Eduardo Vasco: O
perigo Milei e sua política de terra arrasada na Argentina
Em
novembro do ano passado, a revista The Economist deu início a uma operação
propagandística com o objetivo de apresentar Javier Milei ao mundo – em
especial aos latinos e sul-americanos – como um herói do povo argentino. Foram
uma entrevista especial, um artigo de opinião do punho do presidente argentino
e três podcasts em seu site louvando o “milagre econômico” causado por sua
terapia neoliberal. Pouco depois, a publicação dos banqueiros britânicos
inseriu a Argentina no top 5 de “países do ano”, entre os que supostamente mais
melhoraram. “Pode ganhar nosso prêmio pela reforma econômica” – anunciou a
revista –, que “deu resultado: a inflação e os custos dos empréstimos caíram, e
a economia começou a crescer novamente no terceiro semestre”.
Todos
esses elogios talvez sejam porque Milei está entregando o ouro para os
banqueiros britânicos (literalmente). Ele já retirou US$ 1 bilhão em reservas
de ouro do Banco Central (estimadas em US$ 4,6 bilhões) para enviá-las à
Inglaterra. Calcula-se que 60% das reservas argentinas de ouro tiveram Londres
como destino nos últimos anos. Nunca é demais lembrar que a Argentina mantém
até hoje um contencioso com a Inglaterra pelas Ilhas Malvinas, território
argentino ocupado pelos britânicos que gerou a mais recente guerra aberta com
uma potência estrangeira na América do Sul.
Mas a revista
não disse nada sobre o aumento assombroso da pobreza, da miséria e da fome. Em
seis meses de governo Milei, 53% dos argentinos já eram considerados pobres (o
pior índice em mais de 20 anos). Para fins de comparação, em meados de 2022 esse índice era de 36,5% e
em meados de 2023 era de 40%. Dois terços dos
menores de 14 anos são pobres, enquanto 18% da população vive hoje na
indigência. Os aposentados na pobreza passaram de 17,2% para 30,8% nos
primeiros seis meses de gestão Milei, de acordo com pesquisadores acadêmicos –
que afirmam ainda que a pobreza afeta até mesmo os trabalhadores plenamente empregados, em
38%. Antes os aposentados e os empregados formais “gozavam de certo tipo de
proteção diante da pobreza”, dizem os pesquisadores. “Agora estão vendo piorar
suas condições de vida e se veem atingidos pela pobreza.”
Um
estudo publicado em agosto pelo Centro Estratégico Latino-americano de
Geopolítica (Celag), porém, constatou que o índice real de argentinos vivendo
na pobreza é maior que 73%.
A taxa
de desemprego era de 5,7% no terceiro trimestre de 2023. Um ano depois, já sob
Milei, ela cresceu para 6,9% – tendo alcançado 7,7% no primeiro trimestre de 2024. Mas os
índices enganam. Também aumentou o percentual de empregados procurando mais um
emprego (+2%), subempregados (+1%) e o de subempregados procurando trabalho
(+1,3%).
De
acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (INDEC), os salários
tiveram um aumento de 172% em outubro de 2024, em comparação com o mesmo mês do ano
anterior. Porém, a inflação foi de 193% em outubro no acumulado dos 12 meses anteriores.
Uma perda real de 21% no poder aquisitivo dos trabalhadores. Nos oito primeiros
meses de governo, Milei reduziu em mais de ⅓ os subsídios para a conta de energia
elétrica e em mais de ¼ os subsídios para o transporte e os programas sociais.
Portanto, encarecendo esses serviços.
Todos
os dias, centenas de argentinos enfrentam filas enormes para cruzar a fronteira
com o Brasil para poder comprar produtos básicos à metade do preço. “Somos de
classe média e sempre vivemos bem, mas agora ficou complicado”, disse uma
senhora à reportagem do canal C5N, nos
limites com Foz do Iguaçu. “Na Argentina está impossível, não dá nem para
comprar bife”, afirmou um homem. As pessoas vêm ao Brasil comprar frutas,
verduras, frango, carne bovina e até mesmo arroz e feijão. “Um quilo de arroz
na Argentina vale o mesmo que três quilos de arroz no Brasil”, declarou outra
mulher. Quando o repórter perguntou desde quando ela enfrenta essa situação,
seu marido respondeu: “desde que Milei entrou.”
Trata-se
de uma política de terra arrasada. Segundo o INDEC, o índice de produção industrial
manufatureira é negativo e caiu mais de 10% entre janeiro e novembro de 2024
comparado com o mesmo período de 2023. A área da construção teve uma redução ainda mais assustadora: 23,6% em um ano,
enquanto o setor metalúrgico diminuiu 12% entre meados de 2023 e meados de 2024
– com uma queda de 17% na produção de maquinário e outros 17% na fundição. Em
um evento com industriais, o governador de Buenos
Aires, Axel Kiciloff, disse que a capacidade instalada da indústria “está na
metade”.
Milei
está entregando a economia argentina para o capital estrangeiro –
particularmente o imperialismo. Na semana passada, ele privatizou a Impsa, uma
das mais importantes companhias do país, com quase 700 funcionários que
participam em projetos-chave nos setores hidrelétrico, nuclear, petrolífero,
gasífero e eólico. Quem comprou a empresa foi a estadunidense ARC Energy, de
propriedade de financiadores da campanha de Donald Trump.
O novo
ocupante da Casa Branca, por sua parte, é um defensor do protecionismo da
indústria norte-americana e quer os Estados Unidos “grandes novamente”. Milei
também tem se mostrado um protetor das empresas dos EUA e que quer ver os EUA
tão grandes que ocupem a Argentina, ao que parece. Outro exemplo é a concessão
da Hidrovía Paraná-Paraguay, administrada em conjunto por uma empresa belga e
outra argentina até 2021, quando passou para as mãos do Estado. Milei abriu uma
nova concessão no final do ano e retirou a possibilidade dos chineses vencerem
a licitação (sendo os favoritos para tal) ao impedir que ela fique em mãos de
empresas estatais. A rota é responsável por 80% das exportações da Argentina e
um ativo geopolítico estratégico para os Estados Unidos, que já está bem
posicionado naquela zona através da DEA – e também no Ushuaia, graças ao
estabelecimento de uma “base naval conjunta” anunciada por
Milei após reunião com o Comando Sul dos EUA na Patagônia em abril.
Já no
noroeste do país, encontra-se um dos principais locais de extração de lítio. A
Argentina tem uma das maiores reservas (20% do total global) e é uma das
principais produtoras de lítio do mundo. Elon Musk, financiador e agora membro
extra-oficial do governo Trump, também se tornou amigo de Milei e já tem planos
para a extração da riqueza tão preciosa para os carros elétricos da Tesla. Em
2022 já era sabido que ele estava investindo na Argentina, e queria dobrar o volume da extração nos anos seguintes.
Um pouco antes, ele havia revelado que apoiara o golpe de 2019 contra Evo
Morales na Bolívia, e que não pararia por ali: “vamos dar golpe em quem
quisermos.”
O
outsider Milei conquistou o apoio da burguesia argentina e internacional e se
elegeu no final de 2023 (quando nos EUA ainda governava Joe Biden), e chegou a
convidar Musk para sua posse. Depois, em um programa de TV, afirmou que Musk lhe
dissera que estava “extremamente interessado no lítio” argentino, bem como “o
governo dos EUA e muitas outras empresas” americanas. “Mas precisam de um marco
jurídico que respeite os direitos de propriedade”, acrescentou. Logo, indicou
que modificaria as leis argentinas para garantir os interesses dos americanos.
Foi o que fez em seguida. E ainda mencionou a privatização dos serviços de
internet para favorecer a Starlink: “desregulação dos serviços de internet por
satélite para permitir a entrada de empresas como a Starlink”, disse em rede
nacional, ao anunciar o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), parte das
reformas de choque neoliberal.
Alguns
meses depois, Milei visitou Musk em uma fábrica da
Tesla no Texas e declarou: “é um grande prazer para mim. É incrível. Obrigado
por tudo o que você faz pelo mundo.” “A química que houve na reunião é muito
difícil de descrever. Era como se tivessem se juntado duas almas gêmeas”,
descreveu o embaixador da Argentina em Washington. “Foi como amor à primeira
vista”, completou.
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Admirador da ditadura e aspirante a Pinochet
A
devastação econômica e social é acompanhada de um fechamento do regime. Uma “coincidência” fez com que, logo
após a vitória eleitoral de Milei, uma onda de violência criminosa tomasse
conta de parte do país, em especial na região de Rosario, a terceira maior
cidade da Argentina. O novo presidente se aproveitou da situação para aumentar
exponencialmente o poder repressivo do Estado. Patricia Bullrich, ministra da
Segurança Pública, invocou a lei antiterrorismo e enviou centenas de agentes
das forças federais.
Ainda
no início de 2024, outra onda de violência ocorreu no Equador e no Peru. Nos
dois casos, Bullrich anunciou a intenção de enviar forças argentinas para
ajudar na repressão nesses dois países: “estamos dispostos a ajudá-los e a
enviar forças de segurança se necessário.”
Já em
agosto, Milei revelou que seu governo modificaria a Lei de Segurança do país
para permitir às Forças Armadas exercerem também o papel de polícia sem a
necessidade de que haja um estado de sítio. Para justificar a decisão, ele
evocou um tipo de discurso muito utilizado durante a ditadura militar: a do
inimigo interno, que seria uma força subversiva agindo conforme orientações
externas (naquele caso, a esquerda). “Os conflitos entre exércitos regulares
tornam-se menos frequentes e certos Estados tecem vínculos com organizações
narco[traficantes], terroristas e do crime organizado local” – afirmou –, portanto
“é imperativo que repensemos esses velhos paradigmas”.
Mesmo
antes de chegar à Casa Rosada, o economista de extrema-direita já era conhecido
por ser um defensor da última ditadura militar argentina (1976-1983),
principalmente em relação às violações de direitos humanos. Sua vice, Victoria
Villarruel, é filha de um militar condenado por crimes contra a humanidade
durante aquela ditadura. Quando assumiu, iniciou o desmonte de todos os órgãos
de direitos humanos e de memória das vítimas e dos crimes da ditadura. Já
demitiu metade dos funcionários do Centro Cultural Haroldo Conti e ⅓ dos trabalhadores do
Arquivo Nacional da Memória – ambos funcionam nas instalações da antiga Escola
de Mecânica da Armada (Esma), o maior símbolo das torturas e execuções da
ditadura, onde cerca de 4.800 (96%) dos 5.000 presos que por lá passaram foram
assassinados.
Assim
como fizeram os militares, Milei também iniciou seu governo reprimindo
manifestações populares, impondo multas e sanções contra quem se manifestasse
contra o governo, proibindo que servidores públicos participem de greves,
sindicatos e partidos políticos, promovendo e facilitando demissões em massa e
o fim da mais mínima estabilidade no emprego. Um em cada três protestos realizados na
capital e na província de Buenos Aires (onde vivem mais de 40% dos argentinos e
se realiza a maioria das manifestações) sofreram repressão policial, de acordo
com levantamento da Comissão Provincial pela Memória. Em junho, 33 pessoas
foram detidas em um protesto contra uma das medidas de Milei e muitas delas
foram acusadas judicialmente por terrorismo, tentativa de golpe de Estado e
sedição.
Essa
política repressiva, como durante boa parte do século anterior, está
intrinsecamente articulada com os Estados Unidos, que atuam dentro dos órgãos
de segurança argentinos com permissão do próprio presidente. Em meados do ano
passado, por intermédio da embaixada americana em Buenos Aires, foi designado
como assessor de segurança cibernética para as forças armadas e outros órgãos
Gustavo Víctor Santiago, que já era assessor de segurança cibernética do governo dos Estados Unidos.
Trata-se de um programa de cooperação e “assistência técnica” dada por
Washington, explicou a embaixada.
No
âmbito continental, além de se dispor a intervir militarmente no Equador e no
Peru, Milei tem interferido sistematicamente nos assuntos internos da
Venezuela, particularmente desde as eleições presidenciais do meio do ano
passado. Em agosto, o presidente Nicolás Maduro acusou o regime argentino de
financiar ataques cibernéticos contra o seu país. Atualmente, Milei tem dado
suporte ao opositor Edmundo González, que tenta dar um golpe na Venezuela, além
de abrigar conspiradores em sua embaixada e apoiar sanções econômicas e todo o
tipo de ataques contra Caracas. Com o Brasil, Milei rebaixou as relações
diplomáticas para o menor nível, costuma atacar verbalmente o presidente Lula e
tomou o lado de Musk no caso STF vs. X. Também chamou de autogolpe o putsch contra Luis Arce na Bolívia e
acusou Gustavo Petro de terrorista e López Obrador de ignorante, em ataques
gratuitos contra vários governos de esquerda da região. E, claro, o mais
importante: recusou a entrada da Argentina nos BRICS, quando ela já havia até
limpado os pés no tapete da entrada.
Os
passos dados na política externa mostram que Milei não quer se limitar a
destruir somente o seu próprio país. Petro, o presidente colombiano, foi quem
melhor adivinhou os objetivos de Milei: “creio que Milei busca destruir, ou ao
menos adiar, o projeto da integração latino-americana”, disse ele, ao ser
acusado de terrorista. De fato, Milei é a ponta de lança do golpismo neoliberal e de extrema-direita promovido pelo
imperialismo americano na América Latina. Ele está sendo
orientado diretamente pelos Estados Unidos – o novo secretário de Estado, o
cubano-americano anticomunista Marco Rubio, já declarou que pretende formar uma
aliança de governos liderados pelos EUA para combater os governos de esquerda e
também a influência russa e chinesa na região.
Rubio
terá um parceiro extremamente alinhado com suas visões no Comando Sul. No dia
seguinte à eleição de Trump, o almirante Alvin Holsey tomou posse como novo
chefe do organismo militar dos EUA. Em seu discurso de posse, ele disse que
Rússia e China (“nossos adversários”) “estabeleceram uma forte presença,
colocando em risco a estabilidade da segurança em toda a América”. Segundo
Holsey, Moscou e Pequim são “concorrentes” de Washington que buscam “minar a
democracia enquanto ganham poder e influência na região”. Lloyd Austin,
secretário de Defesa de Joe Biden, esteve presente na cerimônia e disse que a
China quer expandir sua “influência maligna” na América Latina, repetindo o tom
de Laura Richardson, que foi substituída por Holsey, segundo o qual há no
continente uma “luta entre democracia e autocracia”.
A
Argentina é o segundo principal país da América Latina e sempre disputou com o
Brasil a liderança regional na América do Sul. Agora, está sendo usada pelos
EUA, através de Milei, para ajudá-los a assegurar a retomada da região em um
momento de acirramento das tensões políticas, econômicas e militares a nível
mundial, quando os rivais dos EUA (China e Rússia) conseguem se defender em
suas fronteiras e expandem sua influência para o “quintal” de Washington, e
quando o imperialismo americano demonstra fragilidades até na África. É
fundamental para os EUA, portanto, garantir um estrito controle das Américas,
como já pregava James Monroe. E esse controle precisa provê-lo com os recursos
naturais necessários para a sua indústria e economia, como o lítio, o petróleo,
o gás, a água, o cobre e as abundantes riquezas que o continente oferece.
Contudo,
para uma exploração intensiva das Américas é preciso uma política tão
draconiana quanto a adotada por Augusto Pinochet nos anos 70 e 80 no Chile:
terapia de choque neoliberal mesclada com uma ditadura repressiva cruel, para
neutralizar qualquer oposição que configure um obstáculo à sua política em um
momento tão urgente de crises e instabilidade em sua dominação. Com isso em
conta, a única equiparação possível com a devastação econômica, social e humana
de Milei não é sequer a última ditadura Argentina, mas sim o pinochetismo. Há,
porém, um agravante: o laboratório não será apenas um país, mas sim todo um
continente. Assim, todos esses aspectos indicam que Milei é o governante mais
nocivo para os povos latino-americanos em toda a nossa história, principalmente
se ele conseguir cumprir a missão que lhe foi confiada.
A
mesma imprensa que ataca Venezuela, Cuba e Nicarágua tece enormes elogios a
Milei. A brasileira, porta-voz do “mercado” (banqueiros e especuladores
estrangeiros), promoveu uma campanha terrorista de pressão para que Lula
fizesse um duro ajuste fiscal. Como o ajuste não saiu como queriam, a campanha
permanece e se apresenta o “milagre argentino” como contraponto da
“irresponsabilidade fiscal” lulista, indicando que os banqueiros e a sua
imprensa gostariam de um equivalente de Milei como candidato a presidente do
Brasil em 2026. Esse apoio evidencia a hipocrisia de sua pretensa defesa da
democracia e dos direitos humanos, e mostra como esse discurso não é
incompatível com o apoio a um governo neoliberal de extrema-direita (outros
exemplos são a Ucrânia, Israel e a Síria pós-Assad). As oligarquias
latino-americanas deverão buscar esse caminho por todo o continente, com o
apoio do próprio Milei e do imperialismo americano por trás dele.
Fonte: Brasil 247
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