Evento evangélico em SP escancara plano de dominação
planejado para o Brasil
O que parece um simples evento religioso pode esconder
muito mais do que se imagina. É o caso do “2º Congresso
Internacional Legado Cristão” que acontece nos dias 17 e 18 de
janeiro (sexta e sábado) no Memorial da América Latina, na Barra Funda, bairro
da capital paulista. Em pauta, temas como família, educação e liberdade sob uma
perspectiva cristã.
Embora o evento se apresente como um fórum para
promover valores cristãos, há de forma inequívoca a promoção da chamada
“teologia do domínio”, que defende a subordinação das esferas pública e privada
aos preceitos religiosos.
A “teologia do domínio” é uma doutrina que prega a
necessidade de os cristãos assumirem o controle sobre todas as áreas da
sociedade, incluindo governo, educação e cultura, para implementar uma nação
sob “princípios bíblicos”. Especialistas alertam que essa ideologia ameaça
diretamente a laicidade do Estado e a diversidade religiosa, fundamentais em
uma sociedade democrática. A adoção dessa teologia por líderes religiosos e
políticos no Brasil tem gerado debates sobre os riscos de uma agenda que busca
impor valores religiosos específicos a toda a população.
O evento se apresenta como um “congresso para discussão
sobre o papel da família, a essência da educação e o significado da liberdade,
tudo sob a perspectiva cristã.” E traz, dentro de suas propostas, “um ambiente
dinâmico e inspirador, rodeado por pensadores inovadores e líderes
visionários.” Este ano o congresso se reúne sob o tema “Unir propósitos e
avançar o Reino”.
A “marca” LEGADO CRISTÃO é um esforço de vários
movimentos, atores da sociedade civil, empresas, ministérios que realizam desde
o ano de 2024 um congresso anual, mas mantém seminários que acontecem durantes
todos os meses em diversos lugares do país, com um único objetivo: disseminar o
projeto de “recolocar o Cristianismo nos debates da nossa sociedade para
contornar o status quo das ideias hegemônicas desse mundo” a partir de uma
tríade que resume todas as ações do “legado”: Família, Educação e Liberdade.
·
Compromissos do “LEGADO”
Logo na página oficial de divulgação
do Congresso na internet, os organizadores não fazem a mínima questão de
esconder os “compromissos” que serão selados no evento, e apresentam uma série
de pontos a serem defendidos e divulgados como essenciais na trajetória e no
“legado cristão” que o encontro espera deixar. Analisemos apenas alguns deles
(são 15 no total).
·
Apoiar a candidatura política de cristãos.
Leia-se aqui apoiar candidaturas fundamentalistas que defendam
pautas moralistas e antiestatais (uma das pautas do Congresso é o
“autogoverno”). Duas das principais preleções do evento serão realizadas pelo
vereador Gilberto Nascimento, de São Paulo, e a deputada estadual em Santa
Catarina Ana Campagnolo, ambos conhecidos pela virulência na defesa de
pautas da extrema direita. No 1º Congresso, realizado em 2024, uma das
principais falas (que inclusive é exposta na página de divulgação do 2º) foi do
ex-procurador e ex-deputado federal Deltan Dallagnol. Dallagnol teve o mandato
cassado por uma “fraude” contra a Lei da Ficha Limpa ao pedir exoneração do
Ministério Público Federal (MPF) 11 meses antes das eleições, enquanto
enfrentava processos internos que poderiam levar à sua demissão — e, em
consequência, à sua inelegibilidade.
·
Incentivar jovens a ingressar em
CURSOS-CHAVES para ocupar POSIÇÕES DE INFLUÊNCIA
A tática de ocupar os espaços, explícita na “teologia
do domínio”, é incentivada principalmente para a juventude e aqui ocorre uma
das muitas aparentes incoerências do movimento, mas que se justifica pelo
“produto final” que é a doutrinação massiva da população brasileira: apesar de
defensores ferrenhos do homeschooling (falaremos sobre isso mais tarde), há um
incentivo para que jovens estudem e se formem como professores nas áreas
conhecidas como de “humanas”, principalmente história e geografia (geografia
mais analítica) afim de reverterem os “ensinos comunistas e errôneos”, tanto
como nas ciências biológicas, cujo objetivo é contrapor o “ensino ateu” que vai
de encontro ao criacionismo “bíblico”. Além, principalmente, do curso de
Direito, que é um dos principais alvos do “legado cristão”.
·
Buscar uma relevância social e DENTRO DO
PODER PÚBLICO local, regional e até mesmo nacional
Aqui se apresenta mais uma das aparentes incoerências,
mas que se trata de uma estratégia muito bem elaborada: ocupar os espaços de
poder público para enfraquecer o próprio poder público. Em diversos documentos
e falas nas redes sociais e nos eventos, os promotores do “legado cristão” defendem
um Estado mínimo e o “autogoverno”, principalmente no que se refere à educação
e à cultura (o que favorece o domínio da manipulação e doutrinação para as
quais são treinados incansavelmente). Os proponentes do evento são, em sua
maioria, inimigos das políticas públicas, principalmente as que buscam o
acolhimento e dignidade das minorias de “diversidade” (principalmente
comunidade LGBTQIAPN+).
·
Fortalecer alianças NACIONAIS E
INTERNACIONAIS que defendam as liberdades individuais
Em postagem na página do Instagram do evento, uma das
principais líderes do movimento no Brasil apresenta de forma efusiva uma
matéria publicada recentemente, onde se apresenta um Fundo Cristão formado nos
Estados Unidos que gerencia um montante de 20 BILHÕES de dólares, que tem como
principal objetivo lutar contra políticas progressistas e da diversidade. Essa
já é uma ideia em desenvolvimento no Brasil, a tirar pelos patrocinadores do
evento, que é “gratuito”, ou seja, já existe um forte investimento de empresas,
empresários, políticos e organizações para a disseminação e fortalecimento
dessas ideias fundamentalistas e de dominação evangélica conservadora da
política nacional. Estamos em um momento muito delicado.
·
Envolver-se na divulgação do que é EDUCAÇÃO
DOMICILIAR, sua defesa COMO DIREITO HUMANO NATURAL tanto no âmbito estadual
como nacional
Essa é uma das principais bandeiras do movimento,
abraçada pelos principais organizadores: o chamado homeschooling. Nos últimos
anos, o homeschooling – ou educação domiciliar – tem ganhado popularidade em
diversos países, incluindo o Brasil. A proposta é educar os filhos em casa, sem
a necessidade de frequentar uma escola tradicional, “personalizando” o ensino e
“protegendo” as crianças de “influências externas.”
Um dos principais riscos do homeschooling é o isolamento social das crianças. A
escola não é apenas um espaço de aprendizado acadêmico, mas também de interação
e convivência com outras pessoas, fundamentais para a formação de cidadãos
participativos e tolerantes . É nesse ambiente que os alunos desenvolvem
habilidades sociais cruciais, como trabalho em equipe, resolução de conflitos e
empatia. É sempre bom lembrar o que qualquer estudioso de movimentos sectários
e separatistas sabe: uma das principais ferramentas de dominação, manipulação e
doutrinação, principalmente de jovens é o isolamento. Isolando-o do convívio
social e da diversidade humana, cria-se fanáticos fundamentalistas capazes de
quaisquer coisas para defenderem suas “causas”.
·
Engajar comunidades locais de fé na formação
integral do indivíduo, tanto como pessoa, quanto como cidadão. Em cada
comunidade, um centro de formação
Preste bem atenção nisso: “em cada comunidade, um
centro de formação”. O objetivo é fazer com que cada “comunidade local de fé”
(igreja) se transforme num “centro de formação”. Mas para formar o
que? Exatamente a multiplicação de defensores desse modelo de Estado
mínimo, precursores de um neoliberalismo extremo carregado de fundamentalismo
religioso que fará os neopentecostais (e seu projeto de poder) parecerem
crianças indefesas perto de um sistema muito mais complexo e entranhado na
sociedade.
Fomentar o legado cristão cultural nas mídias sociais
demonstrando os resultados de sua aplicação ao longo do tempo
Já estamos experimentando um pouco desse “legado
cristão cultural” exatamente nas ações de Elon Musk e Mark Zuckerberg em
retirar de suas plataformas e mídias sociais o sistema de checagem de fatos. É
a “pós-verdade” levada ao extremo. Valerá a “verdade” do grupo que detiver o
poder. A prosperarem as ideias, ideais e projetos do “legado cristão” (aqui as
aspas são necessárias, pois o Cristo nunca pregou um projeto de poder), é bom
que nos preparemos para a total ausência do contraditório, do debate político e
a instauração de uma espécie de teocracia bem piorada dos sistemas já
conhecidos.
·
Quem faz a cabeça dessa gente?
Um dos elementos principais para analisarmos os
objetivos e processos que esse evento traz a tona é a simples observância de
alguns de seus principais palestrantes/pregadores. Principalmente atrelados aos
temas que trarão como projeto de pensamento e execução. Como foi dito
anteriormente, no 1º Congresso, em 2024 um dos principais oradores foi Deltan
Dallagnol. Em eventos diversos da “rede legado cristão” (o Congresso
Internacional é apenas o principal evento – outros em “menor escala” acontecem
por todo o Brasil e em todo tempo) temos como pensadores Damares Alves a Aaron
Pierce (não, não é o ator), executivo da Christian Halls Brasil, uma espécie de
difusora de treinamentos em parceria com escolas em todo o Brasil (já atuam em
17 estados). Quais serão então os/as palestrantes do “Legado Cristão 2025”.
Vejamos apenas alguns nomes e seus respectivos temas de abordagem:
<><> Irene Squillaci – O legado
cristão e seus inimigos no mundo
Pastora boliviana, advogada, conferencista, assessora
política e empresarial, autora de “Vencendo a Batalha Eleitoral” e
“Destronando o Estado” – este último livro é, segundo a editora: “para quem
deseja compreender como o Estado na América Latina e no mundo destrói a
economia das famílias por meio de suas políticas públicas. O livro aborda as 3
mentiras do socialismo que enriquecem o Estado enquanto empobrecem as famílias.
Com base nos princípios do governo bíblico, encontraremos os princípios
aplicados às políticas públicas para enriquecer e libertar as famílias.”
<><> Ana Campagnolo – Acusações
contra o cristianismo (desfazendo falácias e revelando a verdade)
Deputada estadual por Santa Catarina. Se apresenta como
mulher antifeminista e dispensa maiores apresentações. É conhecida por defender
desde 2018 tanto Jair Bolsonaro quanto o “Escola sem Partido”. Segundo matéria
da Revista Fórum, “curiosamente, mesmo como defensora aguerrida da ideia de que
nenhum professor pode falar nada e se manifestar em algum sentido
ideologicamente nas escolas brasileiras, ela ia dar aula usando uma camiseta
com o rosto e o nome do então presidente Jair Bolsonaro (PL), e tirava
foto com a indumentária e alunos dentro da sala de aula.”
<><> Guilherme Schelb –
Construindo um sistema protegido e protetor do legado cristão
Procurador da República, chegou a ser cogitado por
Bolsonaro para ser ministro da Educação. Defende abertamente bandeiras comuns a
Bolsonaro e à bancada evangélica, como a proibição de que escolas discutam
temas como gênero e sexualidade, um dos eixos do Escola sem Partido. Em 2018,
Schelb divulgou em sua página no Facebook, a palestra “Marxismo Cultural: risco
iminente as igrejas cristãs.”
Dois “workshops” também chamam a atenção:
<><> Lidiane Castilho – NCFCA:
Leve esta ferramenta de defesa da verdade para os seus jovens
Segundo o próprio site: “A NCFCA é uma liga de
debates e discursos que treina pessoas, famílias e jovens para debaterem usando
ferramentas da educação clássica, desenvolvendo sua retórica através de debates
e discursos. O objetivo é que eles possam persuadir com suas ideias, sempre
fundamentadas em princípios cristãos.”
“Ajudamos adolescentes a aprender habilidades de
comunicação do mundo real que os equipam para a vida. Os alunos que se envolvem
conosco se tornam palestrantes equilibrados, pesquisadores curiosos e
defensores resilientes de uma cosmovisão bíblica. Eles constroem sabedoria e
caráter a partir de feedback construtivo e desenvolvem as habilidades de
pensamento crítico necessárias para entender e falar em nossa cultura com
compaixão e integridade.”
É isso mesmo: a NCFCA é uma formadora de debatedores e oradores/as voltada
especialmente para treinamento/formação de ADOLESCENTES para DEFENDEREM
PUBLICAMENTE a cosmovisão “bíblica”.
<><> Gilberto Celetti – APEC:
Instituto Bíblico Infantil- um modelo de treinamento apologético para crianças
Não! Você não leu errado. Este workshop tem como
objetivo treinamento “apologético” (defesa da fé) para CRIANÇAS. E a APEC busca
parceria para inserção em escolas públicas/privadas através de
professores/professoras treinadas para utilizar materiais da própria editora em
suas aulas, “ensinando” às crianças princípios “bíblicos”.
No site da APEC, são apresentadas algumas
“justificativas” desse trabalho:
“Poderíamos alistar algumas justificativas para isto:
As crianças são naturalmente predispostas ao ensino e na fase
escolar elas todas estão prontas para aprender. A influência dos professores,
especialmente nos primeiros 4 anos de estudo, é notória.
A ausência de orientação religiosa por parte de seus pais é bem
marcante e a aula bíblica na escola acaba sendo a única ocasião para a criança
ouvir verdades preciosas que poderão marcar e influenciar toda a sua vida.
O número de crianças (e de famílias, indiretamente) que
podemos atingir com a mensagem de salvação é bem grande, o professor evangélico
pode alcançar, na escola pública, muito mais do que toda a sua igreja na Escola
Dominical.
Outro fator favorável é que, entrando na sala de aula, já
encontramos tudo favorável: as crianças sentadas, as carteiras apropriadas, o
quadro de giz, etc., oferecendo ao professor um ambiente próprio para o ensino.
APEC são as iniciais de Aliança Pró- Evangelização das
Crianças.
·
A teologia do domínio e os perigos para a
democracia no Brasil
Nos últimos anos, a teologia do domínio tem ganhado
espaço em setores religiosos e políticos no Brasil, trazendo sérios riscos à
democracia. Essa vertente teológica, originada no meio evangélico, prega que os
cristãos têm a missão de governar todas as esferas da sociedade – incluindo
política, educação, mídia e economia – para estabelecer os valores cristãos
como padrão universal. Embora defensores afirmem que o movimento busca
“moralizar” a sociedade, a execução dessa teologia ameça o princípio do Estado
laico e pode retirar os direitos de minorias religiosas e sociais.
No Brasil, a crescente presença de líderes religiosos
em cargos públicos tem sido acompanhada de pautas que promovem interesses
específicos em detrimento do pluralismo. Projetos de lei que buscam restringir
direitos reprodutivos, influenciar currículos escolares com visões religiosas e
limitar direitos LGBTQIA+ são exemplos citados como reflexos dessa teologia.
Além disso, a fusão entre religião e política pode polarizar ainda mais a
sociedade, enfraquecendo o diálogo entre diferentes grupos.
A resistência a essa influência tem surgido de
diferentes setores, incluindo organizações da sociedade civil, acadêmicos e
lideranças religiosas que defendem a separação entre Igreja e Estado. Segundo
estes, é fundamental reforçar a educação cívica e a conscientização sobre os
valores democráticos para impedir que visões teocráticas comprometam os
direitos fundamentais de todos os cidadãos. Para muitos, o desafio está em
equilibrar a liberdade religiosa com a necessidade de preservar um Estado laico
e inclusivo, garantindo que nenhum grupo imponha suas crenças sobre toda a
sociedade.
Fonte: Por pastor Zé Barbosa, em Revista Fórum
Nenhum comentário:
Postar um comentário