakker, professor da Universidade
Johns Hopkins, nos Estados Unidos.
Em 1968, ele
argumentou que havia evidências de que alguns dinossauros tinham
sangue quente e evoluíram para pássaros. Ele foi visto como um criador de
controvérsia e não foi citado em outros trabalhos acadêmicos por décadas.
Mas foi o seu
estudo que deu início à chamada "renascença dos dinossauros", uma
renovação no interesse popular pelos animais que teve o pico nos anos 1990.
Ferreira, no entanto,
argumenta que hoje são necessários mecanismos além da academia e da indústria
para fomentar esse tipo de "ousadia científica", porque os modelos
tradicionais de financiamento ficaram progressivamente engessados.
A estrutura da
produção acadêmica, explica ele, é projetada para que exista um caminho de
desenvolvimento seguro e previsível com os poucos recursos existentes.
"Na academia,
os pesquisadores são incentivados a ter projetos que vão produzir resultados
publicáveis em jornais científicos em um cronograma previsível", diz
Ferreira.
Já no setor
privado, as pesquisas priorizadas são as que têm maior chance de resultar em um
novo produto ou tecnologia lucrativos, também de forma previsível.
"Enquanto essa
forma de produzir ciência é super importante, ela não deve ser a única",
defende Ferreira.
"Os
pesquisadores também precisam ser incentivados a explorar ideias pouco
convencionais e fazer perguntas incômodas."
O objetivo dos
editais do Ciência Pioneira, diz ele, é justamente gerar essa possibilidade.
Internacionalmente,
existem mais instituições não governamentais com programas de fomento de
pesquisas de ciência de fronteira.
A Fundação
MacArthur, por exemplo, e o instituto Bill and Melinda Gates, ambos dos Estados
Unidos, patrocinam projetos no mundo todo.
·
Ousadia
através dos séculos
Justamente por
serem incômodas e desafiaram as ideias predominantes no momento, muitas dessas
descobertas revolucionárias demoram anos, décadas — e até séculos — para serem
reconhecidas.
Os exemplos vão até
antes do desenvolvimento das universidades no modelo como conhecemos.
O médico e filósofo
persa Abu Bakr al-Razi, que viveu durante a Era de Ouro do Islamismo, no seculo
9, foi ridicularizado e até punido fisicamente após descobrir que a febre é um
mecanismo de defesa do organismo em 895.
Passaram-se mais de
400 anos para que a medicina adotasse amplamente esse conceito — e, hoje, o
médico persa é considerado o patrono da pediatria.
Alguns cientistas
foram até mortos — foi o caso do italiano Giordano Bruno, queimado por suas
ideias consideradas heréticas pela Igreja Católica no século 16.
Entre outras
descobertas científicas, ele descobriu que o Sol era uma
estrela como qualquer outra no universo.
Já Galileo Galilei, que viveu no
século 17, teve que pedir perdão e renegar suas descobertas para não ser morto
após dizer que a Terra girava em torno do Sol (na época, acreditava-se que era
o Sol que girava em torno da Terra).
Luigi Galvani, que
viveu no século 18, propôs que o sistema nervoso se comunicava através de
sinais elétricos.
Ele foi ignorado,
até que sua hipótese foi provada por diversos outros cientistas — e a produção
de eletricidade por processos químicos hoje é chamada de galvanismo em
homenagem a ele.
Além de Curie,
Tesla e Thomson, o século 19 foi cheio de cientistas que quebraram paradigmas —
e o início do século 20 também.
Nomes como o físico
Robert Goddard, que 1909 foi ridicularizado por propor que foguetes espaciais
poderiam ser movidos a combustíveis líquidos. O lançamento da nave Apollo 11 em 1969
provou que ele estava certo.
Francis Peyton Rous
descobriu que vírus podiam causar câncer em 1911 e foi ignorado por décadas —
até ganhar o prêmio Nobel em 1966.
A geneticista
Barbara McClintock descobriu em 1951 a recombinação genética e o cruzamento
cromossômico e teve suas pesquisas inicialmente rejeitadas. Ela só foi
reconhecida décadas depois, e ganhou o Nobel de Medicina em 1983.
Na mesma década, em
1982, o neurologista Stanley Prusiner descobriu os príons, mas suas ideias
também foram inicialmente rejeitadas.
O avanço da ciência
provou que ele estava certo e pouco mais de uma década depois, em 1997, ele
ganhou o Nobel de Medicina.
O imunologista
James Patrick Allison, conhecido com Jim Alisson, foi ridicularizado em 1994
quando propôs que as células-T do sistema imunológico eram capazes de ampliar a
capacidade do corpo de combater o câncer.
Sua ideias foram
sendo provadas e eventualmente levaram a criação de um remédio — o Yervoy,
aprovado em 2011 pela agência de saúde dos Estados Unidos.
Em 2018, Allison
dividiu o prêmio Nobel de medicina com o pesquisador japonês Tasuku Honjo.
Fonte: BBC News
Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário