Luís Sérgio Canário: Sobre as mudanças na Meta
Em 7 de janeiro o mundo foi surpreendido pelo anúncio de Mark Zuckergerb
que a Meta, dona do Facebook e do Instagram, está mudando suas políticas de
verificação de fakenews e dos limites do que considerado ofensivo na política
de uso dos produtos. A checagem de fakenews se restringirá a alguns assuntos e
as mensagens normalmente associadas a ódio deixariam de ser verificadas e
retiradas. São mudanças que abrem espaço para transformar o ambiente das redes
sob seu controle uma espécie de terra de ninguém, um vale tudo, com pouca ou
nenhuma restrição. A Meta se alia ao X, de propriedade de Elon Musk, um
expoente da direita que ganhou um posto importante na equipe de Trump, na
questão de terra sem lei. E tudo em nome da liberdade de expressão. Claro que
sob a ótica da extrema-direita.
Essa guinada se dá exatamente um dia depois da confirmação do resultado
das eleições e às vésperas de Donald Trump tomar posse como presidente dos EUA.
Coincidência? Obviamente não. São os novos ventos soprando em outras direções.
E o barco vai na direção do vento. Ou a expressão muito usada em inglês, businness
as usual, em português, negócios como de costume. Nada de novo nesse
aspecto.
A questão é que as implicações na vida das pessoas, países e sociedades
não são pequenas nem se restringem ao mundo dos negócios. Expor as populações
LGBT+, por exemplo, a discursos de ódio, ofensas diretas e ameaças não fazem
parte do negócio, são consequências das decisões tomadas em função dele.
Permitir a proliferação de notícias falsas, calúnias sobre agentes políticos e
interferência nas eleições afetam os processos políticos internos nos países.
Destruir reputações de líderes populares fica permitido sem nenhuma contenção.
Zuckerberg diz que está voltando aos tempos iniciais do Facebook, criado como
uma ferramenta para as pessoas se comunicarem livremente. Provavelmente não
funcionava assim nem nos tempos iniciais onde era usado basicamente nos
alojamentos da Universidade Harvard, onde tudo começou. É possível que houvesse
desde então posts violentos ou caluniosos.
Mark Zuckerberg é um brilhante homem de negócios que construiu um
império baseado em um aplicativo para ser usado por estudantes trocando perfis,
fotos e posts. Hoje é uma empresa que vale US$1,5 trilhões na bolsa de valores
dos EUA. E ele um dos homens mais ricos do planeta. Dono de redes sociais e de
comunicação com bilhões de usuários que usam esses produtos cotidianamente. Uma
imensa rede de alcance mundial que distribui todo tipo de informação e que tem
seu faturamento muito concentrado na venda de anúncios.
EUA e Canadá concentram perto de 50% do faturamento e somente 9% dos
usuários. De longe o mercado mais rentável. Isso faz essa região ser de extrema
importância. Essa concentração sobre uma base pequena é um fator de risco. A
redução da quantidade de usuários implica em uma redução significativa no
faturamento. A empresa seria forçada a aumentar a participação das outras
regiões, especialmente a Ásia/Pacífico com populações imensas, como a Índia,
para compensar.
A grande dispersão de usuários pelo mundo, em vários países de todos os
portes, e com várias políticas e leis para o uso da internet, desde os europeus
aos africanos, torna a gestão de políticas de uso muito complexas e cara.
Atender as legislações nacionais de dezenas de países não é tarefa simples ou
barata.
Em 8 de janeiro o jornal The Washington Post, de propriedade Jeff Bezos,
um dos donos da Amazon, publicou um texto sobre o assunto, destacando os
pontos: (i) Mark Zuckerberg nunca gostou do negócio de fiscalizar o cumprimento
da política de uso do Facebook; (ii) Há nessas medidas um cálculo empresarial
frio: com o Partido Republicano de Trump controlando a Casa Branca e o
Congresso, além de uma supermaioria simpática instalada no Supremo, a Meta tem
mais a perder ofendendo os conservadores do que ofendendo os liberais ou grupos
marginalizados.
(iii) Em 7 de janeiro de 2021, no dia seguinte a invasão do Capitólio, a
Meta suspendeu a conta de Donald Trump. Eles nada fizeram até Biden ser
confirmado presidente dos EUA; (iv) Durante o mandato de Joe Biden, com ameaças
regulatórias iminentes, a empresa trabalhou para reprimir fraudes e teorias da
conspiração, especialmente em torno da pandemia de covid e da segurança e
eficácia das vacinas; (v) As mudanças da Meta podem estar ligadas ao jantar com
Donald Trump em sua casa em Mar-a-Largo, a doação de US$1 milhão para a festa
da posse de Donald Trump e a nomeação de um aliado de Trump para o conselho da
Meta: para se alinhar ao poder.
Independentemente das convicções pessoais dele, a virada da Meta, é uma
decisão de negócio. Ele acena para a base trumpista, que venceu as eleições,
com medidas muito caras a eles. Se alinha ao discurso fácil da “liberdade de
expressão”. Reduz os custos operacionais e a responsabilidade contratual de
garantir um ambiente não agressivo em suas redes. Tenta preserva a sua base de
usuários, fonte de suas receitas, no seu principal mercado, responsável por
mais de 50% das vendas. Perder usuários nesse mercado poderia levar os
investidores a deixarem de comprar suas ações, rebaixando seu valor de mercado,
além do faturamento.
Esses pontos levantados pelo jornal ajudam a estabelecer o cenário e o
alcance da decisão. Em certo sentido é também uma estratégia de botar o “bode
na sala”. Os ambientes político e institucional nos EUA favorecem, como visto,
a tomada dessas medidas. O movimento da Meta é claramente a favor das direitas
mundo afora, que têm na desinformação e nas fake news seus
principais instrumentos no debate público.
A ver como serão as respostas da Comunidade Europeia e da Europa em
geral com a guinada em direção à direita de alguns países. Também a de governos
como os do Brasil e da Índia. Quase 80% da sua base de usuários está fora dos
EUA, Canadá e Europa. Apesar de seu faturamento nessas regiões não ser
proporcional a quantidade de usuários, representa 30% do faturamento total, o
que não é desprezível.
A influência dos produtos da Meta ao redor do mundo é muito grande.
Donald Trump ganhou as eleições de 2016 com uma contribuição importante,
determinante para alguns, das ações de sua comunicação no Facebook. Em 2018 a
eleição de Jair Bolsonaro teve um impulso importante usando o WhatsApp. A
articulação de sua base eleitoral foi intensamente feita usando esse
aplicativo. Da mesma forma a campanha, vitoriosa, a favor do Brexit foi
muito influenciada pelo uso do Facebook.
Não se pode subestimar a importância dessas redes sociais no mundo de
hoje. Estão presentes em nosso dia a dia. Elas mudaram a forma como as pessoas
se informam e com isso orientam seus posicionamentos em todas as dimensões
sociais. Desde a marca de sabonete preferida a que político vão dirigir seu
ódio, passando pela disputa eleitoral. Antes dessas plataformas quase toda a
informação era intermediada pela imprensa, que atuava como um filtro
normalmente a favor dos interesses das classes dominantes.
Havia até uma fala comum aqui no Brasil que o que não saia no Jornal
Nacional da TV Globo não era verdade ou sequer
existia. Mas mesmo essas empresas, que continuam existindo sem a mesma
influência de outros tempos, se submetia a regras e leis, em última instância
são concessões públicas que no limite podem ser revogadas. Podiam ser
alcançadas pelos tribunais dos países com maior ou menor rigor. Exceto em
ditaduras, que censuravam pesadamente a imprensa, ocorria que publicações com
menos alcance acabassem por desmascarar manipulações grosseiras, como a
da TV Globo, transformando o comício pelas diretas em uma atividade
de um feriado paulista.
Sua valorização dependia da sua circulação, de que os leitores
estivessem dispostos a ir às bancas comprar as publicações. Ou da audiência das
TV e das rádios. A internet muda esse cenário. Não há mais intermediação
forçada da distribuição de informações. As pessoas recebem o tempo todo
informações vindas de várias fontes. Algumas da imprensa, mas muitas de posts
de amigos ou de quem faz parte da sua rede de contatos. E essa informação chega
ou não as pessoas com o uso de filtros mais sofisticados que a simples
intermediação, os algoritmos, que são controlados pelos donos das plataformas,
como agora no caso da Meta.
A maior diferença em relação a imprensa é que esses filtros são
seletivos. O Jornal Nacional não conseguia levar informações
diferentes para públicos diferentes. O Facebook pode. Consegue segmentar os
grupos sociais de tal forma que as pessoas têm acesso à informação que faz mais
sentido para o que diz a análise dos perfis do aplicativo. Acreditar ou não na
informação não depende da confiança no meio. O Jornal Nacional,
a TV Globo, eram confiáveis, na visão do público em geral.
O Facebook se coloca como um meio neutro, não é ele que dá
confiabilidade à informação, não precisa ser confiável. Se posiciona como uma
plataforma gratuita para contactar pessoas e permitir o “livre” debate de
ideias e troca de informações. A confiança vem da origem da informação. Se o
religioso da confiança da pessoa, seja de que religião for, repassa uma
informação ou posta um comentário, ela é confiável e verdadeira. Mesmo que não
seja. A pessoa que recebe a informação precisa ter a capacidade, a vontade e a
orientação de ela mesma buscar confirmação das informações que recebe.
O cenário em nosso país, e em boa parte do mundo, inclusive nos EUA, não
é esse. Essa é a principal fonte de poder das redes sociais. As pessoas estão
preferindo opiniões que a informação necessária para suas próprias conclusões.
A opinião que vem de onde a pessoa confia é suficiente e tomada como verdade. E
isso tem afetado os meios de comunicação convencionais que cada vez mais
publicam comentários que informações. A internet mudou os padrões de informação.
Há acesso a tudo que se queira. E as pessoas passam a interagir e se informar
nos limites da sua rede de contatos, as bolhas.
Em seu discurso de posse como secretário de comunicação do governo
federal, Sidônio Palmeira falou: “A informação dos serviços (tratando do
governo) não chega na ponta. A população não consegue ver o governo nas suas
virtudes. A mentira nos ambientes digitais fomentada pela extrema-direita cria
uma cortina de fumaça na vida real, manipula pessoas inocentes e ameaça a
humanidade”. Sem considerar os aspectos da política de comunicação do governo
ser boa ou ruim, funcionar ou não, é certo que o ambiente das redes sociais
acaba por interferir no debate público e na formação das posições políticas da
população.
Há um certo exagero na ameaça a humanidade, mas não é exagero que há uma
ameaça real ao debate público de ideias e aos limites necessários a tão falada
“liberdade de expressão”. Liberdade de expressão passou a ser um conceito caro
a extrema-direita. Não é o conceito liberal clássico do cidadão ter direito a
expor publicamente suas ideias. É a liberdade de conteúdos de qualquer
natureza, fascismo, preconceitos, violências, serem livremente expressados sem
nenhuma possibilidade de contenção social. Mentir deixa de ser passível de
punições e passa ser um comportamento lícito, coberto por esse manto da
“liberdade de expressão”.
Essas mudanças nas políticas da Meta aprofundam a aplicação desse
conceito de forma nunca vista. Pelas novas regras pode se dizer o que quiser,
sobre o que quiser, com quase nenhuma restrição ou controle da empresa. Não
deixa de ser um passo arriscado. A Meta é muito dependente da permanência de
seus usuários ativos. Mais que as demais bigtechs.
O Google é centrado no buscador, que não tem usuários cadastrados, é um
serviço. Tem vários outros produtos, como o Gmail e o Androide. A Amazon é uma
potência no comércio eletrônico que não depende de usuários e sim de
consumidores para os produtos que vende. A Microsoft é uma potência do software
para computadores. Um movimento de governos, movimentos sociais, partidos
políticos e demais forças sociais que sintam o alcance dessas novas políticas e
passem a se movimentar para que as pessoas deixem de usar as redes da Meta pode
ser entendido pelo mercado como um sinal de perda de valor da empresa, o que é
um enorme complicador para ela.
A Meta pode ter iniciado um movimento que potencialize as ações dos
governos nacionais contra ela. O governo brasileiro reagiu e solicitou
informações, que foram enviadas, mas, no entendimento da AGU, não atendem aos
interesses do país nem da nossa legislação.
É muito difícil conter o poder da Meta. Não são suficientes as medidas
legais e de regulação existentes. Eles têm a tecnologia que controla as
plataformas e compromissos no atendimento das necessidades de seus clientes. O
controle da tecnologia lhes permite fazer o que quiserem com os dados que
armazenam, nossos dados pessoais. Os compromissos com seus clientes são
fundamentais para manter e fazer crescer seu faturamento. A depender dos seus
interesses comerciais e políticos eles sempre podem alterar o funcionamento das
suas plataformas. Como estão fazendo agora.
Mark Zuckerberg pediu a interferência do governo Donald Trump para usar
de sua força para barrar a ação de governos e de “tribunais secretos” que
contrariem sua retórica de proteção da “liberdade de expressão” e os seus
interesses. Não chegamos ao fundo do poço, mas é importante que governos e
pessoas resistam ao controle que essas plataformas têm e querem ampliar sobre
as nossas vidas.
Certamente a questão do nosso controle sobre os nossos dados capturados
deve fazer parte das discussões. Sem nossos dados essas plataformas perdem seu
principal “ativo” e fonte do seu faturamento. O acesso aberto aos organismos de
controle governamental dos controles presentes em seus algoritmos é também um
caminho.
O bode está na sala. Vamos ver o estrago que ele fará.
Fonte: A Terra é
Redonda
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