Em Florianópolis, luxo e segregação sem
pudor
No dia 17 de dezembro do ano passado,
bombou nas redes sociais um panfleto que estaria sendo distribuído em
Florianópolis sobre a população em situação de rua. Denunciado nas redes inicialmente
pelo Padre Júlio Lancellotti e depois por figuras políticas da região, o
panfleto vem com o título “NÃO DÊ ESMOLA, DÊ OPORTUNIDADE”. O fôlder é confuso
com relação a sua autoria, mas faz referências ao aplicativo “PMSC Cidadão” e
ao CentroPOP do município de Florianópolis.
O mote de não dar esmola não é novidade na
região. Há um bom tempo, a Prefeitura de Florianópolis instalou placas nas
sinaleiras da cidade com os dizeres “Não alimente a miséria. Não dê esmolas”.
Além disso, o grupo Floripa Sustentável – composto por conselhos profissionais,
associações empresariais e sindicatos patronais – lançou, em abril de 2024, a
campanha “ESMOLA NÃO”. No evento de lançamento, realizado no Hotel Majestic –
um dos hotéis mais luxuosos da capital -, esteve presente o prefeito de
Florianópolis, Topázio Neto1.
O que chama mais atenção no panfleto,
porém, é que logo abaixo do título vem a frase “Os casos de tuberculose entre
os moradores de rua preocupam pela alta transmissão”. Após, uma série de ações que devem ser tomadas pelos demais
cidadãos – aqueles que não são pessoas em situação de rua. “Não ofereça
alimentos”, “Evite contato físico: risco de transmissão de doenças”, “Cuidado:
podem ser violentos” e “Fotografe o infrator e denuncie às autoridades
competentes” são algumas das dicas que
o panfleto traz.
Após a grande repercussão que o fato tomou,
o prefeito Topázio Neto e a Polícia Militar do Estado de Santa Catarina vieram
a público manifestar-se sobre o caso. Em um reel publicado
em seu Instagram, o prefeito fala que tomou conhecimento do fôlder e que ele
não é oficial. Ainda diz: “Desestimulamos a esmola sim, e vamos continuar. Mas
não tratamos os seres humanos como leprosos [sic]”2.
A PMSC, por sua vez, informa que o material
não foi produzido pela polícia, mas sim que “Trata-se de uma iniciativa
autônoma elaborada pela comunidade local, refletindo suas preocupações quanto
em relação segurança da população em relação a pessoas em situação de rua”3. A
nota da Polícia Militar deixa claro que a instituição tem conhecimento da
origem do panfleto e de quem o elaborou e, ao mesmo tempo, apresenta conivência
com o ato (que pode ser considerado criminoso) e, inclusive, o legitima.
A postura das autoridades citadas,
infelizmente, não é novidade para a população em situação de rua. Desde o final
de 2023, é possível verificar uma ofensiva articulada entre a Prefeitura de
Florianópolis, as forças de segurança (Polícia Militar e Guarda Municipal), a
mídia empresarial e parte da sociedade civil contra a população em situação de
rua.
Em março de 2024, foi aprovada e publicada
a Lei Municipal n. 11.134/20244, que
dispõe sobre a internação psiquiátrica voluntária e involuntária – chamada de
“internação humanizada” pela lei – da população em situação de rua
(exclusivamente), com “dependência química” e/ou “transtornos mentais”. Para o
prefeito de Florianópolis, a legislação surgiu como solução à suposta periculosidade e
criminalidade apresentada por esse grupo.
Como resposta, a Defensoria Pública da
União (DPU), por meio da Defensoria Regional de Direitos Humanos (DRDH/SC), e a
Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina (DPE/SC) junto ao Núcleo de
Cidadania, Igualdade, Diversidade, Direitos Humanos e Coletivos (NUCIDH),
elaboraram uma recomendação à Prefeitura de Florianópolis que discorre sobre
medidas alternativas à internação involuntária, demonstrando que, através da
referida legislação, a Prefeitura de Florianópolis não pretendia preservar a
saúde física ou mental da população em situação de rua, mas sim realizar a
exclusão socioespacial5.
No mesmo mês, a PMSC iniciou a Operação
Choque de Ordem, com abordagens generalizadas nas pessoas em situação de rua
presentes nas filas para ingresso no Restaurante Popular da Capital. Mais uma
evidente tentativa de intimidação e estigmatização do grupo, por parte dos
agentes públicos municipais. A DPU/SC e a DPE/SC impetraram um habeas corpus coletivo, em favor das
pessoas que sofrem ou podem sofrer esse constrangimento ilegal, cujo pedido foi
deferido após recurso ao Tribunal de Justiça, sendo expedido salvo-conduto em
favor da população em situação de rua6.
Diante desse contexto, somado à situação da
população em situação de rua em outros municípios de Santa Catarina – como
Chapecó, Palhoça, São José, Criciúma e Balneário Camboriú –, o Conselho
Nacional de Direitos Humanos (CNDH), motivado pelas diferentes denúncias de
violências e situações degradantes, chegou ao estado de Santa Catarina em abril
de 2024 para realizar a “Missão População em Situação de Rua”. No Relatório da
missão do CNDH a Santa Catarina para apurar violações aos direitos humanos da
população em situação de rua no Estado, ficou constatado que as pessoas em
situação de rua vêm sofrendo um “apagamento” por parte dos poderes públicos,
isso devido a adoção de inúmeras estratégias para esconder esse grupo das vistas
da população em geral (através das internações psiquiátricas forçadas, por
exemplo), bem como a expulsão dessas pessoas do território, por meio de
violência, ameaça ou oferecimento de passagens de ônibus para voltarem ao seu
“local de origem”.
Esse tratamento dado à população em
situação de rua de Florianópolis pode ser visto como uma forma de higienismo
social. Surgida paralelamente aos anseios da classe dominante em modernizar o
país, essa ideologia entendia a desorganização social enquanto causa do surgimento
e da multiplicação das doenças. Por isso, caberia à medicina e ao sanitarismo
“neutralizar todo perigo possível”. Para as elites, a higiene pública passou a
representar elemento definidor do grau de civilização de um povo.
Sidney Chalhoub7 aponta
que, amparados pelo racismo científico, os intelectuais-higienistas designaram
as classes pobres e, principalmente, a população negra, enquanto objetos do
higienismo. Conforme a ideologia, a pobreza era associada ao vício e, esse
último, à violência, de modo que as classes
pobres seriam sempre perigosas. Nesse sentido, como a população em
situação de rua reúne grande parte desses corpos excluídos, também passou a ser
lida como alvo dessa política.
Essa forma de higienismo social empreendida
por diversas instituições do Estado e por parte da sociedade civil não é
novidade na Ilha de Santa Catarina. Desde o início do processo mais intenso de urbanização
da capital, verificamos uma série de atitudes higienistas que foram construindo
um projeto de cidade que se alonga até os dias de hoje.
Em Florianópolis (à época, Desterro), como
aponta Maria Inês Sugai8,
inicia, ainda no século XIX, um processo de segregação socioespacial mais
acentuado a partir da separação entre os locais de comércio e também as áreas
de moradia dos ricos e pobres, o que coincide com a expansão do trabalho livre.
Geograficamente, na cidade, os mais pobres passam a habitar os cortiços
localizados nas encostas do Morro da Cruz, bem como nas áreas mais próximas dos
portos e das áreas industriais.
Essa periferização faz parte do processo de
higienismo, relacionado à segregação espacial e aos problemas de saúde pública
que a gestão era incapaz de lidar. Como aponta Fernando Calheiros9, é a
partir das reformas urbanas e sociais entre o final do século XIX e início do
XX que serão empreendidas intervenções com o objetivos de “higienizar” e
“modernizar” a cidade.
Dentre esses processos de higienismo, temos
o caso da rede de esgoto articulada no Rio da Fonte Grande (também chamado de
Rio da Bulha), uma das principais ações sanitaristas da capital, que deu origem
à abertura da Avenida Hercílio Luz, localizada em uma região importante da área
central do município. A referida obra não pretendia solucionar os problemas
sociais daquela localidade. Ao contrário, “expulsaram os moradores e demoliram
todos os cortiços e casebres que há mais de um século vinham se instalando às
margens do rio”10, assim
como ruelas e becos, o que impeliu as camadas populares a irem para as encostas
do Morro da Cruz. Assim, não foi promovido somente o saneamento e remodelação
da área, mas também ações de segregação que abriram novas frentes para o
capital imobiliário.
O projeto de cidade que se construía no
início do século passado alonga-se durante a história e chega ao presente. A
partir de 1980, inicia-se um projeto de marketing de
Florianópolis empreendido pelos poderes locais e grupos empresariais, com o
objetivo de disseminar a cidade enquanto uma referência de padrão de vida e
conectada aos padrões de modernização tecnológica11.
Cunha-se o apelido “Floripa” e o título de “Ilha da Magia”, a meca da classe
média e média alta.
Esse marketing das cidades, segundo
Fernanda Sánchez12,
emerge na ideia de valorização da dimensão local no contexto da globalização.
Tem, como uma de suas estratégias, a construção de um consenso social em torno
dos modelos de administração urbana, baseadas em parcerias entre o poder
público e privado e que adotam práticas orientadas ao mercado.
A questão da população em situação de rua
de Florianópolis, que aparece com evidência no ano de 2024, relaciona-se com o
marketing das cidades na medida em que se busca criar e propagandear um cidade
limpa e sem “baderna” – como diz o prefeito Topázio Neto -, bem como
estabelecer consensos sociais sobre a questão. A solução que se apresenta é o
higienismo social, construindo uma série de políticas que buscam “limpar” as
ruas da cidade.
O panfleto divulgado nas redes sociais é
apenas mais um capítulo desse processo, mas que assume centralidade diante do
seu teor. Tomar “cuidado” com os tuberculosos relembra o higienismo clássico do
século XIX e do começo do século XX, com seus objetivos sanitaristas.
Fotografar os “infratores violentos” caracteriza a população em situação de rua
como violenta, construindo estigma da classe
perigosa. É a cidade da “inovação” com a cabeça no século XIX.
Se Topázio fala que não podemos tratar os
seres humanos como “leprosos” – designação preconceituosa contra portadores de
hanseníase -, aqui afirmamos que precisamos tratar os seres humanos como seres
humanos, rompendo com o higienismo e buscando construir uma cidade que seja
justa para todos que a habitam e que virão a habitar. É preciso superar os
preconceitos e construir políticas públicas dignas para a população em situação
de rua.
Fonte: Outras
Palavras
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