Dragão do
Mar: o jangadeiro que desafiou o tráfico negreiro
"A liberdade é um
dragão no mar de Aracati", cantou a escola de samba Estação Primeira de
Mangueira no carnaval do Rio de 2019. Nascido em Aracati, no Ceará, Dragão do
Mar foi como ficou conhecido Francisco José do Nascimento (1839-1914),
ou Chico da Matilde, um líder jangadeiro, prático-mor e
abolicionista.
O apelido lhe foi conferido
por outro dos grandes nomes do abolicionismo brasileiro, o farmacêutico e
jornalista José do Patrocínio (1853-1905).
Em 1882, ambos se encontraram quando Patrocínio, engajado no movimento
abolicionista, visitou a província nordestina.
A esta
altura, Chico da Matilde já era uma figura conhecida no
meio. Desde janeiro do ano anterior, ele e seus colegas jangadeiros empreendiam
uma greve contra o tráfico negreiro interprovincial. A tática foi baseada no
controle que eles tinham sobre o porto local: passaram a recusar
sistematicamente o transporte de escravizados para os navios que os levariam
para serem revendidos no Rio de Janeiro e em outras localidades.
"No porto do Ceará não
embarcam mais escravos", teria dito ele, de acordo com algumas
fontes.
O engajamento do Dragão do
Mar na luta abolicionista não foi por acreditar que um país moderno se fazia
sem a força da escravidão. Foi porque ele, filho de um pescador e
sempre trabalhador livre, havia construído laços de amizade com escravizados e
ex-escravizados libertos — portanto, nutria empatia pela causa. Ele também não
era negro — tinha a tez que hoje é considerada "parda".
"O desmonte do sistema
escravista, lento e gradual, quando colocado em curso, se mostrou
irreversível", comenta a historiadora Lucimar Felisberto dos Santos,
membro da Rede de Historiadorxs Negrxs e autora de Entre a escravidão e a liberdade: africanos e crioulos
nos tempos da abolição, entre outros.
"Em sua época, o
jangadeiro Francisco José do Nascimento fazia parte daqueles grupos que
atuaram no desmonte fundamentalmente por compartilharem com trabalhadores
escravizados e libertos espaços de trabalho e lazer", acrescenta ela.
"Com essa lógica, faz todo o sentido que ele tenha liderado a ação que
interrompeu o transporte interprovincial de escravizados, contribuindo para que
muitos escravos cearenses tivesses condições de adquirir suas alforrias."
·
Trajetória e abolição
O Dragão do Mar teve uma
infância pobre. "Ele era filho e neto de pescadores e jangadeiros",
contextualiza a historiadora Keila Grinberg, professora na Universidade de
Pittsburgh, nos Estados Unidos. Seu pai morreu quando ele tinha 8 anos, o que o
obrigou a começar a trabalhar cedo. O primeiro emprego dele foi como menino de
recados em navios. "Passou parte da juventude em uma plantação
de borracha na Amazônia e, quando retornou ao Ceará, foi trabalhar em navios
locais", completa a historiadora.
Foi quando começou a trabalhar
em um veleiro, primeiro como embarcadiço, depois como comandante. Depois,
conseguiu emprego na Capitania dos Portos do Ceará. Foi chefe dos catraieiros e
acabou nomeado prático-mor. "Tinha um posto alto dentro [do porto], como
uma autoridade portuária. Era o responsável por guiar os navios para as
docas", explica Grinberg.
Em paralelo, alugava
jangadas para o vaivém de produtos e pessoas.
Foi com esse poder de
autoridade e de liderança junto aos outros trabalhadores do porto que ele
conseguiu fazer com que todos cruzassem os braços, em 1881, para o transporte
de escravizados.
Em março de 1884, graças a
esse movimento mas também a outros fatores de uma conjuntura econômica
peculiar, o Ceará foi a primeira província do território a abolir a escravidão.
"As condições sociais favoreceram, uma vez que os senhores, atravessando
uma grave crise econômica no estado, não queriam mais gastar recursos mantendo
escravos em seus territórios. Ou seja: o fato de o Ceará te se tornado a
primeira província brasileira a abolir a escravidão teve a ver com os
interesses econômicos que foram ao encontro dos desejos dos
abolicionistas", afirma a historiadora Santos.
Em artigo publicado no
Simpósio Nacional de História em 2009, a historiadora Patricia Pereira Xavier
recorre à obra do jornalista e escritor Edmar Morel (1912-1988) para analisar a
imagem do Dragão do Mar naquele contexto. Morel publicou em 1949 o livro Dragão do Mar: o jangadeiro da abolição no
Ceará.
Segundo ele, o personagem
acabou se tornando uma espécie de
"garoto-propaganda" da abolição, contribuindo para angariar
simpatizantes na população local. Xavier escreve que "analisando as fontes
utilizadas pelo autor [Morel], bem como os episódios reforçados pela sua
narrativa", há uma construção "narrativa cronológica e coerente que
corresponde ao que se espea de um verdadeiro herói".
·
Apagamento histórico
A história do Dragão do Mar
não teve, ao longo do século 20, o destaque merecido. "É um recado do
apagamento histórico que hoje a gente está conseguindo reverter", analisa
o jornalista Guilherme Soares Dias, pesquisador e fundador do Guia Negro.
Nos últimos anos sua memória
vem sendo resgatada. Em 1999 foi inaugurado em Fortaleza um complexo cultural
de 30 mil metros quadrados chamado Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Em
2013, a Petrobras lançou um
navio petroleiro batizado de Dragão do Mar. E em julho de 2017 seu nome foi
inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, em Brasília.
Para Grinberg, se hoje ele
se tornou reconhecido, "é claro que a história dele foi romantizada, assim
como outras ao longo desses anos". "Mas o que eu acho importante é
[…] o ponto de que ele é um herói nacional, um herói que fez uma greve contra a
escravidão", pontua. "E ele contribuiu fundamentalmente para o
processo de abolição no Brasil. Esta é uma mensagem fundamental."
A historiadora ressalta um
outro aspecto importante da trajetória do Dragão do Mar: o fato de
que ele foi uma liderança popular, de origem pobre, dentro dos grupos que
pediam a libertação dos escravizados. "É uma das pessoas que
demonstram que o movimento abolicionista foi popular e veio
principalmente das classes populares", ressalta ela. "Ainda
existe no Brasil uma ideia de que o movimento abolicionista foi um
movimento das elites, ou da classe média do Rio, composta por
jornalistas, engenheiros, entre outros. E a participação dele mostra que foi um
movimento também da classe trabalhadora, um movimento social
importantíssimo. O mais importante movimento social brasileiro."
"O principal legado
dele é [a mensagem de] que precisamos lutar pela resistência. Não podemos
aceitar o que é imposto e podemos lutar contra o que consideramos errado",
comenta Dias.
Fonte: DW Brasil
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