Sagrada Família: as
desconcertantes faces de Jesus, Maria e José segundo os evangelhos apócrifos
Um menino Jesus 'vingativo e
teimoso', que matava pessoas e animais. Uma Maria filha de um homem rico,
criada por religiosos no Templo de Jerusalém e que ficou grávida na
adolescência. Um José pai de seis filhos biológicos, viúvo e muito idoso —
tinha 92 ou 93 anos quando viu Jesus nascer.
Se os chamados
evangelhos canônicos — Mateus, Marcos, Lucas e João, que constam da Bíblia — não trazem
muitas informações biográficas sobre esses três personagens centrais do Novo Testamento, os textos
apócrifos buscam suprir tais lacunas.
E tais relatos, por
conterem informações que muitas vezes soam como dissonantes daquela imagem que
se criou em torno da Sagrada Família, acabam causando estranhamento e perplexidade
em muitos leitores.
Entendidos como
literatura, tais textos têm seu sentido naquele contexto. O que não quer dizer
que sejam verdade.
"Os evangelhos
canônicos são muito lacunares sobre a infância de Jesus e mesmo sobre a vida da
Sagrada Família. Porque eles focam, evidentemente, na ação apostólica de
Cristo", comenta à BBC News Brasil o pesquisador Thiago Maerki, estudioso
de textos do cristianismo antigo e membro da Hagiography Society, nos Estados
Unidos.
"Então, muitos
autores e grupos [nos primeiros séculos do cristianismo] começaram a escrever e
produzir os evangelhos [hoje chamados de] apócrifos, com informações que de
certa formam completam ou preenchem tais lacunas", explica.
"É um tipo de
literatura presente em outras tradições religiosas também. Faz parte do gênero
das vidas, ou seja, qualquer narrativa que procura narrar a vida de um herói,
de um santo, de uma figura importante."
Professor na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de, entre outros, A
Descoberta do Jesus Histórico, o historiador André Leonardo Chevitarese trata
os textos apócrifos da mesma maneira como lida com os canônicos: como
literatura — despindo essas narrativas da sacralidade, portanto.
"O chamado
material neotestamentário, concreta e efetivamente nos diz muito pouco sobre a
história do nascimento, da infância e da
adolescência de Jesus",
afirma ele à BBC News Brasil.
"E são temas
que vão de alguma forma despertar o interesse do público consumidor de
literatura e do público consumidor de histórias sobre Jesus."
Foi nesse contexto
que esses textos considerados apócrifos foram redigidos, nos primeiros séculos
do cristianismo.
"Ninguém foi a
arquivos buscar essas informações. São histórias que estavam na oralidade,
sendo inventadas e produzidas para saciar o desejo de informações, saciar
curiosidades dos cristãos acerca das vidas de Jesus, de Maria e de José",
comenta Chevitarese. "Esse é o princípio básico desse tipo de
literatura."
Autoridade no tema
no Brasil, o frade franciscano Jacir de Freitas Faria, presidente da Associação
Bíblica de Pesquisadores da Bíblia (Abib) e autor de seis livros sobre os
apócrifos, lança no início do ano Bíblia Apócrifa, uma edição
comentada que reúne esses evangelhos.
À BBC News Brasil,
Faria esclarece que esses textos "trazem mais informações sobre a Sagrada
Família porque eles foram escritos para complementar dados de fé que os
canônicos não registram".
"Trata-se de
curiosidades que podem ser verdadeiras ou não. Algumas narrativas têm o caráter
aberrativo, isto é, são puras fantasias", acrescenta.
A chamada
literatura apócrifa foi escrita provavelmente entre os séculos 2º e 7º. São
dezenas de obras. Segundo Faria, há sete sobre a infância de Jesus, 15 sobre
Maria e uma sobre José, dentre aqueles textos cujo conhecimento chegou aos dias
de hoje.
De certa forma,
esses textos buscavam responder a questões latentes nos primeiros grupos
cristãos.
"Das discussões
sobre a humanidade e a divindade de Jesus resultaram a literatura apócrifa
sobre sua infância. Resolvidas as questões teológicas sobre Jesus, as
comunidades exigiram que a Igreja tomasse posição sobre o papel de Maria na
história da Salvação. Diante disso, não poderia ficar de fora a vida de José,
recordado como carpinteiro e pai e criação de Jesus", enumera o frade.
Ele lembra que
essas narrativas literárias, porque circularam bastante e se tornaram
conhecidas em seu tempo, exerceram "forte influência sobre o cristianismo" naqueles
primeiros séculos e contribuíram para uma religiosidade "devocional e
dogmática" que perdura até a atualidade.
·
Gênio
indomável
No texto mais
conhecido sobre Jesus criança, o
Evangelho de Tomé Sobre a Infância de Jesus, o menino é apresentado como alguém
que já fazia milagres desde pequeno. Ali há a narrativa de que ele fez 12
pardais de argila e, quando foi repreendido, deu uma ordem para que os animais
ganhassem vida e fossem embora voando.
Quando um garoto
estragou sua brincadeira no riacho, ele se vingou fazendo-o "murchar
todo", perdendo a juventude. Quando um outro menino correndo esbarrou
nele, Jesus irritado disse-lhe "não continuarás o teu caminho" e ele
caiu e morreu.
"Trata-se de
um texto desconcertante em vários níveis, sobretudo no modo como nos retrata um
menino Jesus insensível e caprichoso", argumenta o professor Frederico
Lourenço, da Universidade de Coimbra, em comentário de seu
livro Evangelhos Apócrifos - Gregos e Latinos.
Por outro lado, o
texto também pinta Jesus como uma criança com inteligência acima da média,
principalmente a partir da interação com o professor de grego que ficou
encarregado de alfabetizá-lo.
Isso bate com o
relato canônico de Lucas, em que se conta que Jesus, ainda menino, ensinou os
doutores da lei no templo.
"A
inteligência do menino Jesus era tanta que ele nem precisou frequentar escola.
Ele sabia mais que os seus mestres. Ele teve três professores, um o desafiou e
morreu, outros dois o devolveram para José, pois não suportavam o voo da sua
inteligência", conta Faria.
"Um deles
afirmou que havia procurado um aluno e encontrou um mestre. A terceira tentativa
de educar Jesus vingou. Ele permaneceu na escola, após ter sido reconhecido por
todos como alguém de poder sobrenatural, divino."
O apócrifo também
demonstra que José, o pai terreno de Jesus, encarregava-se de repreendê-lo e
educá-lo. E o garoto também realiza milagres positivos, ressuscitando e curando
pessoas.
"O lado
malvado e vingativo menino Jesus é problemático, mas plausível de
compreensão", contextualiza Faria. "Muitos relatos apócrifos da
infância de Jesus não são aceitos por nós, por se tratar de aberrações, as
quais nossos ouvidos não estão acostumados, mas que poderiam, sim, terem sido
realizadas pelo menino Jesus, caso quisesse, pois ele era Deus, já desde
pequeno, pensavam os autores desses escritos."
Nesse sentido, a
narrativa pretendia retratar um menino que era senhor da vida e da morte.
"O grande exagero […] é o de afirmar que Jesus matou pessoas e
animais", diz.
"Nos
canônicos, ele mata uma figueira que não dá frutos e afunda porcos que recebem
demônios em seus corpos aos entrarem no mar, afogando-se todos. Há de se
considerar que, nos canônicos, não encontramos relatos sobre Jesus matando e,
depois, ressuscitando, como no caso do professor [de grego] que o
desafiou", pontua o especialista.
"Todas essas
narrativas canônicas e apócrifas cumprem a função de demonstrar que Jesus, por
ser Deus, tinha o poder sobre a vida e a morte. É uma questão de
divindade", esclarece.
Segundo Faria, há
um paralelo em narrativas de grandes heróis do mundo greco-romano, em que as
habilidades do adulto já eram ressaltadas na infância.
"Os apócrifos
da infância contam sim a história de um menino travesso, poderoso e malvado,
gnóstico, sábio, capaz de realizar milagres, farol de luz para a sua família.
Creio que a intenção dos autores não era polemizar, mas sim clarear essa fase
da vida de Jesus que ficou na penumbra, sanando curiosidades dos
cristãos", analisa o frade.
Maerki classifica
esses evangelhos como hiperbólicos por "exagerarem para enfatizar
justamente a força e o poder de uma criança". "Um menino Jesus que se
irrita com seus amiguinhos e que usa poderes sobrenaturais para prejudicá-los
seria impensável do ponto de vista tradicional da Igreja", avalia.
·
A
adolescente grávida
No caso de Maria,
mãe de Jesus, a literatura apócrifa busca responder a questões biográficas
sobre como ela teria engravidado de Jesus. Naquele princípio de cristianismo,
começava-se a construir o dogma da virgindade da santa.
"A literatura
apócrifa sobre Maria, aquela que não foi considerada inspirada pela Igreja, foi
a responsável para fortalecer o culto a Maria. Mais de uma dezena de apócrifos
marianos contam a sua história", comenta Faria.
No século 2º
existiu um filósofo grego chamado Celso que era um grande crítico do
cristianismo. Ele escreveu um ensaio dando como verdade uma história que
circulava de que Maria havia engravidado, na verdade, de um soldado romano de
origem fenícia chamado Tiberius Julios Abdes Pantera (22 a.C. - 40 d.C.).
"Não quer
dizer que a versão de Celso seja verdadeira, mas isso indica o papel dessa
literatura cristã que trata do nascimento de Jesus. Não serve apenas para
preencher vazios, mas também para responder [a críticas]", diz
Chevitarese.
Nos textos
apócrifos, os dogmas envolvendo a pureza de Maria são cristalizados. Conta-se
que ela foi concebida sem que seus pais, que eram de uma família de posses,
tivessem tido relações sexuais, ficou grávida sem ter "conhecido
homem" e permaneceu por toda a vida assim, casta e virgem.
"Esses dados
nos mostram como, no início do cristianismo, a virgindade de Maria foi
valorizada. A virgindade era fruto de um modo de pensar que desprezava o
corpo", diz Faria. "Os primeiros cristãos foram influenciados pelo
pensamento dualista que pregava a separação entre alma e corpo, trevas e luz,
vida e morte, Deus e mundo. Tudo o que pertencia ao mundo era desprezado, pois
esse era uma armadilha dos poderes do mal."
Maria teria sido
levada ao Templo de Jerusalém aos 3 e ali educada e criada em um recinto
próprio para as virgens. Nove anos mais tarde, quando ela entrava na adolescência,
entendia-se que era necessário que ela fosse "dada em matrimônio".
Dentre todos os
homens da comunidade reunidos, um sinal indica que o escolhido deveria ser
José, um viúvo e idoso homem considerado justo. Ela teria ido morar com o pai
terreno de Jesus quando tinha de 12 para 13 anos e engravidado aos 14.
·
O
idoso que chegou aos 111 anos
Pouquíssimo
mencionado nos textos canônicos, José ganha contornos biográficos no material
chamado de apócrifo. Em História de José, o Carpinteiro, o personagem é
apresentado como um homem "instruído no conhecimento e na doutrina",
que se dedicava à "arte da carpintaria" e havia se tornado
"sacerdote no templo".
O relato diz que
"à maneira de todos os homens, desposou uma mulher". Isso teria
ocorrido quando ele já tinha 40 anos de idade e deste casamento nasceram quatro
filhos e duas filhas: Judas, Justo, Tiago, Simão, Ássia e Lídia.
José ficou viúvo
aos 89 anos. "Um ano depois da morte dela, a bem-aventurada Maria […] foi
entregue a José pelos sacerdotes, para que ele a guardasse até a altura das
núpcias", diz o texto. Eles teriam vivido juntos por dois anos "sem
ocorrência especial" e, no "terceiro ano da morada dela com José,
tendo ela 15 anos de idade", teria nascido Jesus.
O apócrifo relata
que José, "aquele ancião justo", morreu com 111 anos de idade —
quando Jesus tinha 18, portanto.
Segundo Faria,
trata-se de "relato historiográfico" que "não pode ser
classificado como histórico". "José é apresentado como esposo
carinhoso de Maria e pai terreno de Jesus", comenta.
O objetivo de
trazer uma biografia de um ancião, conforme explica o frade, "foi de dar
uma resposta ao grupo de cristãos que não acreditavam na virgindade de
Maria". "Ao frisar que ele era um idoso, [estava implícito que] não
teve relação marital com Maria, respeitando sua condição de virgem", diz
Faria.
Chevitarese
acrescenta que a ideia era tarimbar a Sagrada Família como uma família
tradicional daquele contexto. "A chave da leitura é entender o que está
acontecendo no final do século 1º e em todo o século 2º em diante: pesava sobre
Jesus o fato de não se conhecer, de não se saber quem era o seu pai. Este era o
ponto central", analisa o historiador.
"José tem o
papel de dar sustento a uma mãe que estava sendo acusada até mesmo de
prostituição", diz Chevitarese. "Havia toda uma preocupação [dos
cristãos primitivos] de construir a base familiar da narrativa de Jesus."
·
Vozes
alternativas abafadas
Para o frade
franciscano Faria, "a história apócrifa da Sagrada Família é simplesmente
um modo de mostrar a encarnação de Deus no meio de nós".
"Os apócrifos
nunca serão considerados inspirados, e nem isso deve ser a nossa bandeira de
luta. Basta respeitá-los como formas de cristianismos que procuraram ser
verdadeiros, mesmo que não tenham sido considerados como tais", afirma
ele. "Basta também compreender que eles foram vozes alternativas abafadas
e perseguidas pelo cristianismo que se tornou hegemônico, num misto de poder e
heresias."
Fonte: BBC News Brasil
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