O militar brasileiro sempre esteve essencialmente voltado
para combater brasileiros que abraçam reformas sociais
Até a Guerra do Paraguai, os militares brasileiros eram bastante
desorganizados enquanto corporação. Tudo, porém, começa a mudar após o conflito
e vão conformando progressivamente a atuação das Forças Armadas até a
atualidade, sem jamais passar por uma reforma mais do que necessária. É por
isso que, hoje, os militares funcionam como “integrantes de corporações
decisivas para a preservação da ordem social herdada da colonização. Como
instrumentos para afirmação da soberania nacional, foram agentes secundários”,
descreve Manuel Domingos Neto, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas
Unisinos – IHU.
Quanto às consequências da tentativa de golpe e assassinato do
presidente Lula, o pesquisador tem uma postura que não deposita a expectativa
da punição apenas no poder judiciário, estendendo-a ao Executivo. “Os
desdobramentos do fiasco estão em curso e dependem muito da orientação
presidencial. O STF hoje é visto como protagonista, mas o Poder Executivo,
mesmo tentando lavar as mãos, tem sua responsabilidade. O presidente da
República responde pelo comando supremo das Forças Armadas. Não exercendo tal
papel, torna-se responsável parcialmente pelo que ainda pode acontecer”,
assevera.
“O presidente da República e as forças políticas que o apoiam devem
convencer o povo brasileiro da necessidade de uma Defesa Nacional que garanta a
soberania e a democracia. Mesmo setores conservadores podem apoiar essa
bandeira. Não vale pôr a culpa no Congresso quando nem sequer a ideia é
ventilada. Há um recuo generalizado nos partidos de esquerda. O Congresso
sempre foi fisiológico e conservador. Não tomará posições avançadas sem pressão
popular”, provoca.
Manuel Domingos Neto graduou-se em História pela Universidade de Paris
VI, é Mestre em Sociedade e Economia na América Latina, pela Universidade de
Paris III, e doutor em História pela mesma universidade. Foi pesquisador da
Casa de Rui Barbosa, superintendente da Fundação Centro de Pesquisas Econômicas
e Sociais do Piauí, estado pelo qual também foi deputado federal. Professor
emérito da Universidade Federal do Ceará e da Universidade Federal Fluminense,
foi também vice-presidente do CNPq e presidente da Associação Brasileira de
Estudos de Defesa (ABED). É autor, entre outros, de O que fazer com o
militar? Anotações para uma nova defesa nacional (2021)
<><> Confira a entrevista.
·
O que são os militares no Brasil
e para que servem?
Manuel Domingos Neto – Persistem o que sempre foram desde a criação do
Estado brasileiro: integrantes de corporações decisivas para a preservação da
ordem social herdada da colonização. Como instrumentos para afirmação da
soberania nacional, foram agentes secundários. A Independência foi escorada no
poder hegemônico da Inglaterra, que prevaleceu até a ascensão dos Estados no
fim da Segunda Guerra.
·
Em dezembro, foi desbaratado o
golpe de estado com tentativa assassinato de autoridades, entre elas o
presidente Lula, planejado por militares de alta patente. Quais desdobramentos
devem ocorrer em relação ao caso?
Manuel Domingos Neto – Decorrerá algum tempo até que fique totalmente
esclarecida a trama golpista. Não posso afirmar com tranquilidade que as
articulações decisivas ocorreram em dezembro de 2022. No máximo, diria que,
nessa época, já estava configurada a inviabilidade do golpe: o conjunto das
corporações não se mostrou disposto a quebrar a institucionalidade. Seria um
choque muito grande. Difícil imaginar os golpistas se mantendo no poder.
Os desdobramentos do fiasco estão em curso e dependem muito da
orientação presidencial. Hoje, o STF é visto como protagonista, mas o Poder
Executivo, mesmo tentando lavar as mãos, tem sua responsabilidade. O presidente
da República responde pelo comando supremo das Forças Armadas. Não exercendo
tal papel, torna-se responsável parcialmente pelo que ainda pode acontecer.
·
Em entrevista recente, o senhor
menciona a “síndrome pós-Guerra do Paraguai”. Do que se trata? Com ela ajuda a
explicar a postura dos militares?
Manuel Domingos Neto – É no retorno da Guerra do Paraguai que os
militares se perceberam atores políticos decisivos. Antes, as corporações,
particularmente o Exército, não detinham capacidade orgânica de controle
sociopolítico. Havia a Guarda Nacional, muito capilar. Os quartéis do Exército
eram unidades frágeis, dispersas, mal instruídas, dependentes de potentados
locais. Depois da Guerra do Paraguai, os comandantes sentiram-se em condições
de impor a autonomia das corporações.
·
Como construir politicamente uma
nova defesa nacional? O que significa a noção de “nova defesa nacional”?
Manuel Domingos Neto – A concepção de uma nova Defesa Nacional deve
exprimir um projeto de autonomia nacional alicerçado na união dos brasileiros.
O primeiro passo neste sentido é acabar com o distúrbio de personalidade
funcional que acomete as corporações: não sabem se devem se preparar para o
confronto com o estrangeiro ou para garantir a segurança pública. Cabe alterar
o artigo 142 da Constituição.
O grande alicerce de uma nova Defesa deve ser a coesão nacional. Isso
implica sepultar de vez a ideia de “inimigo interno”, presente desde a
Constituição de 1824 e exacerbada na Guerra Fria. A Defesa de que dispomos é
lastreada no grande esquema militar ocidental comandado por Washington. O
militar brasileiro sempre esteve essencialmente voltado para combater
brasileiros que abraçam reformas sociais.
Outros aspectos fundamentais de uma nova Defesa Nacional seriam a
integração sul-americana, o desenvolvimento de capacidade própria para a
produção de armas e equipamentos e a reforma militar. Alguns se referem à
reforma militar sem saber do que se trata. Imaginam mudança de comandantes,
revisão do currículo das escolas… Confundem causas e consequências.
·
Com relação às atribuições dos militares, que
mudança constitucional precisa ser feita e como realizá-la diante de um Congresso
majoritariamente fisiológico e conservador?
Manuel Domingos Neto – O presidente da República e as forças políticas
que o apoiam devem convencer o povo brasileiro da necessidade de uma Defesa
Nacional que garanta a soberania e a democracia. Mesmo setores conservadores
podem apoiar essa bandeira. Não vale pôr a culpa no Congresso quando nem sequer
a ideia é ventilada. Há um recuo generalizado nos partidos de esquerda. O
Congresso sempre foi fisiológico e conservador. Não tomará posições avançadas
sem pressão popular.
·
Anos atrás, o STF cedeu à pressão
de um general por meio de um tuíte. Em 2024, indiciou militares pela tentativa
de golpe e assassinato do presidente. Como entender a postura da mais alta
corte brasileira? Qual a importância do STF manter uma postura firme em relação
aos militares neste momento?
Manuel Domingos Neto – A pressão exercida pelo general Villas-Bôas foi
em 2016. Foi um grande golpe. A posição do STF foi vergonhosa. Esse general
ainda não foi punido. Penso que a postura do STF mudou durante o governo
Bolsonaro porque os ministros se sentiram ameaçados. Compreenderam o risco que
corriam. Hoje, o papel do STF é importante, mas limitado. Não estamos diante de
um problema legal, judicial, mas diante de um grande desafio político. As forças
democráticas brincam com fogo ao deixar o caso nas mãos de juízes.
·
Como avalia a posição de Lula em
relação aos militares?
Manuel Domingos Neto – Pelo que eu disse anteriormente, é desastrosa a
posição de Lula de abdicar de sua condição de comandante supremo das Forças
Armadas. Pelo bem da soberania e da democracia, o presidente não pode se
isentar de suas responsabilidades constitucionais neste momento de avanço da
extrema-direita, que atinge de cheio os organismos de força do Estado. Lula
precisa comandar. Em vez disso, aceita placidamente ser comandado. Se o
político não comanda o militar, ele passa a ser comandado.
·
Que episódios históricos mostram
que toda vez que o Estado tentou “dialogar” com os militares a sociedade civil
saiu perdendo? Por que não é possível ter diálogo com a caserna?
Manuel Domingos Neto – Militar é treinado para receber ordens, não para
dialogar feito um político ou um diplomata. No mais, os militares vivem em
permanentes contendas corporativas: o marinheiro acha que é mais importante que
o soldado terrestre; o aviador se vê como o mais decisivo… Dissertei sobre isso
em meu último livro. Só o político pode de fato definir os rumos da Defesa
Nacional. Se isso ficar nas mãos das corporações, viveremos patinando neste
domínio. Está claro que devemos priorizar a força aeronaval. Mas isso jamais
ocorrerá enquanto as corporações detiverem a última palavra quanto aos seus
destinos.
Não há exemplos históricos de diálogo com militares. Todos os
presidentes abdicaram da condição de comandante supremo. A autonomia
corporativa sempre prevaleceu. Nem Vargas mandou efetivamente nos militares.
Boa parte das iniciativas do Estado Novo foram propostas por militares, que
sentiam a necessidade de modernizar o país.
·
Mensalmente, o Estado brasileiro
gasta R$ 140 mil com salários e pensões a militares que foram indiciados pelo
MPF pela morte de Rubens Paiva. O que o caso revela sobre a relação do Estado e
de nossa sociedade com os militares?
Manuel Domingos Neto – Não acho que o valor dos salários dos militares
seja a questão principal. Sei que isso causa muita indignação, mas o problema
mais grave é o volume de tropas inaptas e de quartéis sem serventia para
enfrentar eventuais hostilidades estrangeiras. Há centenas de unidades
militares que poderiam ser fechadas em proveito de uma Defesa efetivamente
capaz.
As compras externas representam também um grande desperdício. Costumo
dizer que quem compra armas e equipamentos de potências estrangeiras vende a
alma ao diabo. Não tem autonomia para decidir com quem e como lutar. Esbagaça
dinheiro público.
·
O senhor é autor do livro O
que fazer com o militar? Anotações para uma nova defesa nacional (2021).
Pode comentar do que trata a obra e como ela ajuda e compreender a questão da
militarização no Brasil?
Manuel Domingos Neto – No livro, tentei explicar simplificadamente as
múltiplas e variadas iniciativas necessárias para uma reforma militar. Resumi
décadas de estudos e reflexões. Corporações militares são organismos altamente
complexos, fruto de experiências milenares. Impossível mexer em organizações
deste tipo sem graves consequências. Por exemplo, ao adotar o Novo Arcabouço
Fiscal, o governo resolveu alterar a idade para a aposentadoria do militar.
Ora, isso alteraria fortemente as regras de promoção hierárquica. Criaria muita
confusão deletéria. O governo terminou recuando. Não dá para mexer nas
estruturas militares sem estudo especializado prévio.
Minha intenção foi contribuir para melhorar o nível do debate em torno
dos militares. Creio que nossas elites políticas são despreparadas nesta
matéria. Isso é muito preocupante. Enquanto o político não ditar a Defesa
Nacional, estaremos não apenas indefesos neste mundo conturbado, mas a
democracia estará correndo risco.
Fonte: Entrevista com Manuel Domingos Neto, em IHU
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