Os refugiados
norte-americanos do TikTok e o novo Livrinho Vermelho da China
A hashtag
#TikTokRefugees explodiu impulsionada por usuários norte-americanos que, diante
da ameaça de banimento do aplicativo TikTok em seu país, migraram para uma rede
chinesa com um nome peculiar, Xiaohongshu (小红书), literalmente Livrinho Vermelho – ou
Rednote na marca em inglês. Embora isso seja bom demais para ser verdade, o app
não alude ao famoso livro Citações
do Presidente Mao:
ele é um misto de Instagram com Pinterest, só que chinês.
Livrinho Vermelho é
como o Citações (o segundo livro mais impresso da história) é conhecido em boa
parte do mundo, mas não pelos chineses. O efeito dessa ironia é, entretanto,
maravilhoso pelo contexto em que ele se insere. Ele é um app genuinamente
chinês – que, no entanto, não exige um chip de celular chinês –, se tornando
o mais
baixado nos
Estados Unidos nos últimos dias, que é mais “grave” do que o TikTok.
Com cerca de 170
milhões de usuários nos Estados Unidos, o TikTok era a rede social que mais
crescia no país, desafiando o poder de gigantes como a Meta de Mark Zuckerberg,
o Google ou do X/Twitter de Elon Musk. A febre do TikTok foi demais, seja para
essas corporações ou para o governo
norte-americano e
seu pesadelo recorrente de ser ultrapassado pela China, o que se tornou um
consenso na cúpula dos dois grandes partidos.
O possível
banimento do TikTok é crescentemente
impopular e,
inclusive, errático, uma vez que nele se discute a versão ocidental do
aplicativo – o chinês se chama Douyin e serve
apenas para o mercado do país asiático. A chegada de milhões de
norte-americanos ao Xiaohongshu, no entanto, fez eles descobrirem o que é a
vida comum na China, como
aponta Iara Vidal,
marcada por um aumento da prosperidade e do consumo e uma dignidade superior às
cidades norte-americanas.
A questão é que,
embora chinês, o Xiaohongshu é aberto, porque sua versão chinesa é também
global, assim como ocorre com os aplicativos norte-americanos. E, venhamos e
convenhamos, é uma rede social de trivialidades do quotidiano chinês, o que tem
um efeito terrível para norte-americanos comuns, certamente sendo mais
compreensível para eles do que se estivessem lendo o Livrinho Vermelho
original, e suas elaborações teóricas: não, a vida na China não é um inferno.
·
Um
grande experimento antropológico de massas
A população
norte-americana não costuma olhar muito para fora. Disso todo mundo sabe. E
muitas vezes tem dificuldade de se comunicar e se entender dentro do seu
próprio país, com diferenças cada vez maiores não só entre regiões, mas também
entre campo e cidade. A métrica do mundo são estruturas norte-americanas, de um
inglês na forma do padrão falado no país como língua franca global como, ainda,
com estruturas da Internet.
A rede mundial de
computadores permitiu à humanidade se comunicar e se encontrar, mas passando
por dentro de estruturas, sejam concretas ou conceituais, que são
norte-americanas. Nesse sentido, o “global” é um padrão de mundo que é
norte-americano, seja diretamente ou por reprodução, fazendo que os
norte-americanos sempre estivessem em casa, seja pela língua, mas pelo
entendimento básico da Internet. Com as redes sociais não foi diferente.
O efeito disso é
que os norte-americanos passaram a olhar mais ainda para si, enquanto o mundo
tinha de olhar para seu país, nem que fosse para encontrar alguma outra parte
do mundo. O normal do império global é o padrão e a métrica norte-americanos,
mas e quando os norte-americanos são confrontados com uma situação oposta, com
eles entrando em massa em uma rede social genuinamente chinesa?
Isso está
acontecendo agora, e o resultado é basicamente colocar em colapso a propaganda
antichinesa, como observa
Arnauld Bertrand –
mas também é acompanhado por usuários
normais do
TikTok, os quais passam a associar o banimento com o fato de o governo estar
conspirando para ocultar como é, realmente, a vida na China, algo de que talvez
os norte-americanos não tivessem muita noção ou, talvez, supusessem
ser muito mais pobre do
que ela é.
Esse enorme
encontro gerou interações como a de norte-americanos ajudando crianças chinesas
com seu dever
de casa de inglês,
mas rompe com o estranhamento e o espantalho do “espião chinês” – assim como se
desdobram numa repetição direta do que um dia se sonhou como relação
povo a povo,
a exemplo dos tempos da diplomacia
popular de
Zhou Enlai, quando os chineses precisavam contornar seu isolamento. Agora, isso
ocorreu ao contrário.
·
Uma
era de redes sociais nacionais?
O leitor atento
pode questionar se os Estados Unidos, com atraso, não estão apenas retribuindo
o banimento da Meta e da maior parte da Internet norte-americana na China. Mas,
na verdade, não custa lembrar que grandes redes sociais norte-americanas foram
expulsas por, simplesmente, desconhecer
a legislação e as autoridades chinesas – como fez Elon Musk com o Brasil
recentemente –, enquanto o banimento do TikTok é só
pelo fato de ele ser chinês.
Curiosamente, os
chineses são os que deveriam ter motivos para tomar cuidado com as redes
sociais norte-americanas. Peter Thiel, padrinho político do vice-presidente
norte-americano J.D. Vance, bilionário e eminência parda do Vale do Silício,
tem ligações
públicas com
a espionagem norte-americana. Thiel foi peça-chave seja na formação
da Meta por Zuckerberg, mas também na compra
do Twitter por
Musk.
Há pouco, o Brasil
viveu seu momento “China” com a rebelião de Musk, o que levou ao bloqueio do
Twitter por decisão do Supremo Tribunal Federal. E, agora, novamente, o país se
vê às turras com com Musk – muito embora, a fraca memória nacional se esqueça do
papel central do uso do WhatsApp por Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, no
caso dos disparos
em massa,
senão parece que Zuckerberg teve uma epifania direitista apenas agora.
Em termos de
banimento, a funesta presidência de Joe Biden conseguiu fazer o que, anos
antes, Donald Trump tentou, sendo bombardeado
como autoritário.
A Lei
Anti-TikTok foi
aprovada tanto na Câmara quanto
no Senado norte-americanos
por ampla margem, apenas com a dissidência da esquerda do Partido Democrata e,
ironicamente, republicanos ligados a tendências de Estado mínimo, alguns deles
trumpistas raiz ou próximos ao Tea Party.
Diante disso, o
TikTok moveu
uma ação que
agora chega à Suprema Corte, de maioria republicana, o que, segundo
prognósticos, não reverterá a decisão de instâncias inferiores que reconheceram
a constitucionalidade da lei. A questão é que Trump pode mudar de ideia e
intervir a favor do aplicativo, talvez para tentar forçar a proprietária do
TikTok a vendê-lo – que é a única alternativa dada para manter seu
funcionamento.
·
Os
riscos explosivos do banimento
Eventos como o
êxodo para o Xiaohongshu e trocas entre milhões de usuários norte-americanos e
chineses numa rede social chinesa, no entanto, mostram que a jogada bruta
do establishment norte-americano, seja no campo conservador ou
liberal, pode dar errado. Na tentativa de apagar algo, ele acaba ganhando mais
visibilidade, o chamado efeito Streisand a que
Bertrand tem feito referência no caso: dar visibilidade massiva para o que se
tenta esconder.
TikTok nunca foi
culturalmente sobre a China nos Estados Unidos, embora tenha sido um respiro
para o público norte-americano falar de temas internacionais que, na melhor das
hipóteses, foram tratados de maneira enviesada na grande mídia do país – como o
grande, sonoro e escandaloso caso do genocídio palestino, sendo que esse
foi um
dos argumentos utilizados para censurar o TikTok nos Estados Unidos.
A resposta dos
usuários em termo de migração foi cair de cabeça nos últimos dias na vida
quotidiana chinesa, falando em Xiaohongshu em vez de Rednote – o aplicativo que
tem esse nome pela maneira como o vermelho é auspicioso na tradição chinesa e
se referia inicialmente a um mero guia de compras para turistas internos
chineses, sendo um símbolo do consumo, mas também do acesso a habitação e
saúde, cada vez mais caros nos Estados Unidos.
O trivial exposto
no Xiaohongshu mostra um país longe de estar atrasado, enquanto os Estados
Unidos, ainda que se mantenham riquíssimos, vivem disfunções semelhantes a
países muito pobres: da epidemia mortal do opióide fentanil, passando pelo
recorde de moradores de rua e o brutal endividamento familiar – e o país não
consegue dar conta do incêndio florestal em Los Angeles, enquanto envia
centenas de bilhões de dólares para guerras na Ucrânia e em Israel.
Trump parece mirar
em uma saída mediada, mas tem em vista o interesse das grandes corporações, não
do seu povo. O fato é que a China veio para ficar e é grande demais para ser
escondida. Hoje, não é ela o país isolado que não conhece o mundo, mas sim os
Estados Unidos, cuja sociedade está na mesma posição em que se encontravam
muitos dos seus rivais na Guerra Fria, apartados do mundo para que seus povos
ignorassem as próprias defasagens.
Fonte: Por Hugo
Albuquerque, em Opera Mundi
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