O legado de
Eunice Paiva na luta por direitos indígenas
No terceiro capítulo da
última parte do livro Ainda estou aqui, do escritor Marcelo Rubens Paiva, e em
alguns minutos das cenas finais do aclamado filme homônimo,
a advogada Eunice Paiva (1929-2018) é retratada como uma mulher cujo papel para
a história recente brasileira foi maior do que a de simplesmente a viúva que
lutou para o reconhecimento da morte, cometida por agentes da ditadura, do seu
marido, o político e engenheiro Rubens Paiva (1929-1971).
Graduada em direito aos 47
anos – depois da perda do marido –, Eunice se tornou uma das pioneiras da luta
pelos direitos dos povos originários. "Aos poucos, ela se deu ao luxo de
atuar numa área que não dava dinheiro, mas pela qual se apaixonou
inexplicavelmente: o direito indígena", escreve Marcelo, no seu livro.
"Passou a atender e a representar nações indígenas que tinham suas terras
demarcadas não respeitadas."
"Eunice Paiva foi uma
das figuras mais importantes na luta pelos direitos dos povos indígenas no
Brasil, especialmente durante o período da redemocratização do
país", avalia o historiador Carlos Trubiliano, professor da Universidade
Federal de Rondônia (UNIR) e assistente técnico na Fundação Nacional dos Povos
Indígenas (Funai).
O ambientalista, filósofo e
escritor Ailton Krenak, que autou com
Eunice em algumas dessas questões e recentemente se tornou o primeiro indígena
a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, avalia que ela
"animou o debate sobre a falta de uma política pública na promoção do
reconhecimento e proteção das terras indígenas".
·
Debates
Um ponto simbólico dessa
luta foi o artigo publicado em 1983 no jornal Folha de S. Paulo,
intitulado Defendam os pataxós e escrito em parceria com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha,
hoje aposentada na Universidade de São Paulo (USP) e professora na Universidade
de Chicago, nos Estados Unidos.
"Ambas trabalhavam na
Comissão Pró-Índio de São Paulo, ONG fundada em 1978. O artigo foi um marco na
luta indígena brasileira e serviu de modelo para outros povos indígenas,
inclusive africanos, americanos e esquimós", contextualiza Marcelo,
lembrando que os povos nativos eram "tratados como um estorvo na ditadura
por fazendeiros aliados do regime".
Em 1985 Eunice publicou, com
a antropóloga Carmen Junqueira, hoje professora emérita na Pontifícia
Universidade Católica (PUC) de São Paulo, o livro O Estado contra o índio. Na obra elas traçam um panorama da legislação indigenista brasileira e
apresentam as violações dos direitos humanos cometidas contra esses cidadãos.
"[No livro, ela]
propunha perspectivas de soluções para a causa indígena, que se mostram
relevantes ainda na atualidade", avalia a psicóloga Mariana Festucci
Grecco, professora universitária, pesquisadora na USP e autora de artigo
acadêmico sobre a trajetória de Eunice. "[Ela defendia a] criação de
entidades de apoio à causa indígena e o fortalecimento da organização indígena,
com a promoção da autonomia cultura e autodeterminação das nações e comunidades
com colaboração recíproca, a inviolabilidade e a demarcação de suas terras, entre outros direitos."
Grecco comenta que a obra
apresenta "como os povos indígenas sofreram a expropriação sistemática de
suas terras, bem como o extermínio, ao longo de quatro séculos de
história". "E como a legislação brasileira ainda era incipiente em
proteger os direitos dos nossos povos originários", ressalta, lembrando
que a primeira legislação específica a tratar do assunto foi o código civil
instituído logo após a proclamação da República, situando "os direitos dos
indígenas de maneira restrita e tutelada".
"Eunice e Carmen
sinalizavam como ela era limitada em situar o indígena como pessoa e titular de
direitos, já que o contextualizava como 'relativamente' capaz para o
exercício de 'certos' atos da vida civil, ainda sob o regime de
tutela", detalha a professora.
·
Constituição de 1988
Especialmente ao longo dos
anos 1980, Eunice foi voz ativa na questão, influenciando os debates que
culminariam na maneira como os indígenas passaram a ser oficialmente tratados
pelo Estado a partir da Constituição de 1988. Marcelo
escreve que, para sua mãe, "a luta era a mesma" do que a encarnada na
questão dos desaparecidos políticos, torturados e mortos pela ditadura. "Se não conseguiu salvar o marido e tantos outros, tentaria
salvar os índios, numa ditadura enfraquecida, com uma sociedade civil mais
organizada e a imprensa livre", pontua ele.
Trubiliano ressalta que foi
fundamental a contribuição de Eunice para a formulação do artigo 231 da
Constituição, "um marco jurídico inédito no país, fundamental na garantia
e na proteção dos direitos das populações indígenas, assegurando aos povos
originários o reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, além do direito às terras que tradicionalmente
ocupavam".
·
Eunice ativista
"Depois de […] se
identificar com a dor, minha mãe se engajou com tudo: no Dia do Índio de 1984,
participou de um debate da TV Cultura [a respeito do tema, com a participação
de nomes como o de Krenak]", descreve o escritor. "Passou a ser
apresentada como assessora jurídica da Comissão Pró-Índio. Participou de vários
debates […]. Exigia a demarcação das terras indígenas. Denunciava que o governo
não parecia estar disposto a cumprir o que exigia a lei. Governo militar,
ainda. O que restava dele."
No livro em homenagem à sua
mãe, Marcelo conta que, nessa época, líderes indígenas frequentavam a casa de
Eunice, em São Paulo.
Em julho de 1984, a advogada
representou o Brasil no Congresso Mundial das Populações Nativas em
Estrasburgo, na França. "Ela passou a assessorar o Banco Mundial. Ficou
amiga de antropólogos, especialistas em meio ambiente, em energia", conta
o filho. "Passou a falar não mais como a viúva de Rubens Paiva,
representante de familiares de desaparecidos, mas como autoridade em direito
indígena representante do Banco Mundial."
Em 1987, em parceria com
outros ativistas, Eunice fundou o Instituto de Antropologia e Meio Ambiente,
ONG que funcionou até 2001 na defesa e autonomia dos povos indígenas. Também
foi ativa participante de outras organizações civis, como a Mata Virgem e a
Fundação Pró-Índio.
Em uma disputa que se
arrastou por anos, ela atuou para que a companhia Vale do Rio Doce indenizasse
as comunidades nativas em cujas terras foram construídas uma ferrovia, a
Estrada de Ferro Carajás, entre Pará e Maranhão. Ela advogou em
vários outros processos de contendas fundiárias — como ressalta o historiador
Tubiliano, "muitas vezes de forma voluntária, sempre em defesa da causa
indígena".
·
Advogada pela causa indígena
"Sua atuação enquanto
advogada e consultora em favor da causa indígena permitiu a correta
contextualização dos indígenas enquanto pessoa de direito, fundamental para a
elaboração da Constituição cidadã [de 1988], bem como o reconhecimento da
necessidade da correta demarcação das terras, muito embora durante o governo de
Jair Bolsonaro [de 2019 a 2022] tenha sido praticada a necropolítica, ainda sem
punição, contra nossos povos originários", afirma Grecco.
Na opinião do pedagogo
Alberto Terena, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas
Brasileiros, um aspecto importante do ativismo de Eunice foi associar "a
violência ocorrida durante a ditadura militar" à questão da defesa dos
povos originários.
Um exemplo visível foi o
fato de que a política do regime incluiu a construção de grandes rodovias rasgando
territórios próximos aos ocupados pelos indígenas. "Foi um dos motivos
maiores do massacre de nossos povos", analisa.
"Como advogada, creio
que ela foi uma das mais fortes bandeiras de nossa luta. Ela mostrou que o
processo contra os indígenas foi violento, brutal", ressalta Terena.
"Somos diversos em
todas as frentes de lutas civis contra a tendência autoritária, e Eunice Paiva
sobressaiu-se por sua persistência e coragem, discreta em sua maneira de
enfrentar o fascismo sem rosto até o fim", destaca Krenak.
O ambientalista comenta que
"esse quadro de violência" contra os povos originários enfrentado por
Eunice persiste até hoje, "agravado por decisões do Congresso"
buscando a mudança no que prevê a Constituição e tentando "impor o marco temporal, dispositivo
que proíbe demarcar terras de ocupação após a data da regulamentação
constitucional".
Fonte: DW Brasil
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