segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Por que africanos estão revendo relações com europeus

Especialistas analisam que a chegada do decolonialismo francês ao Senegal é emblemática, sendo este o mais novo país africano a rever relações com sua antiga metrópole.

O primeiro-ministro do Senegal, Ousmane Sonko, afirmou que fechará todas as bases militares estrangeiras no país em um futuro próximo — declaração que tem como alvo a França, antigo colonizador do país.

O anúncio está alinhado com a declaração dada em novembro pelo presidente senegalês, Bassirou Diomaye Faye, de que a presença de bases militares francesas no território do país é incompatível com a soberania nacional. Faye, no entanto, sublinhou que a retirada das tropas estrangeiras não constitui um rompimento com a França.

Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, analistas explicam qual o impacto geopolítico da retirada das tropas francesas do Senegal e como a decisão do país se relaciona com o movimento contra o neocolonialismo europeu que eclodiu no continente africano nos últimos anos.

Rubilson Velho Delcano, professor de antropologia na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), afirma que, embora a soberania nacional seja o discurso oficial, o desejo de retirada das tropas reflete pressões internas e externas. Isso porque, internamente, na África há um crescente sentimento anticolonial, com as populações exigindo a libertação de estruturas de dependência impostas pela França tanto no âmbito militar quanto no âmbito econômico.

"Um exemplo contundente dessa dependência econômica é o controle que a França continua a exercer sobre o franco CFA, que é a moeda comum utilizada por oito países da África Ocidental. […] O franco CFA permanece um símbolo de submissão econômica, pois é garantido pelo Tesouro francês e vinculado ao euro, o que acaba limitando a soberania monetária dos países africanos. Essa estrutura não só perpetua a dependência econômica, como também restringe a capacidade dos governos locais de adotar políticas fiscais e monetárias autônomas, que beneficiariam certamente suas populações", explica.

Nesse contexto, ele afirma que a verdadeira soberania "só será alcançada quando houver ruptura estrutural com essas práticas econômicas e institucionais herdadas do colonialismo".

Delcano aponta que a atitude do governo senegalês é pragmática. Se por um lado busca atender às demandas populares por maior autonomia e autodeterminação, por outro mantém uma relação funcional com a França, reconhecendo que a ruptura abrupta poderia gerar consequências econômicas e diplomáticas significativas.

"Então eu compreendo que é uma tentativa de equilibrar um discurso soberanista com a realidade de interdependência econômica e histórica. Então é um esforço necessário, mas essa mudança, essa transformação estrutural, requer dar passos seguros e não confundir a causa — no caso, o rompimento com essa relação de colonialidade, com um rompimento definitivo com a França."

No início de janeiro, um ataque do grupo terrorista Boko Haram ao Palácio Presidencial do Chade deixou 40 soldados mortos. O episódio foi veiculado na mídia francesa como uma consequência da retirada das tropas francesas do país.

Entretanto, Delcano argumenta que a presença das tropas francesas no Senegal também não teve sucesso em erradicar a célula terrorista, o que levanta dúvidas sobre a eficácia da estratégia militar francesa.

"A solução para o terrorismo no Sahel e na África Ocidental especificamente vai além de intervenções militares estrangeiras, exigindo abordagens integradas que combinem, do meu ponto de vista, desenvolvimento econômico, inclusão social e fortalecimento das instituições locais", afirma.

Ele afirma ainda que, além da França, os EUA também têm presença militar direta e indireta na África, principalmente por meio do projeto Comando dos Estados Unidos para a África (AFRICOM), criado sob o argumento de responder a crises de segurança na região.

"Essa presença é menos falada e geralmente justificada em um contexto de operações antiterrorismo, mas que na prática não tem um significado real, ou seja, no sentido de combater efetivamente esses grupos como o Boko Haram e tantos outros que contribuem para desestabilizar as sociedades africanas ou os países, muitos deles africanos. Países como a China e a Rússia têm aumentado sua influência, mas mais na esfera econômica e estratégica do que militar, diretamente falando."

Segundo o especialista, também há pressão da sociedade senegalesa para a retirada das tropas estadunidenses, uma vez que "o Senegal não está em guerra e não tem necessidade de ter bases militares de países estrangeiros", já que o país não tem base militar em país nenhum.

Ele afirma que o que os africanos estão dizendo com a onda descolonizadora é que, historicamente, os antigos exploradores e colonizadores sempre se aproveitaram de suas riquezas e os dividiram "para que possam reinar e sugar mais a riqueza nacional".

"Então eles nunca tiveram interesse, no fundo, de nos ajudar. Não é agora que vão. É importante que nós, a partir de um pan-africanismo unitário, da unidade nacional, comecemos a nos mobilizar e estabelecer parcerias rentáveis, parcerias respeitosas com países como a China, que querem trabalhar conosco e que querem nos ajudar efetivamente. Porque esses [colonizadores] já lidam conosco, nós já lidamos com eles há muitos anos e nunca nos ajudaram, sobretudo a França."

José Ricardo Araujo, pesquisador de África Subsaariana da Escola de Guerra Naval (EGN), enfatiza que a bagagem histórica da França na África, pautada pelo tom colonial, faz com que os Estados africanos olhem com maus olhos o engajamento militar do país na região.

"Tem coisas que não dá para esquecer. Durante muitos anos nós tivemos contingentes franceses nessa região fazendo atrocidades e coisas que hoje em dia já foram assumidas pelo próprio governo francês, que foram coisas que [realmente] aconteceram. Justamente por conta disso acaba que o engajamento militar e, principalmente, a presença de um contingente militar permanente é algo que os Estados africanos não querem mais", explica.

Segundo ele, a melhor abordagem da França para ter contornado essa desconfiança e evitado essa perda de influência na região seria investir muito mais em treinamento de militares locais.

"Pensar em um modelo de cooperação mais flexível, conseguir justamente treinar e capacitar o exército local com as habilidades que eles acham que são relevantes para o combate a grupos extremistas ou qualquer outro desafio."

Questionado se há risco de acontecer no Senegal o que ocorreu em Angola — quando o país expulsou os portugueses após a independência do país, mas a economia acabou afetada porque não havia engenheiros angolanos, o que fez com que muitos prédios e elevadores do país se transformassem em depósitos de lixo —, Araújo afirma que, no contexto atual, não há esse risco, uma vez que países como Senegal, Costa do Marfim e Chade, que atualmente vivem a onda antineocolonialista, têm isso em mente.

"Tanto é que todos os três, quando pediram a saída da base militar permanente, deixaram bem claro que isso não era um rompimento de laços com a França. Era apenas um pedido para que a base militar deixasse o país. Porque o grande problema deles é o fato de existir esse simbolismo de uma base militar estrangeira permanente no seu território, principalmente de um país que é sua ex-metrópole", afirma.

Araújo destaca que a saída da França do continente africano cria um vácuo de poder na região a ser disputado por outras potências e, também, por países emergentes. Segundo ele, a saída da França pode marcar um enfraquecimento não só do país europeu na região, mas de todo o Ocidente.

"Ao mesmo tempo, é importante a gente perceber que essa saída vai abrir um vácuo de poder e de influência que vai poder ser preenchido também por outras nações emergentes, como é o caso, por exemplo, do próprio Brasil, da Turquia, da China, dos Emirados Árabes Unidos, da Arábia Saudita, que são países que vêm aumentando investimentos nessa região e que vêm fechando, por exemplo, memorando de entendimento nessa mesma época que a França está saindo."

Ele aponta ainda que o caso do Senegal é emblemático por se tratar de um dos países mais estáveis da África Ocidental, que historicamente tem uma postura diplomática de mediação de conflitos.

"A gente não está falando de um país que o sistema internacional diz que ocorreu um golpe […] e que, por causa disso, ele está pedindo a saída da França, está falando da democracia mais estável da África Ocidental, pedindo isso, o que é muito emblemático."

¨      Potência africana é oficializada como nova integrante do BRICS

O governo brasileiro anunciou nesta sexta-feira (17) a adesão formal da Nigéria como país parceiro do BRICS, ampliando o bloco que inclui Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Com isso, a Nigéria se torna o nono integrante na categoria de países parceiros, criada durante a XVI Cúpula do BRICS, realizada em Kazan, em outubro de 2024.

A Nigéria, que possui a sexta maior população do mundo e é a maior do continente africano, também figura entre as principais economias da África.

Segundo o governo brasileiro, o país compartilha interesses estratégicos com os demais membros do grupo, destacando-se no fortalecimento da cooperação do Sul Global e na promoção de reformas na governança global. Esses temas são considerados prioritários pela presidência pro tempore brasileira do BRICS em 2025.

Além dos cinco membros fundadores, os países parceiros do BRICS incluem Belarus, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Malásia, Tailândia, Uganda e Uzbequistão. A inclusão da Nigéria reflete o compromisso do agrupamento em ampliar sua representatividade geopolítica e econômica, especialmente no contexto das nações emergentes.

“A Nigéria possui interesses convergentes com os demais membros do agrupamento, atuando ativamente no fortalecimento da cooperação do Sul Global e na reforma da governança global, temas prioritários para a atual presidência brasileira.”, destacou o governo brasileiro em comunicado oficial, saudando a decisão do governo nigeriano.

¨      Acordo entre Rússia e Irã mostra que 'uma nova arquitetura global está sendo criada'

O tratado de Parceria Estratégica Abrangente entre a Rússia e o Irã anunciado na sexta - feira (17) é um exemplo de progresso em direção à uma globalidade multipolar que equilibra as relações de poder no Oriente Médio, observam especialistas ouvidos pela Sputnik.

"Essa reaproximação entre os líderes russo e iraniano pode fornecer um contrapeso às maneiras pelas quais a unipolaridade continua tentando se restabelecer", disse Imelda Ibáñez, especialista em política externa e história diplomática da Rússia na Universidade Estatal de São Petersburgo.

O acordo, anunciado após uma reunião em Moscou entre o presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente iraniano, Masud Pezeshkian, estabelece metas e referências ambiciosas para aprofundar a cooperação bilateral de longo prazo em política, segurança, comércio, investimento e assuntos humanitários.

O tratado foi firmado três dias antes de Donald Trump assumir a presidência dos Estados Unidos e em um momento em que um acordo de cessar-fogo foi alcançado na Faixa de Gaza.

<><> Elemento dissuasivo

Ibáñez acredita que ainda é cedo para avaliar a política externa do próximo presidente dos EUA em relação ao "desequilíbrio" do Oriente Médio.

De qualquer forma, ela ressalta que o novo acordo entre Moscou e Teerã visa justamente equilibrar a ambição de influência americana caso Washington decida fazer algo contra o Irã.

Eduardo Rosales, especialista em relações internacionais da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), observa que o acordo faz parte de um conflito geopolítico entre Estados Unidos, China e Rússia, já que o Irã "faz parte da esfera de influência da zona periférica da Rússia", enquanto "Israel é apenas mais um estado dos Estados Unidos".

"Isso faz parte da luta geopolítica em que a relação entre os Estados Unidos e Israel está se tornando cada vez mais clara e, consequentemente, a relação entre a Rússia e o Irã se torna cada vez mais próxima", disse o analista.

Segundo o especialista, não se deve esquecer que o Irã se juntou recentemente ao BRICS, o que "obviamente" fortaleceu Teerã em um contexto de tensões com Washington e Tel Aviv.

Ainda conforme Rosales, o tratado russo-iraniano envia uma mensagem aos Estados Unidos justamente para desencorajar e dissuadir Washington de tentar qualquer incursão armada contra o Irã.

"A mensagem é: 'Vamos respeitar uns aos outros, eu vou marcar meu território aqui, minha influência, vou marcar meus aliados, assim como vocês marcarão os seus.' É uma mensagem para pessoas como Marco Rubio [indicado por Trump para ser secretário de Estado dos EUA], assim como o próximo secretário de Defesa dos Estados Unidos", disse.

Para o professor César Soto Morales, pesquisador de relações internacionais da UNAM, a presença de Moscou na região do Oriente Médio sai fortalecida pelo acordo e é gerado um contrapeso que dará maior estabilidade para uma área caracterizada por conflitos de longa data.

<><> Acordo traz equilíbrio para questão nuclear

Segundo especialistas ouvidos pela Sputnik, a cooperação nuclear entre as duas nações também proporciona um melhor equilíbrio entre as potências mundiais.

"É preciso levar em conta que Israel tem entre 200 e 400 armas nucleares e não permitiu e não permitirá que a Agência Internacional de Energia Atômica verifique suas instalações nucleares, que aparentemente são clandestinas", afirmou Rosales.

"Isso cria um profundo desequilíbrio na região, e é por isso que a Rússia apoia o Irã — que também está sujeito a sanções e bloqueios do Ocidente — para que ele possa continuar com seu projeto nuclear", acrescentou.

Para Soto, o acordo é uma medida para impedir que potências ocidentais continuem a assediar o Irã.

"Toda vez que a Rússia assina um tratado com um país do Oriente Médio, neste caso o Irã, ela impede a interferência de potências ocidentais na região", explica.

"A cooperação internacional e o multilateralismo estão sendo fortalecidos, e o unipolarismo dos Estados Unidos está sendo gradualmente minado", acrescentou o internacionalista.

O acordo prevê a construção de duas novas unidades da usina nuclear de Bushehr, que, segundo o presidente Putin, contribuirão "significativamente" para o fortalecimento da segurança energética do Irã.

Atualmente, o Irã tem uma usina nuclear em operação, a usina nuclear de Bushehr. Sua primeira unidade, concluída com assistência russa, foi conectada ao sistema nacional de energia em setembro de 2011. A construção do segundo reator começou no outono de 2019, e um contrato também foi assinado para a construção de um terceiro.

David García Contreras, internacionalista da UNAM, diz que embora o objetivo do programa nuclear iraniano seja a geração de energia elétrica, há também um elemento de dissuasão.

<><> Uma nova arquitetura global

Os especialistas enfatizaram que a parceria estratégica entre Moscou e Teerã representa um passo à frente no processo em direção à uma globalidade multipolar e um golpe na hegemonia dos Estados Unidos.

"Essa política, não só da Rússia, mas também dos seus aliados, dos BRICS e da China, vem transformando gradualmente a ordem internacional que surgiu após a Segunda Guerra Mundial; está praticamente sendo criada uma nova arquitetura global, algo novo, mas as mudanças não são vistas tão rapidamente", afirmou Soto.

Segundo ele, o acordo com o Irã faz parte do objetivo da política externa da Rússia de continuar como um dos centros influentes do mundo nessa criação de uma ordem mundial mais justa, onde não haja uma potência hegemônica que dita o que deve ser feito no mundo.

"O acordo é um passo em direção ao objetivo do multilateralismo em oposição ao modelo unipolar, que era liderado pelos Estados Unidos", explica Soto.

García Contreras acrescenta, ainda, que "esse acordo mostra o progresso no fortalecimento dos laços entre dois atores importantes fora do Ocidente: uma superpotência, a Rússia, e uma potência média, o Irã. A mensagem é clara: o crescimento do multilateralismo".

 

Fonte: Sputnik Brasil/Fórum

 

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