Brumadinho 6 anos depois: lentidão da reparação e desvio de
recursos dos atingidos
O acordo judicial firmado entre a Vale e o governo de
Minas Gerais no contexto da reparação dos danos coletivos pelo rompimento da
barragem em Brumadinho, representou uma das maiores violações da democracia
brasileira. Passados 6 anos do crime, e 4 anos do firmamento do acordo
bilionário que deveria garantir a reparação dos atingidos, assistimos à
ineficácia do modelo de reparação construído pela própria empresa ré e pelo
governo Zema.
Nos meses posteriores ao rompimento da barragem,
familiares das vítimas e comunidades atingidas ao longo de toda a bacia do rio
Paraopeba iniciaram seu processo de auto-organização para lutar pelo encontro
dos corpos, por justiça e pela reparação integral dos territórios afetados.
Para isso, foram formadas várias comissões, coletivos e articulações de
atingidos.
Esse processo de auto-organização foi impulsionado
pelas próprias instituições da Justiça, que incentivaram a criação de comissões
dos atingidos, que deveriam ter assento às mesas de negociação, uma vez que são
estes grupos organizados que lidam diariamente com a realidade de suas
comunidades.
·
Comunidades e Legislativo excluídos
Em fevereiro de 2019, com a determinação do juiz
responsável pelo caso, as comunidades atingidas conquistaram o direito à
assessoria técnica independente. A principal finalidade das assessorias seria
informar os atingidos e sistematizar informações a fim de diminuir a
desproporcionalidade de controle do conhecimento e poder por parte da
mineradora responsável pelo crime.
No entanto, esse processo foi violentamente
interrompido quando os atingidos souberam, pela imprensa, que o governo
estadual estava negociando os termos da reparação diretamente com a Vale e sem
a participação das vítimas. Além de não poderem participar das rodadas de
negociação, o acordo ocorreu em sigilo judicial e os atingidos não tiveram
acesso às informações.
O governo estadual também violou princípios
democráticos ao desrespeitar e impedir a participação do Poder Legislativo e de
prefeituras durante as negociações. A Assembleia Legislativa não foi convidada
a integrar a construção do acordo. Somente depois de já firmado o acordo, a
Assembleia analisou e votou a parte referente aos R$ 11 bilhões que passaram a
integrar Orçamento do Estado.
Este atropelamento do Poder Legislativo foi uma das
razões pela qual a Defensoria Pública da União (DPU), que vinha acompanhando as
negociações, optou por abandonar o processo, denunciando publicamente diversas
violações de preceitos fundamentais previstos na Constituição Brasileira, e que
estariam presentes no processo de negociação do acordo, tornando-o ilegítimo.
Conforme denuncia a DPU, foram violados:
“(…) princípio democrático (art. 1o, caput, da
Constituição da República); dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, da
Constituição da República); tripartição das funções estatais (art. 2o, caput,
da Constituição da República); publicidade dos atos processuais (art. 5o, LX,
da Constituição da República); devido processo legal (art. 5o, LIV, da
Constituição da República); publicidade dos atos da administração pública (art.
37, caput, da Constituição da República); princípios e regras atinentes ao
orçamento público – que, pela envergadura, violados, fazem ruir o próprio
Estado Democrático de Direito” (DPU, 2021).
A situação fica ainda mais grave, considerando o
envolvimento ativo do Legislativo nas investigações das razões do rompimento da
barragem via Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), da Assembleia Legislativa
de Minas Gerais e da Câmara dos Deputados. A partir dessas investigações,
coletaram-se materiais e documentos que possibilitaram a elaboração de
relatórios robustos, com importantes recomendações para as instituições da
Justiça e outros organismos do Estado.
Mesmo com esse acúmulo de informações e recomendações,
o Poder Executivo excluiu o Legislativo nas negociações do acordo. O resultado
final escancarou a ausência dos atingidos no processo. O acordo que deveria
atender as demandas por reparação integral e justiça não incorporou as
necessidades dos territórios atingidos.
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Desvio de finalidade
Pelo contrário, o governo estadual se aproveitou da
tragédia para desviar e incorporar recursos que deveriam ser destinados à
reparação no orçamento público do estado. Assim, pouco tempo antes das eleições
de 2022, o governador Zema repassou recursos financeiros para todas as 853
prefeituras de Minas Gerais. Esta iniciativa certamente contribuiu para a sua
aproximação com os municípios e, consequentemente, para sua reeleição.
O governo também incorporou o projeto de construção do
Rodoanel ao plano de reparação. Trata-se de uma grande contradição já que o
projeto beneficia principalmente as mineradoras que atuam na região, além de
que a construção da rodovia irá desalojar milhares de famílias e causar novos
impactos socioambientais.
Além disso, o fato de a empresa ré ser a responsável
pela reparação socioambiental é uma
incoerência,
dado o histórico de fraude ambiental em que a Vale vem se envolvendo nos
últimos anos.
A empresa, juntamente com sua contratada Tuv Sud,
fraudou a Declaração de Estabilidade da barragem do Córrego do Feijão. Não
obstante, é reincidente em crimes socioambientais em Mariana e Brumadinho, e
está envolvida em centenas de casos de conflito socioambiental em Minas Gerais.
O acordo previa que até o final de 2024 fossem retirados os rejeitos de 54 km
do Rio Paraopeba. No entanto, os últimos dados divulgados demonstram que a
empresa conseguiu limpar apenas 1% do planejado.
Outra questão crítica em relação ao acordo é o fato de
terem sido destinados recursos da reparação para financiar o Plano Estadual de
Mineração do Estado. O setor é atualmente responsável por diversos crimes
socioambientais e pela situação de insegurança hídrica de várias regiões.
Em outras palavras, o acordo foi bom para o governo,
mas foi péssimo para o Estado. O termo firmado extinguiu diversas perícias
técnicas e estudos que estavam sendo realizados pela UFMG. Além disso, o valor
global acordado foi inferior ao valor devido, segundo estudos parciais realizados
pela Fundação João Pinheiro. Isso significa que o governo Zema rifou os
direitos dos atingidos sem conhecer a dimensão completa dos danos.
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Bom pra Vale, ruim pro povo
Esse novo arranjo institucional acabou limitando também
a atuação das assessorias técnicas independentes. Hoje a atuação se restringe à
execução dos termos firmados no acordo. Ou seja, atualmente as assessorias não
são capazes de cumprir com a finalidade pela qual foram criadas: garantir a
participação informada e qualificada dos atingidos.
Para a Vale, o firmamento do acordo representou a
segurança jurídica. Dificultando que os atingidos cobrem as demandas da Vale,
porque ela manda cobrar do Estado. O Estado “comprou” a responsabilidade da
Vale com esse acordo. E o Estado não vai até as comunidades.
Ademais, a própria empresa garantiu recursos para gerir
uma parcela significativa das obras de reparação. Ou seja, a empresa ré é
responsável pela gestão de diversos projetos ao longo da bacia do Paraopeba. No
dia seguinte à conclusão do acordo, as ações da empresa subiram 4,3% na
Bovespa, alcançando recorde histórico de lucros no primeiro trimestre de 2021.
Do valor total do acordo de R$ 37,7 bilhões, apenas R$
7,4 bilhões estão vinculados às demandas e necessidades das comunidades
atingidas, por meio do Programa de Transferência de Renda (PTR) (R$ 4,4
bilhões) e do Anexo 1.1 de Projetos de Demandas das Comunidades (R$ 3 bilhões).
Ambas iniciativas foram resultado da luta dos atingidos da bacia do Rio
Paraopeba.
O PTR foi a institucionalização do direito ao auxílio
emergencial, uma determinação do juiz responsável pelo caso ainda em 2019. O
auxílio deveria apoiar os atingidos até que a reparação fosse garantida. No
entanto, a previsão é que o PTR acabe em 2026, com a redução dos valores a
partir de março de 2025. Os adultos que moram na Zona Quente (território mais
intensamente impactado, onde os danos persistem em razão da multiplicidade de
obras necessárias) passarão a receber 50% do salário mínimo (R$ 759,00) e os
adultos de fora da Zona Quente passarão a receber 25% do salário mínimo (R$
379,50).
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Reparação distante
Ao mesmo tempo, os indicadores demonstram que a
reparação está longe de ser concluída. Ou seja, o PTR acabará antes da
recuperação das condições de trabalho e renda dos atingidos prejudicados pelo
desastre.
Em relação aos Projetos de Demandas das Comunidades, a
execução ainda não começou. A entidade gestora designada – Cáritas – aguarda a
liberação do recurso. No entanto, como o valor destinado não é fruto de um
estudo da dimensão completa dos danos, não é possível garantir que haverá
recursos suficientes para apoiar todas as propostas submetidas pelos atingidos.
Ou seja, as vítimas do desastre deverão disputar os recursos disponíveis com
outras vítimas ao longo dos 26 municípios atingidos.
Em relação às indenizações individuais, o acordo não
incorporou a elaboração da Matriz de Danos da Reparação Integral. Isso
significa que até hoje os atingidos seguem sem a garantia de parâmetros e
critérios básicos para as suas indenizações. Os valores para a indenização moral,
por exemplo, estão desatualizados desde janeiro de 2019, sem a devida correção
monetária de 35%. A Vale, por sua vez, segue firmando acordos individuais com
base nos seus próprios critérios. A empresa escolhe inclusive com qual atingido
firmará o acordo ou não. Essas pessoas podem aceitar ou recusar a proposta, mas
não têm o direito de realizar uma contraproposta.
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Mal exemplo
Por fim, podemos dizer que a celebração do acordo de
reparação de Brumadinho abriu as portas do inferno. Desde então, a Vale e o
governo Zema vêm adotando essa metodologia de acordo em diferentes territórios.
Em 2022, firmaram o acordo de reparação de Macacos, e
em 2023 firmaram o acordo de Barão de Cocais. Em 2024, por sua vez, firmaram o
acordo de Mariana. Os acordos aconteceram no mesmo formato de Brumadinho: sem
participação popular e em sigilo judicial. Acordos extrajudiciais podem ser
efetivos. Para isso, é necessário que todas as partes envolvidas no conflito
tenham direito à participação informada. Cabe aos atingidos apontarem
ferramentas e instrumentos para minimizar a dor e os danos.
Como as comunidades não participaram do processo, as
demandas e denúncias dos atingidos seguem legítimas, pois o arranjo
institucional não limita a luta por justiça e reparação integral dos nossos
territórios.
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