Roberto
Amaral: O novo ano e o horizonte desafiador
Os
sonhos e as esperanças se desmancham no ar quando estamos apenas vencendo os
primeiros 30 dias de 2025, promessa de projeção do ano que passou.
Se
parco é o inventário do que temos por comemorar, extensa é a pauta do que
devemos temer, habitantes de nação dependente, de uma dependência geopolítica e
ideológica inserida na periferia do capitalismo.
Somos
uma província no Sul Global para onde foram designados os subdesenvolvidos de
ontem, após a repaginação do mundo determinada pelo fim da Guerra Fria,
proclamando a vitória da globalização e dos EUA.
Não há
como, neste novo mundo que já nasce velho, ignorar nossa brasileiríssima
tragédia histórico-geográfica, mas diante dela nos incumbe, como povo,
sociedade e Estado, saber enfrentar os desafios que já nos chegam correndo com
botas de sete léguas. Ou deciframos a esfinge ou seremos devorados.
Para
bem compreender os tempos presentes, construção de tempos passados (compreender
para nele intervir), o primeiro passo é a análise do cenário internacional, que
nos lembra os piores momentos do século passado, o qual, entre outras
catástrofes humanitárias, nos legou duas guerras mundiais.
Mais
uma lição da História: é mediante guerras de toda ordem que se desenvolvem e se
resolvem as disputas de hegemonia, e é este o conflito de nossos dias,
anunciante de embates ainda mais graves no amanhã que podemos divisar sem o
recurso das lentes do tempo.
Se “lá
fora” são maus os presságios, na província continental os tempos de hoje cobram
engenho e arte. E, sem dúvida, alguma audácia e coragem, predicado
dos vencedores.
O
mundo, sob a égide do capitalismo, parece haver optado pela regressão, e nela
investe com dedicação suicida.
Faz
décadas, a contar primacialmente do fim da Guerra Fria, tornada desnecessária
com o suicídio da URSS e o fracasso das experiências de capitalismo de Estado
do Leste europeu, a classe trabalhadora, onde a ideologia neoliberal se fez
política de Estado – ou seja, praticamente em todo o mundo – vem sofrendo
seguidas derrotas nos planos econômico, social, político e cultural, acumulando
recuos políticos e revezes estratégicos que não podem ser reduzidas, tão-só, às
consequências anunciadas pelas novas relações de produção, mais e mais
condicionadas pela preeminência do capital sobre o trabalho.
Fruto
das contradições inerentes ao desenvolvimento do capitalismo financeiro
monopolista, soma-se (e aí não se trata de crise) o acirramento das chamadas
guerras comerciais, o aumento do número de confrontos militares,
o expansionismo terrorista do sionismo, a naturalização do genocídio,
a falência dos organismos internacionais, a começar pelo fracasso da ONU.
Tudo
em meio a uma crise ambiental cumulativa que parece sem solução. Desta tragédia
já somos testemunha e vítima, e sabemos aonde pode levar o
negacionismo.
Este é
o nosso mundo de complexa fragilidade física e política que mais e mais se
assemelha à casca de noz a que se referia Stephen Hawking. Desta nave somos
passageiros sem acesso à cabine de comando. Mas tudo o que nela ocorre nos
diz respeito diretamente, pois intervém diretamente em nosso destino, como
planeta e humanidade.
Os
cordéis da globalização – fenômeno econômico, político, militar e ideológico –
estão sob a égide do maior concerto de poder jamais conhecido desde a longa era
romana, que a paranoia do 3º Reich intentou refazer, ao preço conhecido.
Os EUA
caminham para o apogeu de seu declínio, em plena crise política, social e
ética, que se vem acentuando nas últimas décadas, ao tempo em que acirra a
disputa pela recuperação da hegemonia global, o que pode nos levar à terceira
guerra mundial.
Dela,
se não sabemos qual será o primeiro passo, e não sabemos mesmo se esse primeiro
passo já não terá sido dado, temos certo como será o último capítulo, que
talvez ninguém possa registrar.
É sob
tais condicionantes que forcejamos por construir nossa história, indecisos
ainda sobre o que somos e o que queremos ser, carentes, ainda, de um projeto de
país.
Se
razões objetivas nos dizem que conseguimos em 2022, mesmo a duras penas, deter
as maiores ameaças conhecidas pelo processo político-social desde 1964 – a
possibilidade de reeleição do capitão meliante –, não é racional supor que
esmagamos a peçonha.
Aos
candidatos a doutor Pangloss a realidade traz à tona a composição do Congresso
eleito com Lula, as maquinações de dezembro de 2022, a intentona de 8 de
janeiro de 2023 e as eleições de 2024, bem como as resistências militares, as
pressões e chantagens do grande capital, e um cenário internacional
desconfortável sob todos os aspectos…. enfim, o concerto de adversidades
desafiando um governo impedido de afirmar-se.
A consagração de
Donald Trump, um dado a mais no entrecho, é inquestionável testemunho, agora
reiterado, da identificação da sociedade estadunidense com o discurso e o
programa neofascista, desenvolvido em plano internacional.
Criminoso
condenado pelo Tribunal de Nova York, denunciado por fraude e conspiração,
mitômano contumaz, o republicano retornará no próximo dia 20 à presidência dos
EUA, um país e uma sociedade visceralmente beligerantes, e assim assumirá o
comando da maior força militar jamais conhecida, prometendo a exasperação da
velha política do Big Stick, que foi e é a essência do imperialismo
norte-americano.
Sua
eleição, na voragem de votação consagradora, não deve ser vista como raio
em céu azul. Também não se trata, o presidente reeleito, de um estranho no
ninho do establishment.
Trump
é personagem fortemente identificado com o que se costuma chamar de americano
médio. Os reais valores americanos estão em seu discurso, que por isso mesmo
foi referendado.
De
igual modo e respeitadas as distinções, a assunção de Jair Bolsonaro como líder
nacional, e presidente quase reeleito, não deve ser vista como “um ponto fora
da curva”, pois reflete a conquista das grandes massas brasileiras pelo
discurso da extrema-direita, em níveis jamais suspeitados entre nós, seja
durante o Estado Novo, seja durante o apogeu internacional do nazi-fascismo e do
integralismo, seja durante o mandarinato dos generais que em 1º de abril de
1964 assumiram diretamente o poder que sempre controlaram.
O
esboço de panorama nos lembra os idos do século passado, com a avalanche
neofascista se espalhando pela Europa e o resto do mundo.
Se as
similitudes não são boas, desanimadoras são as dessemelhanças, pois o mundo que
seria engolfado pelo nazi-fascismo vivia naquela altura os desdobramentos da
Revolução de 1917, a politização das massas, a emergência do sindicalismo e das
forças proletárias, a progressão das ideias e dos movimentos sociais e
políticos, o crescimento dos partidos comunistas e de esquerda de um modo geral
– um mundo de avanços que se revitalizava e crescia na resistência ao
nazi-fascismo.
O fim
da guerra, com a derrota do Eixo, anunciava a vitória da democracia e a
retomada dos sonhos, alimentando as mais audaciosas utopias.
A
confrontação daqueles tempos com o mundo de hoje revela o recesso da
resistência revolucionária, a vitória ideológica e política do neoliberalismo,
o trânsito da social-democracia para a direita, do trabalhismo para o
conservadorismo.
Na
Inglaterra, o trabalhismo, outrora liderado pela esquerda conduzida por Clement
Attlee e Michael Foot, salta para a direita ou centro-direita de Keir Starmer,
e na Alemanha o rotundo fracasso de Olaf Scholz e dos socialdemocratas do SPD
atapeta a estrada por onde avança o nazismo do AFD (Alemanha para os
Alemães), o que, com a ascensão da ultradireita de Giorgia Meloni na
Itália, conforma a decadência europeia e a renúncia histórica à expectativa de
um projeto alternativo ao capitalismo desenganado.
O
fascismo parece avançar sem encontrar resistência à altura.
Assim
chega ao fim o ciclo das democracias liberais e a promessa de avanços
políticos. Encerra-se também a experiência socialdemocrata, tornada
desnecessária desde o colapso soviético; sobrevive na Escandinávia como enclave
de bem-estar social no capitalismo globalizado.
Quando
nos é dado celebrar os 40 anos do fim da ditadura instaurada em 1º de abril 1964
– sem nos havermos libertado da preeminência da caserna sobre a vida civil –,
registramos dois anos da intentona de 8 de janeiro 2023, um desdobramento
inevitável de 2018, por seu turno uma das crias do golpe parlamentar de 2016.
A
“Nova República”, anunciada com a eleição de Tancredo Neves (frustrada na posse
de José Sarney), terminara melancolicamente com a eleição de Jair Bolsonaro.
Momentaneamente contida pelas eleições de 2022, a peçonha chega a 2025 ainda
muito forte, política e eleitoralmente.
Em
todos os planos da vida institucional se estampa a persistente hegemonia da
aliança direita-extrema direita.
O
Brasil, na sua tragédia política que parece não ter fim, segue a trilha traçada
por um mundo historicamente regredido, entusiasmado pela regressão, a
modernidade do atraso, a vitória do passado que parecia morto, expulsando de
nossos tempos as expectativas de um futuro melhor.
Este é
o mundo do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, e essas são suas
circunstâncias. Um processo político preso à linearidade, um processo social
sem forças para alterar a ordem, que evita saltos, caudatário do passado que
sobrevive no presente, impedindo o parto do futuro, eterna promessa que não se
cumpre.
<><> O Estadão e o golpe
O Estado de S.
Paulo festeja seus 150 anos de defesa da ordem, da tradição, do agrarismo,
do anti-industrialismo, do udenismo golpista e da dependência ao grande capital
internacional.
Referindo-se à
ditadura de 1964, diz, em breve nota: “Em 1964, o Estadão apoiou,
como grande parte da imprensa, a deposição de João Goulart (1919-1976). Temia-se
o caos e a aproximação
com o socialismo nos moldes cubanos”. Demasiada modéstia.
O jornal dos
Mesquitas não só apoiou, como participou ativamente, pelas suas páginas e por
outros meios, da conspiração golpista, superando nessa dedicação seus
concorrentes (O Globo de Roberto Marinho e a “cadeia associada” de
Assis Chateaubriand).
Cordeiro de Farias,
um dos articuladores do golpe e da ditadura, revela o sistema de financiamento
da insurreição antidemocrática e antirrepublicana: “As fontes principais de
arrecadação eram duas: o governador Ademar de Barros e o jornal O Estado
de S. Paulo, através de Júlio Mesquita” (Camargo-Góes. Diálogo
com Cordeiro de Farias, p. 553).
Fonte: Viomundo
Nenhum comentário:
Postar um comentário