Por que africanos
estão revendo relações com europeus
Especialistas
analisam que a chegada do decolonialismo francês ao Senegal é emblemática,
sendo este o mais novo país africano a rever relações com sua antiga metrópole.
O primeiro-ministro
do Senegal, Ousmane Sonko, afirmou que fechará
todas as bases militares estrangeiras no país em um futuro próximo
— declaração que tem como alvo a França, antigo colonizador do país.
O anúncio está
alinhado com a declaração dada em novembro pelo presidente senegalês, Bassirou
Diomaye Faye, de que a presença de bases militares francesas no território do
país é incompatível com a soberania nacional. Faye, no entanto, sublinhou
que a retirada das tropas estrangeiras não constitui um rompimento com a
França.
Em entrevista
ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, analistas explicam qual o
impacto geopolítico da retirada das tropas francesas do Senegal e como a
decisão do país se relaciona com o movimento contra o neocolonialismo europeu
que eclodiu no continente
africano nos
últimos anos.
Rubilson Velho
Delcano, professor de antropologia na Universidade Federal do Maranhão (UFMA),
afirma que, embora a soberania nacional seja o discurso oficial, o desejo
de retirada das tropas reflete pressões internas e externas. Isso porque,
internamente, na África há um crescente sentimento anticolonial, com as populações
exigindo a libertação de estruturas de dependência impostas pela França tanto
no âmbito militar quanto no âmbito econômico.
"Um exemplo
contundente dessa dependência econômica é o controle que a França continua a
exercer sobre o franco CFA, que é a moeda comum utilizada por oito países da
África Ocidental. […] O franco CFA permanece um símbolo de submissão econômica,
pois é garantido pelo Tesouro francês e vinculado ao euro, o que acaba
limitando a soberania monetária dos países africanos. Essa estrutura não só
perpetua a dependência econômica, como também restringe a capacidade dos
governos locais de adotar políticas fiscais e monetárias autônomas, que
beneficiariam certamente suas populações", explica.
Nesse contexto, ele
afirma que a verdadeira soberania "só será alcançada quando
houver ruptura estrutural com essas práticas econômicas e institucionais
herdadas do colonialismo".
Delcano aponta que
a atitude do governo senegalês é pragmática. Se por um lado busca atender às
demandas populares por maior autonomia e autodeterminação, por outro mantém uma
relação funcional com a França, reconhecendo que a ruptura abrupta poderia
gerar consequências econômicas e diplomáticas significativas.
"Então eu
compreendo que é uma tentativa de equilibrar um discurso soberanista com a
realidade de interdependência econômica e histórica. Então é um esforço
necessário, mas essa mudança, essa transformação estrutural, requer dar passos
seguros e não confundir a causa — no caso, o rompimento com essa relação de
colonialidade, com um rompimento definitivo com a França."
No início de
janeiro, um ataque do grupo terrorista Boko Haram ao Palácio Presidencial
do Chade deixou 40 soldados mortos. O episódio foi veiculado na mídia francesa
como uma consequência da retirada das tropas francesas do país.
Entretanto, Delcano
argumenta que a presença das tropas francesas no Senegal também não teve
sucesso em erradicar a célula terrorista, o que levanta dúvidas sobre a
eficácia da estratégia militar francesa.
"A solução
para o terrorismo no Sahel e na África Ocidental especificamente vai além de
intervenções militares estrangeiras, exigindo abordagens integradas que
combinem, do meu ponto de vista, desenvolvimento econômico, inclusão social e
fortalecimento das instituições locais", afirma.
Ele afirma ainda
que, além da França, os EUA também têm presença militar direta e indireta
na África, principalmente por meio do projeto Comando dos Estados Unidos para a
África (AFRICOM), criado sob o argumento de responder a crises de segurança na região.
"Essa presença
é menos falada e geralmente justificada em um contexto de operações
antiterrorismo, mas que na prática não tem um significado real, ou seja, no
sentido de combater efetivamente esses grupos como o Boko Haram e tantos outros
que contribuem para desestabilizar as sociedades africanas ou os países, muitos
deles africanos. Países como a China e a Rússia têm aumentado sua influência,
mas mais na esfera econômica e estratégica do que militar, diretamente
falando."
Segundo o
especialista, também há pressão da sociedade senegalesa para a retirada das
tropas estadunidenses, uma vez que "o Senegal não está em guerra e
não tem necessidade de ter bases militares de países estrangeiros", já que
o país não tem base militar em país nenhum.
Ele afirma que o
que os africanos estão dizendo com a onda
descolonizadora é
que, historicamente, os antigos exploradores e colonizadores sempre se
aproveitaram de suas riquezas e os dividiram "para que possam reinar
e sugar mais a riqueza nacional".
"Então eles
nunca tiveram interesse, no fundo, de nos ajudar. Não é agora que vão. É
importante que nós, a partir de um pan-africanismo unitário, da unidade
nacional, comecemos a nos mobilizar e estabelecer parcerias rentáveis,
parcerias respeitosas com países como a China, que querem trabalhar conosco e
que querem nos ajudar efetivamente. Porque esses [colonizadores] já lidam conosco,
nós já lidamos com eles há muitos anos e nunca nos ajudaram, sobretudo a
França."
José Ricardo
Araujo, pesquisador de África Subsaariana da Escola de Guerra Naval (EGN),
enfatiza que a bagagem histórica da França na África, pautada pelo tom
colonial, faz com que os Estados africanos olhem com maus olhos o
engajamento militar do país na região.
"Tem coisas
que não dá para esquecer. Durante muitos anos nós tivemos contingentes
franceses nessa região fazendo atrocidades e coisas que hoje em dia já foram
assumidas pelo próprio governo francês, que foram coisas que [realmente]
aconteceram. Justamente por conta disso acaba que o engajamento militar e,
principalmente, a presença de um contingente militar permanente é algo que os
Estados africanos não querem mais", explica.
Segundo ele, a
melhor abordagem da França para ter contornado essa desconfiança e evitado essa
perda de influência na região seria investir muito mais em treinamento de
militares locais.
"Pensar em um
modelo de cooperação mais flexível, conseguir justamente treinar e capacitar o
exército local com as habilidades que eles acham que são relevantes para o
combate a grupos extremistas ou qualquer outro desafio."
Questionado se há
risco de acontecer no Senegal o que ocorreu em Angola — quando o país expulsou
os portugueses após a independência do país, mas a economia acabou afetada
porque não havia engenheiros angolanos, o que fez com que muitos prédios e
elevadores do país se transformassem em depósitos de lixo —, Araújo afirma que,
no contexto atual, não há esse risco, uma vez que países como Senegal,
Costa do Marfim e Chade, que atualmente vivem a onda antineocolonialista, têm
isso em mente.
"Tanto é que
todos os três, quando pediram a saída da base militar permanente, deixaram bem
claro que isso não era um rompimento de laços com a França. Era apenas um
pedido para que a base militar deixasse o país. Porque o grande problema deles
é o fato de existir esse simbolismo de uma base militar estrangeira permanente
no seu território, principalmente de um país que é sua ex-metrópole",
afirma.
Araújo destaca
que a saída da França do continente africano cria um vácuo de poder na
região a ser disputado por outras potências e, também, por países emergentes.
Segundo ele, a saída da França pode marcar um enfraquecimento não só do país
europeu na região, mas de todo o Ocidente.
"Ao mesmo
tempo, é importante a gente perceber que essa saída vai abrir um vácuo de poder
e de influência que vai poder ser preenchido também por outras nações
emergentes, como é o caso, por exemplo, do próprio Brasil, da Turquia, da
China, dos Emirados Árabes Unidos, da Arábia Saudita, que são países que vêm
aumentando investimentos nessa região e que vêm fechando, por exemplo,
memorando de entendimento nessa mesma época que a França está saindo."
Ele aponta ainda
que o caso do Senegal é emblemático por se tratar de um dos países mais
estáveis da África Ocidental, que historicamente tem uma postura diplomática de
mediação de conflitos.
"A gente não
está falando de um país que o sistema internacional diz que ocorreu um golpe
[…] e que, por causa disso, ele está pedindo a saída da França, está falando da
democracia mais estável da África Ocidental, pedindo isso, o que é muito
emblemático."
¨ Potência africana é oficializada como nova integrante
do BRICS
O governo
brasileiro anunciou nesta sexta-feira (17) a adesão formal da Nigéria como país
parceiro do BRICS, ampliando o bloco que inclui Brasil, Rússia, Índia, China e
África do Sul. Com isso, a Nigéria se torna o nono integrante na categoria de
países parceiros, criada durante a XVI Cúpula do BRICS, realizada em Kazan, em
outubro de 2024.
A
Nigéria, que possui a sexta maior população do mundo e é a maior do continente
africano, também figura entre as principais economias da África.
Segundo o
governo brasileiro, o país compartilha interesses estratégicos com os demais
membros do grupo, destacando-se no fortalecimento da cooperação do Sul Global e
na promoção de reformas na governança global. Esses temas são considerados
prioritários pela presidência pro tempore brasileira do BRICS em 2025.
Além dos
cinco membros fundadores, os países parceiros do BRICS incluem Belarus,
Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Malásia, Tailândia, Uganda e Uzbequistão. A
inclusão da Nigéria reflete o compromisso do agrupamento em ampliar sua
representatividade geopolítica e econômica, especialmente no contexto das
nações emergentes.
“A Nigéria
possui interesses convergentes com os demais membros do agrupamento, atuando
ativamente no fortalecimento da cooperação do Sul Global e na reforma da
governança global, temas prioritários para a atual presidência brasileira.”,
destacou o governo brasileiro em comunicado oficial, saudando a decisão do
governo nigeriano.
¨ Acordo entre Rússia
e Irã mostra que 'uma nova arquitetura global está sendo criada'
O tratado de
Parceria Estratégica Abrangente entre a Rússia e o Irã anunciado na sexta -
feira (17) é um exemplo de progresso em direção à uma globalidade multipolar
que equilibra as relações de poder no Oriente Médio, observam especialistas ouvidos
pela Sputnik.
"Essa
reaproximação entre os líderes russo e iraniano pode fornecer um contrapeso às
maneiras pelas quais a unipolaridade continua tentando se restabelecer",
disse Imelda Ibáñez, especialista em política externa e história diplomática da
Rússia na Universidade Estatal de São Petersburgo.
O acordo, anunciado
após uma reunião em Moscou entre o presidente russo, Vladimir Putin, e o
presidente iraniano, Masud Pezeshkian, estabelece metas e referências
ambiciosas para aprofundar a cooperação bilateral de longo prazo em política,
segurança,
comércio, investimento e assuntos humanitários.
O tratado foi
firmado três dias antes de Donald Trump assumir a presidência dos Estados
Unidos e em um momento em que um acordo de cessar-fogo foi alcançado na Faixa
de Gaza.
<><> Elemento
dissuasivo
Ibáñez acredita que
ainda é cedo para avaliar a política externa do próximo presidente dos EUA em
relação ao "desequilíbrio" do Oriente Médio.
De qualquer forma,
ela ressalta que o novo acordo entre Moscou e Teerã visa justamente equilibrar
a ambição de influência
americana caso
Washington decida fazer algo contra o Irã.
Eduardo Rosales,
especialista em relações internacionais da Universidade Nacional Autônoma do
México (UNAM), observa que o acordo faz parte de um conflito geopolítico entre
Estados Unidos, China e Rússia, já que o Irã "faz parte da esfera de
influência da zona periférica da Rússia", enquanto "Israel é apenas
mais um estado dos Estados Unidos".
"Isso faz
parte da luta geopolítica em que a relação entre os Estados Unidos e Israel
está se tornando cada vez mais clara e, consequentemente, a relação entre a
Rússia e o Irã se torna cada vez mais próxima", disse o analista.
Segundo o
especialista, não se deve esquecer que o Irã se juntou recentemente ao BRICS, o
que "obviamente" fortaleceu Teerã em um contexto de tensões com
Washington e Tel Aviv.
Ainda conforme
Rosales, o tratado
russo-iraniano envia
uma mensagem aos Estados Unidos justamente para desencorajar e dissuadir
Washington de tentar qualquer incursão armada contra o Irã.
"A mensagem é:
'Vamos respeitar uns aos outros, eu vou marcar meu território aqui, minha
influência, vou marcar meus aliados, assim como vocês marcarão os seus.' É uma
mensagem para pessoas como Marco Rubio [indicado por Trump para ser secretário
de Estado dos EUA], assim como o próximo secretário de Defesa dos Estados
Unidos", disse.
Para o professor
César Soto Morales, pesquisador de relações internacionais da UNAM, a presença
de Moscou na região do Oriente Médio sai fortalecida pelo acordo e é gerado um
contrapeso que dará maior estabilidade para uma área caracterizada por
conflitos de longa data.
<><> Acordo
traz equilíbrio para questão nuclear
Segundo
especialistas ouvidos pela Sputnik, a cooperação nuclear entre as duas nações
também proporciona um melhor equilíbrio entre as potências mundiais.
"É preciso
levar em conta que Israel tem entre 200 e 400 armas nucleares e não permitiu e
não permitirá que a Agência Internacional de Energia Atômica verifique suas
instalações nucleares, que aparentemente são clandestinas", afirmou
Rosales.
"Isso cria um
profundo desequilíbrio na região, e é por isso que a Rússia apoia o Irã — que
também está sujeito a sanções e bloqueios do Ocidente — para que ele possa
continuar com seu projeto nuclear", acrescentou.
Para Soto, o acordo
é uma medida para impedir que potências
ocidentais continuem a assediar o Irã.
"Toda vez que
a Rússia assina um tratado com um país do Oriente Médio, neste caso o Irã, ela
impede a interferência de potências ocidentais na região", explica.
"A cooperação
internacional e o multilateralismo estão sendo fortalecidos, e o unipolarismo
dos Estados Unidos está sendo gradualmente minado", acrescentou o
internacionalista.
O acordo prevê a
construção de duas novas unidades da usina nuclear de Bushehr, que, segundo o
presidente Putin, contribuirão "significativamente" para o fortalecimento
da segurança energética do Irã.
Atualmente, o Irã
tem uma usina nuclear em operação, a usina nuclear de Bushehr. Sua primeira
unidade, concluída com assistência russa, foi conectada ao sistema nacional de
energia em setembro de 2011. A construção do segundo reator começou no outono
de 2019, e um contrato também foi assinado para a construção de um terceiro.
David García
Contreras, internacionalista da UNAM, diz que embora o objetivo do programa
nuclear iraniano seja
a geração de energia elétrica, há também um elemento de dissuasão.
<><> Uma
nova arquitetura global
Os especialistas
enfatizaram que a parceria estratégica entre Moscou e Teerã representa um
passo à frente no processo em direção à uma globalidade multipolar e um
golpe na hegemonia dos Estados Unidos.
"Essa
política, não só da Rússia, mas também dos seus aliados, dos BRICS e da China,
vem transformando gradualmente a ordem internacional que surgiu após a Segunda
Guerra Mundial; está praticamente sendo criada uma nova arquitetura global,
algo novo, mas as mudanças não são vistas tão rapidamente", afirmou Soto.
Segundo ele, o
acordo com o Irã faz parte do objetivo da política externa da Rússia de
continuar como um dos centros influentes do mundo nessa criação de uma ordem
mundial mais justa, onde não haja uma potência hegemônica que dita o que deve
ser feito no mundo.
"O acordo é um
passo em direção ao objetivo do multilateralismo em oposição ao modelo
unipolar, que era liderado pelos Estados Unidos", explica Soto.
García Contreras
acrescenta, ainda, que "esse acordo mostra o progresso no fortalecimento
dos laços entre dois atores importantes fora do Ocidente: uma superpotência, a
Rússia, e uma potência média, o Irã. A mensagem é clara: o crescimento do
multilateralismo".
Fonte: Sputnik
Brasil/Fórum
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