'A esquerda e o
woke são absolutamente opostos', diz filósofa americana
A filósofa
americana Susan Neiman admite que está surpresa com a repercussão que seu
último livro, A esquerda
não é woke, publicado em vários idiomas, teve em tantos países.
"Não sei por
que estão interessados nele na Tailândia,
no Líbano ou na Croácia", disse ela, em meio a risadas, durante uma
entrevista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
"Fiquei
surpresa com o quão internacional o problema parece ser."
A autora se refere
à confusão que, na sua opinião, existe entre ser de esquerda e ser woke, termo que vem
literalmente da palavra em inglês "woke", pretérito do verbo
"wake", que significa "acordar". A gíria se transformou em
uma referência a estar atento às injustiças sociais.
Neiman — que
se define como de esquerda e dirige o Einstein Forum, na Alemanha, desde 2000 —
não apenas considera "esquerda" e "woke" conceitos opostos,
como também argumenta que, ao se misturar, eles ajudaram Donald Trump a vencer as eleições presidenciais nos EUA em
novembro.
Autora de livros
sobre o Iluminismo, a filosofia moral, a metafísica e a política, Neiman deu aula
nas universidades de Yale (EUA) e Tel Aviv (Israel) — e dedicou sua carreira a
colocar conceitos filosóficos profundos em termos simples.
A BBC News Mundo
conversou com a escritora em decorrência do Hay Festival, que acontece em
Cartagena, na Colômbia, de 30 de janeiro a 2 de fevereiro.
<><> LEIA
A ENTREVISTA:
·
Por
que você decidiu escrever um livro afirmando que a esquerda não é woke?
Susan Neiman -
Porque eu andei conversando com amigos em vários países, e todos eles me diziam
algo como: "Receio não ser mais de esquerda"... E mencionavam alguma
declaração ou evento woke com o qual não se identificavam.
Era algo que sempre
se repetia, e achei importante me aprofundar em por que muitos de nós temos
essa impressão de que há algo errado com a esquerda.
O objetivo do livro
é justamente analisar o que está enfraquecendo (a esquerda), por que as pessoas
estão confusas.
É um problema que
começou nas universidades americanas, mas se espalhou muito rapidamente pelo
mundo.
·
Qual
você acha que é a principal diferença entre ser de esquerda e ser woke?
Neiman - A
confusão acontece porque o woke é fortemente alimentado por elementos
tradicionais da esquerda: "na dúvida, fique do lado dos oprimidos" é
um deles.
Esse é um
sentimento muito esquerdista, mas agora é comum tanto para a esquerda quanto
para o woke.
O problema é que as
pessoas tendem a não perceber que, junto a esse sentimento tradicional de
esquerda, há algumas suposições filosóficas muito de direita no woke.
Por exemplo, é de
esquerda decidir que a diversidade é sempre o primeiro e mais importante
mandamento, porque muita gente foi deixada de fora de posições de poder e
influência por pertencer a minorias?
É uma questão que
surge o tempo todo.
Minha forte
sensação é que sim, a diversidade é um bem — mas não o bem supremo. E é um
insulto às mulheres contratá-las
só porque são mulheres, assim como é um insulto às pessoas não brancas presumir
que, só porque não são brancas, elas têm uma espécie de autoridade.
Vou entrar em mais
detalhes sobre isso no meu próximo livro: ser uma vítima não é, por si só, uma
fonte de autoridade. E nós tendemos a pensar que é.
·
Talvez
seja necessário definir conceitos. O que exatamente você quer dizer quando fala
sobre woke?
Neiman - Não
defino woke porque não acho que seja um conceito coerente, porque
depende de uma divisão entre sentimentos de esquerda e pensamentos muito de
direita.
O que faço no livro
é definir o que a esquerda significa hoje. E woke é a antítese dos
três primeiros conceitos que aponto como comuns à esquerda liberal.
Primeiro,
universalismo, em vez de tribalismo.
A esquerda e os
liberais são fundamentalmente universais.
Não presumimos,
como a direita faz, que você só pode se conectar profundamente com membros da
sua tribo e, portanto, só tem obrigações genuínas para com eles.
Segundo, lutamos
por justiça, não apenas por poder.
Às vezes, pode ser
muito difícil manter as duas coisas separadas, mas a luta pela justiça é de
esquerda.
E embora muitos
tenham desistido da ideia de que a justiça existe, acreditando que é uma
máscara para o poder, é essencial que a esquerda não desista da sua busca e da
sua universalidade.
Terceiro, o
progresso é possível; não é inevitável. Sim, está nas mãos dos seres humanos,
que são tão capazes de fazer tanto retrocessos quanto progressos, mas é
possível, e há exemplos de que isso aconteceu no passado.
Isso é algo
importante que, muitas vezes, é negado pelo woke. Mas não é verdade.
Quando dizem que os
afro-americanos nos EUA ainda vivem sob as condições das leis de Jim Crow, ou
até mesmo de escravidão, ou que as
mulheres ainda vivem no patriarcado, eu digo que sim, ainda vivemos com racismo e sexismo,
mas dizer que não avançamos na luta contra isso é uma visão muito perigosa, porque
leva as pessoas a se desesperarem com o progresso futuro.
Eu diria que há um
quarto conceito: como o fascismo e o neofascismo estão crescendo no
mundo, precisamos de frentes populares formadas por esquerdistas e liberais.
Mas é preciso
distinguir entre os dois, porque para a esquerda os direitos sociais são
direitos genuínos, tão importantes quanto os direitos políticos.
Para a esquerda, o
direito à moradia, à saúde, à educação, ao acesso à cultura e a leis
trabalhistas justas são tão importantes quanto, por exemplo, a liberdade de
expressão.
·
Você
diria que sua ideia de uma esquerda universalista se aplica apenas à Europa e
aos EUA, ou também a regiões como a América Latina, onde há pessoas que se
definem como esquerdistas e apoiam ou evitam condenar governos autoritários que
também se dizem esquerdistas ou revolucionários?
Neiman - Sei
muito mais sobre a história dos EUA e da Europa do que sobre a América Latina,
mas fiquei extremamente surpresa que o livro tenha sido lançado no Chile e no
Brasil, e que tenha iniciado um grande debate.
São dois grandes
países latino-americanos com governos socialistas, com pequenas maiorias,
ameaçados pela direita.
E o que as pessoas
que gostaram do livro me disseram é que era disso que elas precisavam, porque
sentiam que Lula e Gabriel Boric, para poder formar
coalizões, tinham que incluir coisas que pareciam woke demais para
elas.
Por exemplo, em
ambos os países, fiquei chocada com o fato de haver discussões sobre banheiros
com base em gênero.
Achava que só os
políticos republicanos da Carolina do Norte se preocupavam com esse tipo de
coisa.
A maioria das
pessoas, quando vai ao banheiro, fecha a porta. Quem se importa? É um tema
inventado, mas que tem sido muito utilizado. Trump usou isso com muito sucesso.
O livro também está
sendo lançado na Tailândia, Coreia do Sul e Líbano. E eu me perguntei: Por que
eles estão publicando esse livro? Um amigo me disse: porque eles estão fartos
da teoria pós-colonial, e acreditam que alguém tem que acabar com ela.
·
E
indo além de Boric ou Lula, como se inserem as esquerdas radicais que até há
pouco tempo defendiam a luta armada, ou que continuam a abraçar o conceito de
luta de classes, que poderia ser uma forma de ver a sociedade pelo prisma das
identidades ou das tribos…
Neiman - É
verdade.
Não acho que a
redução de classe seja melhor que a redução de raça. E se pensarmos por um
segundo, nem Marx, nem Engels, nem Lênin, nem Trotsky vieram da classe
trabalhadora.
Há incoerência no
próprio marxismo em relação a essas bases.
Tentar discutir
classe 150 anos depois, quando em nenhum lugar do mundo a classe está
estruturada como estava na época de Marx e Engels, faz muito pouco sentido para
mim.
Sobre a luta
armada, não tenho certeza se há bons exemplos de lutas revolucionárias armadas
que tenham dado certo a longo prazo.
Uma crítica do
livro na Alemanha dizia: "Ela não é realmente de esquerda, é uma
social-democrata, não acredita na revolução armada."
Eu diria a qualquer
um que ainda acredita na revolução armada em um mundo armado até os dentes, que
teríamos sorte se não explodíssemos uns aos outros em um futuro próximo.
·
Aliás,
a luta armada, assim como os governos autoritários, nega o conceito de direitos
humanos que é central na sua definição de esquerda universalista...
Neiman - Sem
dúvida.
·
A
confusão que você aponta entre esquerda e woke é algo novo ou é
produto de um processo histórico?
Neiman - O que
chamamos atualmente de woke é o que nos anos 1990 era chamado de
politicamente correto.
O engraçado é que
tenho idade suficiente para me lembrar de quando o politicamente correto era
usado ironicamente por pessoas socialistas, mas antistalinistas, para zombar
daqueles que pareciam rígidos demais.
Depois, foi tomado
pela direita.
E é interessante
que algo assim esteja acontecendo com o woke, um termo que começou a ser
usado na década de 1930 por músicos de blues afro-americanos para denunciar o
racismo, e não foi muito mais usado até Trump chegar ao poder.
De fato, não estava
presente nas eleições americanas de 2016.
Acho que, de certa
forma, isso se desenvolveu como resultado da geração que cresceu pensando que a
presença de Obama era normal, que era normal ter alguém na Casa Branca que era
muito inteligente e competente.
Você pode não
concordar com algumas de suas políticas, mas era óbvio que ele tinha
integridade. E foi um choque passar de oito anos disso para o primeiro governo
Trump.
Há uma citação de
Martin Luther King que Obama gosta de usar: "O arco do universo é longo,
mas se curva em direção à justiça".
Mas, de repente, o
arco se curvou na direção errada.
Acho que houve uma
sensação de desesperança, de que quase tudo o que podia ser feito era uma ação
simbólica, que é no que consiste boa parte do "wokeísmo".
Quando uma pessoa
de 20 anos acha que é muito importante mudar seus pronomes, mesmo que nada mais
possa ser mudado, acho que ela tem 20 anos.
Mas alguns meses
atrás ouvi um podcast da Judith Butler, e ela falou sobre o quanto o mundo
mudou porque as pessoas mudam seus pronomes.
É patético que uma
pessoa levada a sério como pensadora política não veja que isso é um substituto
para a mudança real.
·
E
qual é o perigo de usar 'esquerda' e 'woke' como sinônimos no mundo de hoje?
Neiman - É que
eles não são! São absolutamente opostos!
A ideia de que não
há nada além de poder, que as reivindicações de justiça não passam de exageros,
é amada por ditadores de direita e ditadores que se dizem de esquerda, mas
também está muito presente nas tradições woke: você não pode esperar
justiça, deve apenas trabalhar pelo poder para sua tribo.
Essa é uma maneira
completamente diferente de estar no mundo como um verdadeiro esquerdista.
Esta é a principal
razão pela qual você não pode ser as duas coisas. Mas também há uma razão
prática.
Acredito que,
embora Kamala Harris não tenha
feito uma campanha woke, Joe Biden fez. É
curioso: o homem branco idoso da Casa Branca era extremamente woke.
Ele tentou
enfatizar bastante a política de identidade. Fiquei furiosa quando ele nomeou
Ketanji Brown Jackson para a Suprema Corte.
Tenho certeza de
que ela é uma boa juíza, mas dizer em sua campanha, quando tentava vencer as
primárias na Carolina do Sul, que nomearia a primeira juíza mulher negra para a
Suprema Corte é minar Ketanji Brown Jackson.
Então, Biden,
embora não parecesse woke, estava comandando o governo
mais woke possível.
·
E
Trump: quão woke ele foi durante a campanha?
Neiman - Bem,
a última declaração antitrans que Trump fez alguns dias antes da eleição foi
uma obra-prima sinistra. De acordo com as pesquisas, convenceu 2,7% dos
eleitores de Trump, e ele venceu por apenas 1,5%. Olha a dimensão.
Então é
compreensível que o "wokeísmo" incomode e desanime as pessoas em
tantos lugares.
Na Alemanha, temos
eleições em breve, e isso desempenhou um papel importante na ascensão da
direita.
·
Quão
preocupada você está com um novo governo Trump nos EUA?
Neiman - Estou
muito preocupada.
A maior esperança
que eu acho que podemos ter, por incrível que pareça, é que as pessoas que ele
escolheu para sua equipe são tão incompetentes e terríveis que pode haver
muitas brigas internas.
Trump não gosta de
ficar na sombra de ninguém, e sabotou qualquer um que pudesse fazer isso com
ele. Ele não pode sabotar (Elon) Musk de forma tão
direta, porque Musk é mais rico que ele.
Mas é horrível
pensar que nossa maior esperança está na mesquinharia e na competição entre
duas pessoas desagradáveis.
Não conheço ninguém
que possa prever com certeza o que vai acontecer.
·
Você
mencionou o risco do fascismo. Muitos comparam o mundo de hoje com o que
aconteceu no período entre guerras na Europa e, em particular, na Alemanha.
Como você vê esse paralelismo?
Neiman - A
verdade é que tenho menos medo na Alemanha do que em outros lugares.
A história nunca
acontece duas vezes da mesma maneira.
Terminei meu livro
dizendo que a única razão pela qual os nazistas conseguiram tomar o poder sem
ter uma maioria parlamentar foi porque a esquerda estava dividida, algo que tem
ocorrido com muita frequência.
É paradoxal, porque
você imaginaria que para todos esses grupos nacionalistas, cada um pensando que
sua nação é a melhor, deveria ser muito mais difícil se organizar. Mas não é
esse o caso. Eles trabalham juntos com muita facilidade.
Então, acho que as
comparações são precisas? Não, também porque o papel da ideologia é muito
diferente agora.
Mas acho que vale a
pena escutar as comparações como uma advertência.
¨
Antes de deixar Casa Branca, Biden avalia manter TikTok nos EUA
Nos últimos dias de seu mandato, a administração de Joe Biden está
buscando alternativas para evitar a proibição do TikTok nos
Estados Unidos, prevista para entrar em vigor no próximo domingo (19/01),
enquanto se prepara para transferir a questão para o presidente eleito Donald
Trump. Na última quarta-feira (15), Biden usou seu discurso de despedida para
reforçar a mensagem de que a “alma da América” continua em risco.
A administração de Joe Biden está explorando maneiras de manter o
TikTok disponível no país, mesmo que a proibição prevista para entrar em vigor
no domingo seja confirmada. “Os americanos não devem esperar que o TikTok seja
banido de repente no domingo”, afirmou um oficial da administração, indicando
que alternativas estão sendo avaliadas para evitar que o aplicativo fique
inacessível.
Bruce Reed, vice-chefe de gabinete da Casa Branca, lidera as
discussões e tem recebido apelos para impedir a proibição. Caso Biden avance
com o plano, a suspensão do TikTok não marcaria o fim de seu mandato,
transferindo a decisão para Donald Trump, que assume a Presidência na
segunda-feira.
Enquanto isso, o futuro conselheiro de segurança nacional de
Trump, Mike Waltz, disse que o novo governo está pronto para intervir e
preservar o acesso ao aplicativo no mercado americano. Já Pam Bondi, indicada
por Trump para procuradora-geral, não garantiu que cumprirá a proibição durante
sua audiência no Senado. A questão segue pendente de decisão do Congresso e da
Suprema Corte.
<><>
Decisões estratégicas
Nos últimos dias, Biden tomou decisões estratégicas para
consolidar seu legado e proteger políticas de seu governo. Ele proibiu novas
perfurações de petróleo e gás em águas costeiras, criou monumentos nacionais na
Califórnia para preservar áreas naturais e assinou a lei climática mais
ambiciosa da história.
No campo social, o presidente Biden concedeu um perdão recorde ao
comutar as sentenças de cerca de 1.500 pessoas e perdoar 39 indivíduos, em um
dos maiores atos de clemência de um único dia na história dos Estados Unidos.
Além disso, ele retirou Cuba da lista norte-americana de países
que patrocinam o terrorismo, uma medida que reverteu a classificação atribuída
pelo governo Trump. Biden também expandiu as proteções contra deportação para
milhares de imigrantes, incluindo aqueles de países como Venezuela e Ucrânia.
No campo global, reafirmou o papel dos EUA como líder mundial, com
apoio à Ucrânia e estratégias para competir com a China em tecnologia.
Fonte: BBC News
Mundo/Opera Mundi
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