sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

'Enquanto Força Nacional estava em um canto, a aldeia era atacada por outro': Ava Guarani diz do descontrole no PR

Os primeiros dias de 2025 foram traumáticos para o povo Ava Guarani, no Oeste do Paraná. Na primeira semana do ano, um ataque de pistoleiros alvejou duas crianças e dois jovens dentro da Terra Indígena (TI) Guasu Guavirá, cuja demarcação foi emperrada por conta da aprovação do marco temporal no Congresso Nacional.

Os tiros se somam às outras ofensivas contra o território, especialmente desde o final de 2023. De lá para cá, “12 pessoas foram feridas por arma de fogo, carregando até hoje cicatrizes e chumbo no corpo”, relata a liderança Ilson Soares Karai ao programa Bem Viver desta quinta-feira (16).

Depois do ataque da primeira semana do ano, o governo federal enviou um reforço da Força Nacional, que já estava presente na região. Nos últimos dias, Soares Karai relata que “a situação se mantém num certo controle, mas ao mesmo tempo, a gente não fala que está tranquilo, porque todos esses ataques foram muito traumáticos”.

Embora a liderança reconheça a importância do reforço militar, ele relata que os pistoleiros são “pessoas muito bem treinadas” e que os “ataques foram ataques planejados e aconteceram, assim, de surpresa, porque enquanto a Força Nacional virou as costas por um minuto, o ataque aconteceu”.

“Enquanto a Força Nacional estava em um canto, a aldeia foi atacada por outro canto”, relembra Soares Karai.

O conflito na região é antigo, e remonta a antes mesmo da construção da hidrelétrica Itaipu, que atingiu diretamente o povo indígena. A usina, resultado de um acordo da ditadura militar brasileira com o governo paraguaio, foi feita na década de 1970 e causou a expulsão de comunidades inteiras, além do fim de um ponto sagrado aos Ava Guarani, as Sete Quedas de Guaíra, que deram lugar ao lago de Itaipu.

Após os ataques do início deste ano, a Justiça Federal proibiu o povo Ava Guarani de ocupar e promover movimentações dentro do Parque Nacional do Iguaçu (PNI), no Oeste do Paraná, sob pena de multa diária de R$1 mil. A determinação do juiz Sérgio Luís Ruivo Marques atendeu uma ação de interdito proibitório proposta pelo Instituto Chico Mendes de Conservação de Biodiversidade (ICMBio), que administra o parque, e segundo o qual há “risco iminente” de “invasão” de áreas por indígenas. 

“É um absurdo”, resume Ilson Soares Karai.

“Lá é o nosso espaço territorial ancestral, considerado para nós sagrado. Não só o espaço que a gente ocupa, mas também o planeta em si. Porque para nós o planeta é o nosso irmão. A Terra é a nossa mãe, a gente chama a Terra de Mãe Terra, porque é dela que a gente nasceu e é sobre ela que a gente vive, é dela que a gente tira o nosso sustento e é por ela que a gente vai ser acolhido quando a gente tombar”, explica a liderança.

Além dos pistoleiros, Ilson Soares Karai afirma que boa parte da população urbana da região ameaça os indígenas. Segundo ele, a comunidade tem problema em andar nas ruas de Guaíra ou Terra Roxa, ambas no Paraná.

A liderança atribuiu essa situação a mentiras que são espalhadas, especialmente, pelos veículos de rádios locais.

“Eles conseguem fazer com que a sociedade inteira fique contra os guaranis, tanto é que aqui no município a gente não tem liberdade de sair na rua, tem muitas tentativas de atropelamento, tem pessoas que apontam arma para a nossa cara quando a gente sai na rua, então aqui é uma situação bastante caótica, o que a gente está vivendo hoje é uma calamidade”.

Depois do início deste governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério dos Povos Indígenas iniciaram uma negociação com a usina de Itaipu para achar uma solução para o conflito.

Uma câmara de conciliação foi instalada na Advocacia-Geral da União. O chefe da AGU, Jorge Messias, confia numa resolução ainda neste ano.

Enquanto isso, o relato dos indígenas é que a situação está no seu pior momento.

“Hoje, por mais que pareça tranquilo, por mais que pareça que está tudo quieto, as famílias não dormem durante a noite. Os xondaro [guerreiros guarani] ficam monitorando as divisas da aldeia, comunicando qualquer movimento que acontece nas divisas, carro suspeito, pessoas suspeitas, então todo mundo fica nesse alerta. As mães que ficam em casa também não conseguem dormir, ficam preocupadas com xondaro que estão fazendo ali o monitoramento da aldeia”.

 

¨       Roraima: indígenas venezuelanos são assassinados em abrigo desativado da Operação Acolhida

“Eu te amo muito, papai. Não me deixe aqui”, suplicava aos prantos, ao lado do caixão, um dos filhos de Yerffersson de Jesus Montilla Matos, de 39 anos. O indígena venezuelano, da etnia Warao, foi assassinado a tiros ao lado da esposa, Myiela Perez Cardona, de 34 anos, em 8 de janeiro, no abrigo desativado da Operação Acolhida chamado de Pintolândia, em Boa Vista, capital de Roraima. Cardona também foi atingida e faleceu no hospital.

As famílias se preparavam para dormir quando um homem armado entrou no abrigo e foi até o barraco de lona onde vivia o casal e seus sete filhos e disparou contra Matos e Cardona. Um bebê, de quatro meses, filho do casal, também foi atingido na mão e segue internado no Hospital da Criança de Boa Vista, mas sem risco de morte. 

O assassino do casal indígena deixou sete crianças e adolescentes órfãos, que hoje estão sob a tutela da avó materna.

Segundo a Agência Pública apurou, sete dias após o assassinato, o boletim de ocorrência do caso ainda não foi despachado para nenhuma das equipes de investigação do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de Roraima. O despacho é um ato importante para direcionar a condução da apuração do caso. Questionada, a diretora da repartição, delegada Miriam Di Manso, disse à Pública que diligências estão em curso e o “despacho é mera formalidade”. 

<><> Por que isso importa?

A Operação Acolhida, que recebeu cerca de 1 milhão de pessoas, é a maior operação de migrantes da história recente do Brasil.

O caso está sob investigação pela Delegacia Geral de Homicídios (DGH) de Roraima, departamento subordinado ao DHPP, de responsabilidade do delegado João Luiz Evangelista Batista dos Santos, que disse por meio de nota à Pública que “diligências estão em andamento para identificar os autores do crime, a motivação e as circunstâncias”.

“Todo mundo com medo, preocupado, desesperado e assustado”, disse o indígena Pablo (fictício), de 40 anos, morador do abrigo, cuja identidade não será divulgada em decorrência do receio de que o atirador volte. 

As famílias que vivem no abrigo Pintolândia precisam enfrentar também fome, desnutrição e moradias precárias. Segundo os indígenas, ninguém havia assistido a um episódio de violência semelhante a esse desde a sua inauguração, em dezembro de 2016, antes mesmo do início da Operação Acolhida. 

<><> Pelo menos sete tiros foram disparados

A equipe de perícia técnica da Polícia Científica de Roraima contabilizou dentro do abrigo, ao menos, sete projéteis de uma pistola de calibre 380, que, dependendo do modelo, pode custar até R$ 12 mil. 

“Às 19h50, começaram a atirar e todo mundo, assustado, correu e abraçou suas famílias no chão”, contou Rodriguez sobre o momento em que o atirador abriu fogo dentro do abrigo. 

Myiela Cardona foi baleada enquanto segurava o filho de quatro meses no colo. Ela foi atingida por quatro disparos no braço, tórax, mamilos e pescoço. O bebê foi atingido na mão. 

Na porta do abrigo, a indígena tentava resistir aos ferimentos enquanto a equipe de resgate não chegava. Segundo Pablo, a ambulância chegou após duas horas. Ela foi socorrida e levada ao pronto-socorro do Hospital Geral de Roraima (HGR), mas não resistiu e morreu dois dias depois, na madrugada de 10 de janeiro. 

Dentro de um barraco montado com lonas e madeiras, estava Yerffersson Matos já sem vida e com o corpo estendido sobre a cama. Ele estava com três ferimentos de arma de fogo, disparados à queima-roupa. 

Testemunhas disseram aos guardas civis municipais de Boa Vista que atenderam à ocorrência que o atirador era um homem alto, de cabelos claros, branco e com uma tatuagem de tigre no braço, mas o seu rosto não pôde ser visto, pois usava um capacete. Após ter efetuado os disparos, ele fugiu de moto com um suposto comparsa. 

A DGH trabalha inicialmente com a hipótese de um acerto de contas, em virtude dos depoimentos colhidos na comunidade na noite em que o duplo homicídio ocorreu. 

Na noite seguinte, enquanto a comunidade Warao ainda se recuperava do crime brutal, um grupo composto por oito homens entrou no Pintolândia e questionou aos moradores se Yerffersson Matos havia mesmo morrido. “Desde que sucedeu a morte do casal, começaram a entrar [homens armados] agora”, contou Pablo Rodriguez. 

Como forma de garantir a segurança dos moradores da comunidade, os tuxauas – lideranças indígenas entre os Warao – optaram por colocar cadeados e trancar os portões todos os dias a partir das 20h. 

“Ninguém vem aqui [fazer] segurança […] Qualquer ruído de moto, nós ficamos com medo”, disse o Warao. 

O governo do estado disse que “a Polícia Militar de Roraima ressalta que realiza policiamento da área, por meio do 2º Batalhão de Policiamento Militar e unidades especializadas, como Grupamento Independente de Intervenção Rápida Ostensiva (Giro), Força Tática, Batalhão da Polícia de Choque e Canil”.

<><> Povo Warao cobra investigação em meio ao luto

O dia 11 de janeiro, pela manhã, era de sol em Boa Vista. Em contraste, o velório e sepultamento do casal foram marcados por comoção e choros histéricos, que demonstraram a indignação pelo crime brutal que enlutou a comunidade indígena que vive no Brasil. 

Na noite seguinte ao duplo homicídio, o carro do Serviço Funerário Municipal de Boa Vista deixou o caixão de Yerffersson Matos no abrigo Pintolândia, onde foi conduzida a cerimônia de velório. 

Três dos sete filhos do casal se aproximaram da urna funerária assim que ela foi posicionada em um espaço destinado à celebração da memória de Matos. Um deles clamava pelo pai morto enquanto segurava a borda do caixão. 

Representantes do povo Warao no Brasil emitiram uma nota de repúdio ao assassinato de Matos e Cardona, na qual lamentam o crime e exigem das autoridades brasileiras que “conduzam uma investigação rigorosa e transparente sobre este crime hediondo, que não pode ficar impune”. 

“Nós, do povo Warao, viemos a público expressar nosso profundo repúdio e indignação pelo brutal assassinato de uma mulher Warao, ocorrido na noite de quarta-feira, no abrigo Pintolândia, em Boa Vista. Este ato de violência, que também resultou na morte de seu cônjuge, é uma tragédia que não apenas ceifou vidas, mas também deixou sete crianças desprovidas de seus pais e em situação de vulnerabilidade extrema”, diz o documento. Leia na íntegra.

<><> Abrigo desativado 

As primeiras famílias Warao chegaram ao ginásio desativado em Pintolândia, bairro de Boa Vista, em dezembro de 2016, antes de o governo brasileiro implementar a Operação Acolhida, iniciada em 2018, como resposta à chegada massiva de migrantes e refugiados no estado de Roraima, em virtude da crise política e econômica da Venezuela. 

Pablo contou que, quando as famílias chegaram ao ginásio, o local estava abandonado, sujo e repleto de insetos. A limpeza e a divisão do espaço foram feitas pelos Warao. 

Com a chegada do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), o espaço passou a ser administrado pela ONU e o Exército Brasileiro, que eram responsáveis por distribuir alimentos, auxiliar os indígenas venezuelanos na retirada de documentos para estadia permanente ou de refúgio no Brasil e a segurança do espaço. 

No entanto, Pablo narrou que os indígenas perderam autonomia ao longo dos quatro anos em que a Operação Acolhida ficou à frente do Pintolândia. Eles reclamam também de terem sido restringidos no direito de praticar os seus costumes e passaram a lidar com a violência dos militares das Forças Armadas. A Pública ouviu relatos de xenofobia por parte de vigilantes, militares e funcionários dos abrigos da operação, que foram contestados pela organização.

“Vimos o maltrato dos militares e da ONG, o Acnur. Eles não nos respeitam como humanos e povos indígenas. Para eles, o tuxaua não tem autonomia”, denunciou o indígena.

Em março de 2022, no entanto, um novo abrigo indígena foi aberto pelo Acnur e houve a proposta de que os Warao, que moravam no Pintolândia, se mudassem. Mas a comunidade resistiu e optou por manter-se no ginásio de forma autônoma.

Procurada, a Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social (Setrabes) do governo estadual disse que “tem acompanhado e implementado ações contínuas de proteção e assistência aos indígenas venezuelanos da etnia Warao residentes na ocupação espontânea”.  

O Acnur, por sua vez, respondeu que “não administra o abrigo Pintolândia desde 2022” e que o “abrigamento é emergencial e temporário, não sendo uma solução duradoura”. 

O Ministério da Defesa, pasta que supervisiona a Operação Acolhida, disse, por telefone, que o abrigo Pintolândia não é mais de responsabilidade da operação. 

 

Fonte: Brasil de Fato/Agencia Pública 

 

Nenhum comentário: