Evento
escancara o projeto de poder evangélico - Parte Final
Chegamos ao final dessa
série de reportagens sobre o projeto de poder evangélico no Brasil com um
apanhado histórico para entendermos como chegamos nesse ponto. As lutas e
tensões da América Latina que repercutiram tanto em sua teologia quanto em sua
prática religiosa, que deu origem ao que estamos enfrentando hoje.
É de suma importância
que entendamos o pensamento por trás de tudo isso. De onde vieram essas
construções que desembocaram no apagamento de uma igreja católica que se
levantava pós-ditadura com forte tendência à Teologia da Libertação e o
crescimento explosivo e popular dos evangélicos influenciados e impulsionados
por três teologias que chegaram dos Estados Unidos e nos ajudam a entender o
cenário atual.
Primeiramente é
necessário que entendamos o fim dos anos 60 e a chegada de uma teologia na
Igreja Católica que faria diferença na América Latina.
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Teologia da Libertação
A Teologia da
Libertação é um movimento teológico surgido na América Latina nos anos 1960 e
1970, profundamente influenciado pelas desigualdades sociais e econômicas que
marcavam o nosso povo. Seu objetivo central era articular a fé cristã com a
luta por justiça social, colocando os pobres e marginalizados no centro da reflexão
teológica. Inspirada nos ensinamentos de Jesus, especialmente em sua
preocupação com os excluídos, essa abordagem enfatiza a ação prática como forma
de transformar estruturas injustas, combinando espiritualidade com engajamento
político.
Seus principais
expoentes, Gustavo Gutierrez, Jon Sobrino, Juan Luis Segundo e aqui no Brasil
Leonardo Boff, Frei Betto, Carlos Mesters, Jose Comblin (Teologia da enxada) e
até mesmo o protestante Rubem Alves influenciaram toda uma geração de
pensadores e religiosos, dialogando com a realidade social, a intelectualidade
acadêmica e influenciando as Comunidades Eclesiais de Base, formadas a partir
do Concílio Vaticano II.
Uma das principais
características da Teologia da Libertação é o uso da análise marxista como ferramenta
para compreender e criticar as condições de opressão vividas pelos povos
latino-americanos. Isso levou à formulação de conceitos como a "opção
preferencial pelos pobres", que propõe que a Igreja e os cristãos assumam
um compromisso ético com os mais vulneráveis e desassistidos, não só os
acolhendo, mas denunciando juntamente os sistemas de opressão. Além disso,
destaca-se o método ver-julgar-agir, que incentiva uma leitura da realidade
social seguida de reflexão à luz do Evangelho e ações concretas para promover
mudanças.
Apesar de seu impacto
significativo na Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) e em outras
denominações cristãs, a Teologia da Libertação enfrentou críticas e
resistências, tanto dentro quanto fora da Igreja. Autoridades do Vaticano,
especialmente durante os papados de João Paulo II e Bento XVI, expressaram
preocupação com o uso de conceitos marxistas e possíveis desvios da doutrina
tradicional. Sob esses pontificados, a ICAR perseguiu muitos dos padres e
bispos expoentes e os que se identificavam em lutas contra as ditaduras na
América Latina, condenando muitos deles ao “silêncio obsequioso” e deixando o
caminho aberto para o surgimento da Renovação Carismática Católica e outros
movimentos mais fundamentalistas.
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A chegada dos neopentecostais
A chegada e expansão
dos movimentos neopentecostais no Brasil nas décadas de 1970 e 1980 marcaram
uma nova fase no cenário religioso do país, caracterizada por uma abordagem
mais pragmática, voltada para questões cotidianas e materiais. Diferente dos
pentecostais clássicos, os neopentecostais destacaram temas como prosperidade
financeira, cura divina e a luta contra forças espirituais malignas. Durante
esse período, denominações como a Igreja Universal do Reino de Deus (1977) e a
Igreja Internacional da Graça de Deus (1980) ganharam notoriedade ao adotar
estratégias inovadoras de evangelização e comunicação.
Um dos fatores que
impulsionaram o crescimento dos neopentecostais foi a utilização massiva dos
meios de comunicação, como rádio, televisão e, posteriormente, mídia impressa.
Essas igrejas investiram fortemente em programas televisivos e eventos de
grande porte, tornando sua mensagem acessível a um público amplo. Além disso,
seus líderes adotaram um discurso que respondia às necessidades práticas da
população urbana e das classes populares, como problemas financeiros,
familiares e de saúde, conquistando milhões de adeptos, especialmente em
regiões periféricas das grandes cidades.
Outro aspecto relevante
foi o caráter empreendedor dessas denominações, que desenvolveram uma estrutura
organizacional eficiente e expandiram rapidamente sua presença em todo o
território nacional. As igrejas neopentecostais também se destacaram por seu
envolvimento político, criando bases de apoio que mais tarde seriam decisivas
em campanhas eleitorais.
O surgimento das
“comunidades evangélicas” nos anos 1980 marcou uma mudança significativa no
estilo de culto do neopentecostalismo, oferecendo uma alternativa ao modelo
tradicional das igrejas já estabelecidas. Essas comunidades, muitas vezes
lideradas por pastores carismáticos e com uma estrutura mais informal, buscavam
atender às demandas de uma sociedade em rápida transformação, especialmente em
áreas urbanas e periféricas. Com forte ênfase no relacionamento pessoal, na acolhida
comunitária e na vivência prática da fé, essas comunidades atraíram muitos
jovens e famílias que se identificavam com sua abordagem menos hierárquica e
mais adaptada ao cotidiano.
Além disso, o uso de
música contemporânea, grupos pequenos e a criação de espaços dinâmicos para
adoração tornaram essas comunidades pontos de encontro para quem buscava
espiritualidade com maior conexão emocional e social. É nessa época que explode
no cenário nacional a “música gospel”, com artistas que começaram a disputar
espaço até mesmo nas mídias “seculares”, como Aline Barros (fruto da Comunidade
Evangélica da Zona Sul – RJ) e Kleber Lucas (Comunidade Evangélica de Goiânia).
Juntamente com os
neopentecostais, três teologias fortes nos EUA chegam ao Brasil e encontram
terreno fértil para sua propagação. Conhecer essas três vertentes teológicas é
fundamental para entendermos o atual quadro evangélico no Brasil, acrescido de
um levante da extrema-direita em todo o mundo. Vejamos uma por uma dessas
“teologias”:
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Teologia da Prosperidade
A teologia da
prosperidade é uma corrente teológica contemporânea que ganhou destaque em
igrejas neopentecostais, especialmente a partir da segunda metade do século XX.
Essa abordagem prega que a fé em Deus pode trazer bênçãos materiais e financeiras,
além de saúde e bem-estar. Baseada em uma interpretação literal de passagens
bíblicas, principalmente do chamado Antigo Testamento, que mencionam
prosperidade e abundância, essa teologia ensina que os crentes podem alcançar
riqueza e sucesso por meio de práticas como oração, doação financeira à igreja
e confissão positiva.
Um dos pilares da
Teologia da Prosperidade é a doutrina da "semeadura e colheita", que
sugere que ofertas e dízimos dados à igreja funcionam como sementes para que
Deus recompense o fiel com prosperidade material. Além disso, enfatiza-se a
importância de palavras e atitudes positivas, com a crença de que a confissão
da fé e a rejeição de pensamentos negativos atraem bênçãos. Pastores e líderes
associados a essa teologia frequentemente utilizam discursos motivacionais e
exemplos de enriquecimento pessoal para ilustrar seus ensinamentos.
Apesar das
controvérsias, a Teologia da Prosperidade continua a influenciar
significativamente o cenário religioso contemporâneo, especialmente em
contextos de desigualdade social.
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Teologia da Batalha Espiritual
A teologia da batalha
espiritual, também conhecida como guerra espiritual, é uma abordagem teológica
que enfatiza a luta contínua entre as forças do bem e do mal no plano
espiritual, com reflexos diretos na vida dos cristãos e na sociedade. Baseada
em passagens bíblicas como Efésios 6:12, essa teologia ensina que a vida cristã
inclui confrontos com demônios e forças malignas, exigindo do crente
vigilância, oração e uso das "armas espirituais" descritas na Bíblia,
como a fé, a Palavra de Deus e a oração intercessória.
Esse movimento ganhou
destaque nas igrejas evangélicas e pentecostais, especialmente nas décadas de
80 e 90, em meio a um crescente interesse por temas espirituais. A Teologia da Batalha
Espiritual propõe que problemas pessoais, doenças, dificuldades financeiras e
conflitos sociais podem ter origem em influências demoníacas ou espirituais.
Para combater essas forças, práticas como exorcismos, jejuns, orações de quebra
de maldição e atos proféticos são frequentemente empregadas pelos fiéis e
líderes religiosos.
Apesar de sua
popularidade em diversos contextos cristãos, a Teologia da Batalha Espiritual
enfrenta críticas de outras correntes teológicas. Alguns estudiosos a
consideram uma interpretação excessivamente literal e simplista de textos
bíblicos, enquanto outros alertam para o risco de fomentar o medo ou atribuir
responsabilidades espirituais a questões que têm causas psicológicas, sociais
ou políticas. Ainda assim, essa teologia permanece influente em muitas
comunidades cristãs, especialmente em regiões onde há forte sincretismo
religioso ou alto nível de vulnerabilidade social, onde sua abordagem oferece
sentido e esperança diante de adversidades.
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Teologia do Domínio
A teologia do domínio,
também chamada de teologia do reino ou reconstrucionismo cristão, é uma
corrente teológica que afirma que os cristãos têm a responsabilidade de
estabelecer o domínio de Deus em todas as esferas da sociedade, incluindo
política, economia, educação e cultura. Baseada em uma interpretação de
passagens como Gênesis 1:28, que fala sobre o "domínio sobre a
terra", e no conceito do Reino de Deus, essa teologia busca uma
transformação global mediante a aplicação de princípios bíblicos em todas as
áreas da vida humana.
Essa teologia tem como
uma de suas características a crença de que a Igreja deve exercer influência
direta sobre os governos e instituições, promovendo leis e políticas alinhadas
aos valores cristãos. É comum que seus defensores advoguem por um retorno a
padrões morais e éticos fundamentados nas Escrituras, muitas vezes rejeitando a
separação entre Igreja e Estado. A Teologia do Domínio também enfatiza a ideia
de que, antes da segunda vinda de Cristo, os cristãos devem conquistar um papel
de liderança global como parte do cumprimento do plano divino.
Embora tenha ganhado
apoio entre alguns grupos evangélicos e pentecostais, a Teologia do Domínio
enfrenta críticas tanto de teólogos tradicionais quanto de outros setores da
sociedade. Seus detratores argumentam que ela pode levar a formas de
autoritarismo religioso e à intolerância em contextos de pluralidade cultural e
religiosa. Além disso, alguns acusam essa teologia de distorcer o Evangelho,
concentrando-se mais no poder político e na transformação social do que na
mensagem de salvação individual e espiritual. Apesar das controvérsias, a
Teologia do Domínio continua a influenciar movimentos cristãos que buscam maior
engajamento político e cultural.
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Investimento em Jovens, Adolescentes e Crianças
Os movimentos
fundamentalistas, tanto no Brasil quanto no mundo, frequentemente colocam um
foco significativo em crianças e adolescentes como parte de suas estratégias de
expansão e perpetuação de valores. Essa ênfase ocorre devido ao entendimento de
que influenciar a formação espiritual, moral e cultural de jovens pode garantir
a continuidade de suas crenças e práticas em gerações futuras. A educação,
programas sociais e atividades religiosas direcionadas são os principais meios
usados por esses movimentos para alcançar esse objetivo.
No contexto global,
muitos grupos fundamentalistas investem em sistemas educacionais próprios, como
escolas religiosas, currículos alternativos e materiais didáticos alinhados às
suas visões de mundo. Em países onde a educação pública é escassa ou precária,
esses grupos frequentemente preenchem a lacuna, oferecendo instrução com forte
viés ideológico e religioso. Em algumas culturas, essa abordagem inclui a
doutrinação explícita sobre valores religiosos, o papel de gênero e até
interpretações políticas que reforçam a lealdade ao movimento.
No Brasil,
especialmente entre movimentos evangélicos neopentecostais e algumas alas do
catolicismo conservador, o foco em crianças e adolescentes se manifesta em
programas como escolas dominicais, acampamentos cristãos, grupos de jovens e
materiais infantis como livros e desenhos animados com mensagens religiosas.
Além disso, muitos desses grupos têm se engajado politicamente para influenciar
políticas educacionais, com a intenção de moldar o ensino público em temas como
gênero, sexualidade e moralidade. Essa atuação tem gerado debates e
controvérsias, especialmente em relação à laicidade do Estado e à liberdade de
ensino.
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As “igrejas de paredes pretas”
As chamadas
"igrejas de paredes pretas" são um fenômeno contemporâneo dentro do
cristianismo evangélico, marcadas por uma estética moderna e uma abordagem
inovadora de culto e adoração. Essas igrejas, que frequentemente têm paredes
pintadas de preto ou decoradas com iluminação teatral e tecnologia audiovisual
de ponta, buscam criar um ambiente imersivo e acolhedor, especialmente para
jovens e pessoas desconectadas das tradições religiosas formais. O estilo de
culto nessas comunidades é geralmente descontraído, com forte presença de
música contemporânea e pregações dinâmicas que abordam temas relevantes ao
cotidiano urbano. Essa estética e abordagem, inspiradas em modelos
internacionais, refletem uma tentativa de romper com padrões tradicionais e
atrair um público que valoriza a modernidade e a inovação sem abrir mão de uma
experiência espiritual significativa.
Também é interessante perceber dois aspectos nessas novas “igrejas”: apesar de
toda estética ultra moderna e luxuosa em alguns casos, a “teologia” dessas
comunidades é extremamente legalista e fundamentalista e em segundo lugar, os
locais onde essas igrejas mais aparecem, como em capitais litorâneas, bairros
de emergentes/novos ricos como Barra da Tijuca e cidades mais “badaldas” como
Balneário Camboriu, numa forte tentativa de atrair o jovem de classe média alta
para esse projeto de “revolução e dominação”.
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Extrema-Direita e projeto de poder evangélico
no Brasil
O recrudescimento da
extrema-direita no mundo nas últimas décadas reflete uma reação a mudanças
culturais, sociais e econômicas que desafiaram valores tradicionais e
estruturas de poder. Esse fenômeno é impulsionado por crises econômicas,
insegurança social e a percepção de que a globalização e o multiculturalismo
ameaçam identidades nacionais e religiosas. Líderes e movimentos da extrema-direita
têm se aproveitado dessas ansiedades para promover discursos nacionalistas,
anti-imigração e antiglobalistas, muitas vezes utilizando plataformas digitais
para espalhar mensagens polarizadoras e construir uma base de apoio populista.
No Brasil, esse
movimento encontrou eco em setores religiosos, especialmente no meio
evangélico, que se consolidaram como uma força política significativa. O
projeto de poder evangélico no país tem se articulado em torno de pautas morais
e conservadoras, como oposição ao aborto, à educação sobre diversidade de
gênero e à legalização das drogas, alinhando-se com a agenda da
extrema-direita. Igrejas evangélicas, especialmente as neopentecostais,
mobilizam milhões de fiéis e têm representantes em posições estratégicas do
Legislativo e Executivo, utilizando sua influência para moldar políticas
públicas e legislações que reforcem seus valores.
Esse protagonismo
político é sustentado por uma estratégia que combina discursos religiosos,
forte presença na mídia e engajamento comunitário. Ao mesmo tempo, a aliança
entre líderes religiosos e políticos da extrema-direita reforça a polarização
social, já que seus discursos frequentemente atacam minorias e promovem uma
visão excludente da sociedade. Apesar de sua força crescente, o projeto de
poder evangélico enfrenta desafios, como a diversidade interna do movimento
evangélico e a resistência de setores progressistas da sociedade brasileira,
que lutam pela manutenção de um Estado laico e democrático.
Fonte: Pastor Zé
Barbosa Júnior, na Fórum
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