As empresas russas
que estão usando escambo para evitar sanções pela guerra na Ucrânia
Houve uma época,
nos anos 1980, em que o limitado acesso a dólares levou importadores soviéticos
a pagar por compras de Pepsi com caixas de vodca Stolichnaya.
Mais para o fim da
década, a PepsiCo chegou a receber submarinos, um destroyer e navios
petroleiros como contrapartida para enviar carregamentos do refrigerante para
a União Soviética, em um período em
que tentava expandir sua marca no país.
"Estamos
desarmando a União Soviética mais rápido que vocês", brincou o diretor da
PepsiCo, referindo-se ao contrato para o assessor de segurança nacional do
presidente americano George H. W. Bush, segundo os arquivos do jornal The New
York Times.
Com o acordo, a
URSS de Mikhail Gorbachev receberia o
equivalente a US$ 3 bilhões em produtos.
Para a Pepsi, a
estratégia deu certo. Mesmo com o colapso da União
Soviética em
1991, a Rússia continua
sendo o segundo maior mercado da marca fora dos Estados Unidos.
E, passadas pouco
mais de duas décadas, o escambo está de volta ao país.
As sanções
internacionais impostas
devido à guerra na Ucrânia levaram as
empresas a recorrer à mais antiga forma de comércio conhecida – a ponto de,
recentemente, o próprio governo russo ter elaborado e divulgado um guia do
escambo.
As sanções tiveram
início ainda em 2014, quando a Rússia anexou unilateralmente a península
ucraniana da Crimeia, e recrudesceram com a invasão ao território ucraniano em
2022.
Elas incluem
bloqueios ao fornecimento de tecnologia, congelamento de ativos, penalizações
bancárias e
a proibição da compra de petróleo e gás da Rússia.
O tema ganhou ainda
mais relevância na Rússia com a recente ameaça dos Estados Unidos aos bancos
internacionais que operam no país.
O banco de dados da
Faculdade de Administração da Universidade Yale, nos Estados Unidos, indica que
mais de mil empresas de todo o mundo reduziram suas operações na Rússia,
incluindo alguns dos principais bancos europeus e americanos.
"Muitos
simplesmente se retiraram ou reduziram suas operações, prevendo novas sanções.
Até bancos muito rentáveis, como o austríaco Raiffeisen, estão reduzindo os
empréstimos", declarou à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol
da BBC, a economista Gayle Allard, professora da Universidade IE, na Espanha.
·
Pressão
sobre terceiros
Muitos bancos
europeus e americanos já deixaram de oferecer crédito para clientes russos, mas
Washington aumentou a pressão sobre instituições de outros países que continuam
operando na Rússia.
Os Estados Unidos
ameaçam confiscar ativos, aplicar multas ou rescindir suas relações como
correspondentes bancários.
A pressão sobre os
bancos de outros países que continuam operando na Rússia aumentou no início de
2023, quando o governo Biden ameaçou desconectar do sistema bancário americano
as instituições financeiras que auxiliassem o esforço bélico de Moscou.
Esta medida também
afeta os bancos da China, que é o grande aliado da
Rússia no momento.
"As filiais
russas de bancos estrangeiros continuam conectadas ao Swift, o sistema mundial
de mensagens financeiras. Por isso, elas desempenham papel fundamental nas
transferências de dinheiro, dentro e fora da Rússia", explica Milya
Safiullina, analista da equipe de instituições financeiras da agência de
avaliação de riscos Scope Ratings.
Cortando este laço,
ou pelo menos pressionando para desacelerar as transações, "os pagamentos
através das fronteiras estão diminuindo ou até deixando de ser realizados em
dólares americanos nos principais bancos", acrescenta ela.
Esta situação levou
alguns exportadores russos a recorrer a acordos de escambo.
·
Guia
de escambo para empresas
"Embora as
transações de escambo fossem comuns entre governos, agora elas estão ficando
cada vez mais populares entre as empresas", declarou ao jornal britânico
Financial Times a vice-presidente da Associação de Exportadores e Importadores
de Moscou, Irina Zasedatel.
Ela explica que
"os pagamentos diretos são difíceis na situação atual e o escambo é uma
excelente alternativa".
O objetivo da
adoção desta forma primitiva de comércio é evitar os problemas de pagamento,
reduzir a visibilidade dos órgãos regulamentadores ocidentais sobre as
transações russas e limitar o risco cambial.
"As transações
de escambo em comércio exterior permitem intercambiar produtos e serviços com
empresas estrangeiras, sem necessidade de realizar transferências
internacionais", explicou o vice-ministro de Desenvolvimento Econômico da
Rússia, Vladimir Ilyichev.
Em fevereiro deste
ano, o Ministério da Economia da Rússia publicou um documento de 15 páginas,
com um guia detalhado ensinando a realizar transações de escambo.
As autoridades
dividiram o escambo em três categorias.
A primeira inclui o
intercâmbio de produtos e serviços entre duas partes em acordo. A segunda prevê
a participação de mais de duas empresas no esquema e a terceira inclui empresas
que fornecem matérias primas ou equipamentos e aceitam os produtos fabricados
como meio de pagamento.
"Fazer
negócios é mais caro quando não se dispõe dos canais financeiros normais ou de
divisas para as transações", explica Allard.
"As tarifas
das transferências internacionais de dinheiro, por exemplo, estão muito mais
altas para a Rússia do que antes."
Para a professora,
é evidente que as sanções impostas pelos países ocidentais à Rússia após a
invasão da Ucrânia em 2022 não paralisaram a economia, como muitos esperavam.
Mas estão cobrando seu preço.
"De forma
geral, a dinâmica do fluxo financeiro indica uma desaceleração gradual da
atividade econômica", declarou o governo russo em um comunicado.
"Em outubro, o
volume de dinheiro recebido através do sistema de pagamentos do Banco da Rússia
diminuiu em 2,9% em comparação com o nível habitual."
·
Bancos
de terceiros ou outras divisas
"As últimas
sanções impostas pelo presidente Biden antes de deixar o cargo contra diversos
bancos russos restantes, incluindo o gigante da energia GazpromBank, serão
sentidas", afirma Allard.
A professora
relembra que o GazpromBank atua, na verdade, como uma câmara de compensação
para as exportações energéticas da Rússia.
Até agora, ele
havia ficado fora das sanções, em parte, para permitir que alguns países da
Europa central e oriental continuassem pagando pelas suas importações de gás
russo.
"Agora, eles
serão obrigados a utilizar bancos de terceiros ou outras moedas em vez do
dólar", explica ela.
"Isso
desacelera os negócios, levando a Rússia a aceitar acordos que incluem o
escambo, e pode reduzir a entrada de dinheiro na Rússia."
A China, a Índia e
o Irã também estudam mecanismos de escambo. Mas os primeiros países a anunciar
um acordo deste tipo em 2024 foram a Rússia e o Paquistão, segundo a agência de
notícias russa.
O convênio foi
formalizado durante o Fórum de Comércio e Investimentos Paquistão-Rússia,
realizado em Moscou no último mês de outubro.
Em novembro, a
empresa russa de comércio agrícola Astarta Agrotrading firmou um acordo de
escambo com duas empresas do Paquistão para trocar grãos-de-bico por
tangerinas.
Segundo os termos
do convênio, a Astarta Agrotrading irá exportar grãos-de-bico e lentilhas e, em
troca, a paquistanesa Meskay & Femtee Trading Company fornecerá arroz e
tangerinas.
Concretamente
falando, a Rússia exportará 20 mil toneladas de grãos-de-bico e o Paquistão irá
enviar 20 mil toneladas de arroz.
Em um acordo
paralelo, a Rússia irá exportar mais 15 mil toneladas de grãos-de-bico e 10 mil
toneladas de lentilhas, em troca de 15 mil toneladas de tangerinas e 10 mil
toneladas de batatas do Paquistão.
'Os anos 90
voltaram'
"Bem-vindos
aos anos 90", diz a revista econômica russa Newizv na sua página na
internet.
A publicação
critica "o departamento antes mais liberal, responsável por introduzir as
mercadorias russas onde seja possível, [que] preparou um curso intensivo sobre
a forma mais antiga de comércio praticada pela humanidade antes da invenção do
dinheiro: o escambo".
"Os anos 90
voltaram, não há dinheiro para pagar. Eu me refiro ao dinheiro global, dólares.
A China não está particularmente disposta a oferecer yuans e, no
exterior, ninguém precisa de rúpias [indianas], na verdade."
A questão não é que
a Rússia vá abandonar o dinheiro nas suas atividades de comércio exterior. Mas,
com seus novos acordos, o país demonstrou que está disposto a explorar outros
caminhos que permitam contornar as sanções impostas pelo Ocidente.
Fonte: BBC News
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