sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Os 15 dias de fake news sobre Pix que abalaram governo Lula

O Governo Federal anunciou na quarta (15/1) a revogação de uma portaria que ampliava o escopo da fiscalizalção da Receita Federal sobre transações financeiras, duas semanas depois que ela entrou em vigor.

Além dos bancos tradicionais, que desde 2003 já enviavam informações consolidadas sobre as movimentações financeiras de clientes ao fisco, bancos digitais, aplicativos de pagamento e outras fintechs também teriam de passar a reportar os dados.

Uma onda de desinformação em torno da nova medida, entretanto, com a circulação de notícias falsas de que o Pix seria taxado e passaria a ser monitorado diariamente pela Receita, levaram o governo Lula a recuar.

Pix é um mecanismo de transferência de dinheiro em tempo real que foi introduzido pelo Banco Central no Brasil em 2020.

Desde então, popularizou-se e virou um dos principais meios de pagamento no país. Em 2024, movimentou R$ 26,4 trilhões, crescimento de 54,6% em relação ao ano anterior e recorde no volume transferido, conforme os dados divulgados pelo BC nesta quinta (16/1).

>>>> Entenda a seguir como essa crise foi desencadeada — e como ela se desenrolou ao longo das últimas semanas.

·        18 de setembro de 2024: o anúncio

Nesta data, foi publicada no Diário Oficial da União a Instrução Normativa da Receita Federal 2219/24.

Esse é o documento que detalha as mudanças que ampliaram o perfil de instituições que passariam a ter que reportar informações à Receita e acabaram gerando polêmica.

Antes da atualização normativa, bancos tradicionais e algumas outras instituições financeiras enviavam ao fisco informações sobre as movimentações de clientes pessoa física superiores a R$ 2 mil, considerando todos os tipos de operação, inclusive o Pix. Para pessoas jurídicas, o montante era de R$ 6 mil.

A norma revogada atualizava esses valores para R$ 5 mil, no caso de pessoa física, e para R$ 15 mil, no caso de pessoa jurídica, e ampliava o rol de instituições que deveria se reportar à Receita.

As informações enviadas ao fisco já eram e continuariam sendo protegidas por sigilo bancário e apresentadas de forma consolidada, sem que houvesse detalhamento do tipo de transação efetuada, origem ou natureza dos gastos efetuados.

·        1° de janeiro de 2025: a norma entra em vigor

A RN 2219/24 da Receita Federal passou a valer em todo o país na virada do ano.

A partir de então, os primeiros boatos e notícias falsas sobre uma possível "taxa do Pix" começaram a ganhar força nas redes sociais.

·        7 de janeiro: Receita publica o primeiro desmentido

O Ministério da Fazenda divulgou um artigo em que fez esclarecimentos sobre as novas normas, esclarecendo que a regra "não implicou em qualquer aumento de tributação".

Segundo o texto, a medida visava "um melhor gerenciamento de riscos pela administração tributária, a partir da qual será possível oferecer melhores serviços à sociedade, em absoluto respeito às normas legais dos sigilos bancário e fiscal".

"Os dados recebidos poderão, por exemplo, ser disponibilizados na declaração pré-preenchida do imposto de renda da pessoa física no próximo ano, evitando-se divergências."

O Ministério da Fazenda explicou que, "quando uma pessoa realiza uma transferência de sua conta para um terceiro, seja enviando um Pix ou fazendo uma operação do tipo DOC ou TED, não se identifica [...] para quem ou a que título esse valor individual foi enviado".

"Ao final de um mês, somam-se todos os valores que saíram da conta, inclusive saques e, se ultrapassado o limite de R$ 5 mil para uma pessoa física, ou de R$ 15 mil para uma pessoa jurídica, a instituição financeira prestará essa informação à Receita Federal."

·        9 de janeiro: vídeo falso e pronunciamento de Haddad

Um vídeo falso, feito por inteligência artificial, simulava uma suposta fala do ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT).

No conteúdo falso, que teve grande repercussão nas redes sociais, a voz e o movimento dos lábios dele foram alterados, para dar a impressão de que Haddad anunciava a criação de uma série de novos impostos — sobre cachorros e mulheres grávidas, por exemplo.

A Advocacia Geral da União (AGU) chegou a enviar uma notificação extrajudicial ao Facebook para que o vídeo falso fosse retirado do ar.

"A postagem, manipulada por meio de inteligência artificial, contém informações fraudulentas e atribui ao ministro declarações inexistentes sobre a criação de um imposto incidente sobre animais de estimação e pré-natal", destaca a notificação da AGU.

Nesse mesmo dia, o próprio Haddad publicou nas redes sociais um vídeo em que desmentia os boatos, inclusive sobre o monitoramento das contas bancárias.

"Imposto sobre Pix. Mentira. Imposto sobre quem compra dólar. Mentira. Imposto sobre quem tem animal de estimação. Mentira", diz ele.

"Fake news prejudica a democracia e traz uma série de inseguranças para as pessoas. Então fique ligado, deixe a mentira de lado", concluiu o ministro.

·        10 de janeiro: Lula se manifesta

Um dia depois, foi a vez de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fazer novos esclarecimentos e desmentidos.

Para isso, publicou um vídeo em que ele próprio faz um Pix para a campanha de arrecadação que pretende pagar a dívida da construção da NeoQuímica Arena, o Estádio do Corinthians.

"Por que eu tomei essa decisão? Porque tem uma quantidade enorme de mentiras desde ontem em todas as redes sociais dizendo que o governo vai taxar o Pix. E eu quero provar que é mentira", afirmou ele.

·        13 de janeiro: Bolsonaro entra em cena

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) começou a fazer uma série de postagens no X (antigo Twitter) sobre o Pix.

Ele lembrou que a ferramenta foi criada durante seu governo e classificou mudanças na fiscalização como "covardia com os mais pobres".

"Além de diaristas, camelôs, cabeleireiras, jardineiros, pedreiros, taxistas, palhaços de festa, ajuda a filhos/netos, vendedores de pipoca, etc, poderão ser obrigados a entregar parte de seu ganho para o Imposto de Renda", escreveu Bolsonaro.

O ex-presidente ainda afirmou que acionaria a bancada de deputados e senadores do PL, e de outros partidos, em busca de "medidas para derrubar essa desumana instrução normativa".

·        14 de janeiro: vídeo de Nikolas e mudança de ministro

Um vídeo sobre o debate publicado no Instagram pelo deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) viralizou nas redes sociais — atualmente, está com mais de 286 milhões de visualizações no Instagram.

Ferreira criticou o aumento da fiscalização sobre as informações bancárias e a qualidade dos serviços públicos mantidos com o dinheiro dos impostos, como saúde e educação.

Embora diga que "o Pix não será taxado", o deputado federal lembra que "a comprinha da China não seria taxada, e foi".

Ele também declarou que "não duvida" que o Pix possa ser alvo de alguma taxa no futuro.

Nesse mesmo dia, o publicitário Sidônio Palmeira tomou posse como novo ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom).

Ele substituiu o deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS), que ocupava o cargo desde o início do terceiro governo Lula.

Em discurso durante o evento, Palmeira lamentou que os "avanços [do governo] nem sempre são percebidos por uma parcela da população" e citou as "mentiras nos ambientes digitais".

·        15 de janeiro: o fim antecipado

Após toda a repercussão das últimas semanas, Haddad e Robinson Barreirinhas, secretário da Receita Federal, anunciaram que o governo revogou a norma da Receita Federal.

O ministro ainda detalhou que o presidente Lula vai assinar uma medida provisória (MP) para assegurar que as transações via Pix não sejam tributadas.

"O ato que o Barreirinhas acaba de anunciar é justamente para dar força à tramitação de uma MP que o presidente está para assinar [...] que reforça os princípios tanto da não oneração, da gratuidade do uso do Pix, quanto de todas as cláusulas de sigilo bancário em torno do Pix", disse Haddad.

Ele ainda disse que o assunto foi "objeto de exploração" por pessoas que, na visão dele, "estão cometendo um crime".

"Porque quando você desacredita um instrumento público, você está cometendo um crime", argumentou o ministro.

"O estrago causado está feito por esses inescrupulosos, inclusive senador e deputado, agindo contra o Estado. Essas pessoas vão ter que responder pelo que fizeram, mas não queremos contaminar a tramitação da MP no Congresso", complementou Haddad.

¨      Pix: o que o governo faz com monitoramento das transações? Que dados são enviados à Receita?

governo federal recuou nesta semana de uma regra que havia entrado em vigor no dia 1º de janeiro que alterava algumas normas que regem o Pix — o meio de pagamento instantâneo no Brasil.

As novas regras obrigavam diversas instituições financeiras e empresas de pagamentos a informarem a Receita Federal sobre movimentações mensais acima de R$ 5 mil para pessoas físicas e R$ 15 mil para pessoas jurídicas.

governo ressaltou que esse monitoramento não alterava o sigilo bancário — um direito de todos no Brasil de que suas transações bancárias não são compartilhadas, nem mesmo pelo governo — e que também não haveria nenhuma cobrança de taxas sobre transferências com Pix.

Segundo a Receita Federal, as regras sequer teriam qualquer mudança para usuários do Pix — e se aplicavam apenas às instituições financeiras e empresas de pagamento.

No entanto, uma onda de boatos se espalhou sobre a intenção do governo de taxação do Pix. Diante dos boatos, o governo recuou da medida.

·        Quais dados são informados à Receita Federal?

O governo federal diz que o monitoramento de transações financeiras via Pix é feito pela Receita Federal para identificar grupos criminosos ou sonegadores.

Segundo o governo, as movimentações de Pix já eram informadas pelas instituições financeiras à Receita Federal. Isso acontece desde 2022, quando foi publicado o Convênio ICMS 166/2022.

E não se trata apenas do Pix. Outras transações mensais com valores superiores a um certo limite também são informadas, como cartões de crédito e transferências por TED (Transferência Eletrônica Disponível).

Esse dados são repassados por bancos desde 2003. Mas nos últimos anos, com o surgimento de novas tecnologias, apareceram novos agentes econômicos que também realizam transações financeiras entre as pessoas e não estavam enquadradas na lei.

Segundo o governo o que a nova norma atualizava é "estender essa obrigação também a instituições financeiras tais como as fintechs e outras soluções de pagamento e transferência, como as carteiras digitais e moedas eletrônicas".

A medida também mudou os limites de movimentação para monitoramento — de R$ 2 mil para R$ 5 mil no caso de pessoas físicas; e de R$ 6 mil para R$15 mil para pessoas jurídicas.

"Isso é bom para o contribuinte, porque diminui a chance de passar por fiscalização e também é bom para a Receita Federal, porque ela pode focar a sua energia em quem realmente precisa ser fiscalizado", disse Robinson Barreirinhas, secretário da Receita Federal do Brasil.

As instituições financeiras reportam apenas os valores consolidados de operações, sem a identificação de beneficiários ou natureza das transações. O sigilo bancário não é violado.

·        O que a receita faz com dados do Pix?

A Receita Federal diz que o monitoramento das transações de Pix é feito como parte do esforço para identificar criminosos e sonegadores.

A forma como a Receita faz isso é através do cruzamento de dados — ou seja, levantando diversas informações sobre pessoas e empresas e buscando entender se elas fazem sentido entre si.

A Receita Federal tem diversas fontes de informação, como as declarações (de imposto de renda de pessoas e empresas, de serviços médicos ou de atividades imobiliárias, por exemplo), alguns dados bancários e de movimentação financeira que não estão sob sigilo bancário e dados de cartório.

Os dados dessas diversas fontes são cruzados na busca de inconsistências.

Por exemplo: se uma empresa ou pessoa declara ter feito uma grande doação a uma instituição de caridade, mas essa instituição não declara ter recebido nenhum grande aporte, isso pode ser um indício de sonegação.

A Receita possui sistemas automáticos que identificam essas inconsistências e colocam declarações em uma "malha fina" — uma análise mais aprofundada dos dados.

Entre as diversas informações que a Receita Federal usa estão os dados de Pix informados pelas instituições financeiras — que virou alvo de boatos ao longo desse mês.

Todos os dados de movimentação superiores aos limites que falamos acima são informados em um sistema informático conhecido como Sistema Público de Escrituração Digital (SPED), que existe desde 2007.

O conjunto de arquivos que as instituições financeiras passam para a Receita se chama e-Financeira, que foi adotado em 2016. A e-Financeira substituiu outra declaração que já existia antigamente (a Declaração de Informações sobre Movimentação Financeira, ou DIMOF).

A lista de instituições que precisam fornecer dados de seus clientes na declaração e-Financeira é atualizada de tempos em tempos. Em 2020, foram incluídos na lista planos de saúde, seguradoras, corretoras de valores, distribuidoras de títulos e valores mobiliários, administradoras de consórcios e entidades de previdência complementar.

As informações são prestadas duas vezes ao ano: no último dia útil de fevereiro e no último dia útil de agosto.

Esses dados também são parte de um esforço internacional para se combater crimes como lavagem de dinheiro. O e-Financeira foi criado depois que o Brasil assinou em 2014 um acordo com os Estados Unidos em que os países compartilham dados que ajudem a identificar potenciais crimes financeiros.

·        O monitoramento do Pix não viola o sigilo bancário?

A Receita Federal diz que o sigilo bancário — regulado pela Lei Complementar 105/2001— não é violado com o monitoramento de dados do Pix através das declarações e-Financeira. A lei detalha os casos em que o sigilo bancário pode ser quebrado — mas isso sempre envolve a necessidade de decisões judiciais específicas.

No caso do monitoramento de dados através das declarações e-Financeira, o sigilo não está sendo violado porque a Receita não tem acesso a detalhes das transações de Pix, como quantas transações foram feitas, a natureza do dinheiro envolvido e com quem foi feita a transação.

Os dados repassados à Receita são apenas consolidados — e nos casos em que o total mensal das transações são superiores aos estabelecidos pela regra (mais de R$ 5 mil mensais para pessoas físicas ou R$ 15 mil para pessoas jurídicas).

Esses consolidados são usados para checar se não há inconsistências com o que foi declarado por pessoas e empresas em outras declarações, como no caso da declaração do imposto de renda.

Quais os riscos de monitoramento do Pix? Pode haver taxação?

Na quarta-feira (16/1), quando foi feito o anúncio do recuo do governo federal nas novas regras do Pix, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que o governo vai editar uma Medida Provisória para reforçar a gratuidade do uso do Pix e todas as cláusulas de sigilo bancário em torno do método.

A Fenacon — federação de empresas de contabilidade — disse na época em que o Pix passou a ser monitorado que "a Receita Federal tem acesso a um volume maior e mais detalhado de dados sobre as transações financeiras das empresas, o que permite uma fiscalização mais rigorosa e eficiente".

No entanto, a entidade também alertou para riscos que as pequenas empresas sofrem com o cruzamento de dados do Pix. A Fenacon enumerou três problemas:

Aumento do risco de autuações fiscais: "com base nas informações obtidas pelas transações por Pix, a Receita Federal pode autuar empresas que não estejam cumprindo suas obrigações fiscais, como a emissão de notas fiscais ou o pagamento de impostos".

Necessidade de maior controle fiscal: "as empresas precisam ter um controle fiscal mais rigoroso, registrando todas as suas transações de forma correta e documentando-as adequadamente. Isso inclui manter um livro caixa atualizado e emitir notas fiscais para todas as vendas, mesmo para pequenas quantias."

Custos com profissionais contábeis especializados: "o aumento da complexidade da gestão fiscal pode levar à necessidade de contratar profissionais contábeis especializados".

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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