segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Os refugiados norte-americanos do TikTok e o novo Livrinho Vermelho da China

A hashtag #TikTokRefugees explodiu impulsionada por usuários norte-americanos que, diante da ameaça de banimento do aplicativo TikTok em seu país, migraram para uma rede chinesa com um nome peculiar, Xiaohongshu (红书), literalmente Livrinho Vermelho – ou Rednote na marca em inglês. Embora isso seja bom demais para ser verdade, o app não alude ao famoso livro Citações do Presidente Mao: ele é um misto de Instagram com Pinterest, só que chinês.

Livrinho Vermelho é como o Citações (o segundo livro mais impresso da história) é conhecido em boa parte do mundo, mas não pelos chineses. O efeito dessa ironia é, entretanto, maravilhoso pelo contexto em que ele se insere. Ele é um app genuinamente chinês – que, no entanto, não exige um chip de celular chinês –, se tornando o mais baixado nos Estados Unidos nos últimos dias, que é mais “grave” do que o TikTok.

Com cerca de 170 milhões de usuários nos Estados Unidos, o TikTok era a rede social que mais crescia no país, desafiando o poder de gigantes como a Meta de Mark Zuckerberg, o Google ou do X/Twitter de Elon Musk. A febre do TikTok foi demais, seja para essas corporações ou para o governo norte-americano e seu pesadelo recorrente de ser ultrapassado pela China, o que se tornou um consenso na cúpula dos dois grandes partidos.

O possível banimento do TikTok é crescentemente impopular e, inclusive, errático, uma vez que nele se discute a versão ocidental do aplicativo – o chinês se chama Douyin e serve apenas para o mercado do país asiático. A chegada de milhões de norte-americanos ao Xiaohongshu, no entanto, fez eles descobrirem o que é a vida comum na China, como aponta Iara Vidal, marcada por um aumento da prosperidade e do consumo e uma dignidade superior às cidades norte-americanas.

A questão é que, embora chinês, o Xiaohongshu é aberto, porque sua versão chinesa é também global, assim como ocorre com os aplicativos norte-americanos. E, venhamos e convenhamos, é uma rede social de trivialidades do quotidiano chinês, o que tem um efeito terrível para norte-americanos comuns, certamente sendo mais compreensível para eles do que se estivessem lendo o Livrinho Vermelho original, e suas elaborações teóricas: não, a vida na China não é um inferno.

·        Um grande experimento antropológico de massas

A população norte-americana não costuma olhar muito para fora. Disso todo mundo sabe. E muitas vezes tem dificuldade de se comunicar e se entender dentro do seu próprio país, com diferenças cada vez maiores não só entre regiões, mas também entre campo e cidade. A métrica do mundo são estruturas norte-americanas, de um inglês na forma do padrão falado no país como língua franca global como, ainda, com estruturas da Internet.

A rede mundial de computadores permitiu à humanidade se comunicar e se encontrar, mas passando por dentro de estruturas, sejam concretas ou conceituais, que são norte-americanas. Nesse sentido, o “global” é um padrão de mundo que é norte-americano, seja diretamente ou por reprodução, fazendo que os norte-americanos sempre estivessem em casa, seja pela língua, mas pelo entendimento básico da Internet. Com as redes sociais não foi diferente.

O efeito disso é que os norte-americanos passaram a olhar mais ainda para si, enquanto o mundo tinha de olhar para seu país, nem que fosse para encontrar alguma outra parte do mundo. O normal do império global é o padrão e a métrica norte-americanos, mas e quando os norte-americanos são confrontados com uma situação oposta, com eles entrando em massa em uma rede social genuinamente chinesa?

Isso está acontecendo agora, e o resultado é basicamente colocar em colapso a propaganda antichinesa, como observa Arnauld Bertrand – mas também é acompanhado por usuários normais do TikTok, os quais passam a associar o banimento com o fato de o governo estar conspirando para ocultar como é, realmente, a vida na China, algo de que talvez os norte-americanos não tivessem muita noção ou, talvez, supusessem ser muito mais pobre do que ela é.

Esse enorme encontro gerou interações como a de norte-americanos ajudando crianças chinesas com seu dever de casa de inglês, mas rompe com o estranhamento e o espantalho do “espião chinês” – assim como se desdobram numa repetição direta do que um dia se sonhou como relação povo a povo, a exemplo dos tempos da diplomacia popular de Zhou Enlai, quando os chineses precisavam contornar seu isolamento. Agora, isso ocorreu ao contrário.

·        Uma era de redes sociais nacionais?

O leitor atento pode questionar se os Estados Unidos, com atraso, não estão apenas retribuindo o banimento da Meta e da maior parte da Internet norte-americana na China. Mas, na verdade, não custa lembrar que grandes redes sociais norte-americanas foram expulsas por, simplesmente, desconhecer a legislação e as autoridades chinesas – como fez Elon Musk com o Brasil recentemente –, enquanto o banimento do TikTok é só pelo fato de ele ser chinês.

Curiosamente, os chineses são os que deveriam ter motivos para tomar cuidado com as redes sociais norte-americanas. Peter Thiel, padrinho político do vice-presidente norte-americano J.D. Vance, bilionário e eminência parda do Vale do Silício, tem ligações públicas com a espionagem norte-americana. Thiel foi peça-chave seja na formação da Meta por Zuckerberg, mas também na compra do Twitter por Musk.

Há pouco, o Brasil viveu seu momento “China” com a rebelião de Musk, o que levou ao bloqueio do Twitter por decisão do Supremo Tribunal Federal. E, agora, novamente, o país se vê às turras com com Musk – muito embora, a fraca memória nacional se esqueça do papel central do uso do WhatsApp por Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, no caso dos disparos em massa, senão parece que Zuckerberg teve uma epifania direitista apenas agora.

Em termos de banimento, a funesta presidência de Joe Biden conseguiu fazer o que, anos antes, Donald Trump tentou, sendo bombardeado como autoritário. A Lei Anti-TikTok foi aprovada tanto na Câmara quanto no Senado norte-americanos por ampla margem, apenas com a dissidência da esquerda do Partido Democrata e, ironicamente, republicanos ligados a tendências de Estado mínimo, alguns deles trumpistas raiz ou próximos ao Tea Party.

Diante disso, o TikTok moveu uma ação que agora chega à Suprema Corte, de maioria republicana, o que, segundo prognósticos, não reverterá a decisão de instâncias inferiores que reconheceram a constitucionalidade da lei. A questão é que Trump pode mudar de ideia e intervir a favor do aplicativo, talvez para tentar forçar a proprietária do TikTok a vendê-lo – que é a única alternativa dada para manter seu funcionamento.

·        Os riscos explosivos do banimento

Eventos como o êxodo para o Xiaohongshu e trocas entre milhões de usuários norte-americanos e chineses numa rede social chinesa, no entanto, mostram que a jogada bruta do establishment norte-americano, seja no campo conservador ou liberal, pode dar errado. Na tentativa de apagar algo, ele acaba ganhando mais visibilidade, o chamado efeito Streisand a que Bertrand tem feito referência no caso: dar visibilidade massiva para o que se tenta esconder.

TikTok nunca foi culturalmente sobre a China nos Estados Unidos, embora tenha sido um respiro para o público norte-americano falar de temas internacionais que, na melhor das hipóteses, foram tratados de maneira enviesada na grande mídia do país – como o grande, sonoro e escandaloso caso do genocídio palestino, sendo que esse foi um dos argumentos utilizados para censurar o TikTok nos Estados Unidos.

A resposta dos usuários em termo de migração foi cair de cabeça nos últimos dias na vida quotidiana chinesa, falando em Xiaohongshu em vez de Rednote – o aplicativo que tem esse nome pela maneira como o vermelho é auspicioso na tradição chinesa e se referia inicialmente a um mero guia de compras para turistas internos chineses, sendo um símbolo do consumo, mas também do acesso a habitação e saúde, cada vez mais caros nos Estados Unidos.

O trivial exposto no Xiaohongshu mostra um país longe de estar atrasado, enquanto os Estados Unidos, ainda que se mantenham riquíssimos, vivem disfunções semelhantes a países muito pobres: da epidemia mortal do opióide fentanil, passando pelo recorde de moradores de rua e o brutal endividamento familiar – e o país não consegue dar conta do incêndio florestal em Los Angeles, enquanto envia centenas de bilhões de dólares para guerras na Ucrânia e em Israel.

Trump parece mirar em uma saída mediada, mas tem em vista o interesse das grandes corporações, não do seu povo. O fato é que a China veio para ficar e é grande demais para ser escondida. Hoje, não é ela o país isolado que não conhece o mundo, mas sim os Estados Unidos, cuja sociedade está na mesma posição em que se encontravam muitos dos seus rivais na Guerra Fria, apartados do mundo para que seus povos ignorassem as próprias defasagens.

 

Fonte: Por Hugo Albuquerque, em Opera Mundi

 

Nenhum comentário: